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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

20.01.23

PR5 MGL: Caminhos do Bom Sucesso


Emília Matoso Sousa

Travel doesn't merely broaden the mind. It makes the mind.", Bruce Chatwin

O percurso
(11,10 Km) (nós fizemos 15)   |   Circular   |   446m desnível acumulado   |   Grau dificuldade fácil 
Pontos de interesse
Ruínas do Castro do Bom Sucesso; Capela da Senhora do Bom Sucesso; Marco geodésico do Monte do Bom Sucesso; Campos rurais e de pastoreio; Estela romana; Souto de castanheiros; igrejas e alminhas.
Observações
Sendo um percurso genericamente fácil, a subida para o Monte do Bom Sucesso reclama algum esforço e apresenta um piso bastante irregular e desconfortável.
Localidade
São João da Fresta | Freguesia do concelho de Mangualde de que fazem parte as povoações de Casais, São João, Fresta, Avinhó e Pinheiro de Tavares.
 
É humano! A nossa reação perante algo que é novidade tende a ser de um deslumbramento por vezes um pouco exagerado. Tudo é lindo, tudo é único. A experiência do primeiro trilho foi tão positiva que, rapidamente, quisemos fazer outro. A par da beleza das paisagens com que nos deparamos, e da descoberta de locais surpreendentes, há ainda toda uma sensação de aventura, própria de quem parte para terreno desconhecido. É claro que sem a sinalética a indicar o percurso, jamais nos arriscaríamos a penetrar nos bosques, nas florestas, nem a percorrer caminhos antigos, a maior parte das vezes escondidos nos locais mais improváveis. Ainda assim, convém ter algum sentido de orientação, já que alguns dos sinais podem ter sido destruídos e o GPS pode falhar. Pelo sim, pelo não, levar o bom e velho mapa de papel não é uma ideia descabida. Decidimos continuar a explorar o concelho de Mangualde. O tal que, pensávamos nós, conhecíamos muito bem. Antes de iniciar o percurso é muito importante avaliar a distância em quilómetros e o número aproximado de horas de que precisamos para a percorrer, pois não queremos ser apanhados pelo escuro no meio de nenhures… Há ainda um ‘pormenor’ a ter em conta: verificar o gráfico de altimetria. Grandes subidas reclamam mais esforço e mais tempo. No nosso caso, estreantes nestas andanças, o primeiro contacto com esta realidade foi, precisamente, ‘trepar’ ao Monte do Bom Sucesso, parte integrante do trilho que hoje descrevo. Para quem, como eu, o ‘forte’ não é subir, foi um pouco duro. Naquele momento, ‘jurei’ que não faria mais subidas como aquela (‘jura’, entretanto, muitas vezes quebrada). O meu objetivo é usufruir, não é sofrer!! Naturalmente, há percursos de níveis de dificuldade muito elevados e com subidas técnicas, mas esse não é o nosso foco. A escolha de hoje recaíra sobre o “Caminho do Bom Sucesso” com início e fim na freguesia de S. João da Fresta, passando por algumas das suas aldeias (S. João, Fresta, Casais, Pinheiro de Tavares e Avinhó). O ponto alto do trilho seria, figurada e literalmente, o Monte do Bom Sucesso, porventura o ponto mais elevado do concelho. Visível à distância em grande parte do trajeto, o seu cume olhava para nós com o ar desafiador de quem sabe o que teríamos de subir para lá chegar. 
 
Partimos de São João da Fresta, junto a uma imagem dedicada a Nossa Sra. de Fátima e à Igreja de São João Baptista. Dali, descemos até à aldeia, um conjunto de ruas estreitas e inclinadas a que o granito dá o tom. Atravessar estas povoações tão remotas revela-nos, ainda que superficialmente, como se vive no país rural real. Se, por contraponto à azáfama das grandes cidades, tudo aqui aparenta calma e tranquilidade, também será verdade que não faltarão motivos de ‘stress’, sobretudo para aqueles cuja subsistência depende do que a terra produz. Terra essa que tem de ser continuamente trabalhada e trabalho esse que pode ser comprometido pelas arbitrariedades meteorológicas. Estes são territórios marcadamente rurais, onde saltam à vista os resultados da luta destes homens e destas mulheres contra a dureza e o rigor das condições naturais, quer do clima, quer da própria morfologia dos terrenos. Cada campo cultivado, cada olival, cada vinha… significa superação, representa uma vitória sobre a adversidade, e simboliza cada um dos passos dados pelo homem na conquista do seu espaço de sobrevivência.
 

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Atravessada a aldeia, descemos até à ribeira de Ludares, com a qual voltaremos a ter um encontro prolongado, mas noutro dia. A ladear-nos, vários campos de cultivo e os sempre bucólicos campos de pastoreio, estes, de tão verdes e direitinhos, parecem campos de jogos. É ali, naqueles pastos, que se alimentam as ovelhas responsáveis pelo famoso queijo da serra, uma das riquezas desta zona do país. A pastorícia é uma das atividades que ainda vai sobrevivendo por ali, embora, pelo que se vai ouvindo, haja cada vez menos rebanhos.
 

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E eis que chegamos a Casais. É sempre uma emoção quando avistamos um aglomerado de casas em forma de aldeia. Faz-nos sentir uns verdadeiros caminheiros. A igreja dá-nos a localização do ‘centro’ e para lá nos dirigimos. Estava calor e queríamos encontrar uma fonte de água fresca. Esperava-nos o Monte do Bom Sucesso e sabíamos que tínhamos uma ‘subidinha’ pela frente. Uma volta pela aldeia e aí vamos nós.
 

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O Monte do Bom Sucesso tem 765 metros de altura. Nós estávamos a uma cota de perto de 600 metros, pelo que só teríamos de subir a diferença. Parecia pouco! O piso, muito inclinado, de terra, as pedras e os torrões de areia soltos, o calor, a ausência de sombras… enfim, a subida não me deixou boas memórias, a não ser as vistas que, para trás, iam ficando cada vez mais bonitas.
 

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Chegados quase ao topo, uma placa indicava um desvio, a 400 metros, para o castro e para a capela, que se situam um pouco mais acima. Andámos os 400 metros e não encontrámos qualquer passagem. Mais 400 metros, 500 metros, 600 metros… e nada. Nesta altura, já só queríamos encontrar o acesso por estrada, que também existe, mas nem sombras do dito. Desolados, voltámos para trás até aos 400 metros iniciais. Apesar de só haver arbustos altíssimos e silvas, tinha de ser ali. E foi pelo meio daquela densa (e picante) vegetação, que escondia também restos de uma calçada romana bastante pedregosa, que subimos. O topo atinge-se subindo uma larga escadaria em patamares. Chegámos a um  terreiro circular murado, que, no centro, tem um marco geodésico. Ao olharmos à nossa volta, imediatamente apagámos da memória a imensa subida. Do cimo daqueles 765 metros, a vista de 360 graus é arrebatadora, abarcando a Beira Alta, a Beira Baixa e mais além... A Estrela, a menos distância, é verdadeiramente impressionante! O pouco fôlego que nos restava depois da subida ficou naquela paisagem! O Monte está classificado como Monumento Nacional desde 1997.
 
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Vias estratificadas e curiosidades linguísticas…
Os restos de calçadas e de estradas romanas, alguns ainda em muito bom estado, que tantas vezes encontramos por estes caminhos, são evidências, entre outras, da presença dos romanos no concelho de Mangualde. Foi grande o legado deixado por este povo durante os séculos que por cá andaram. Entre outras áreas, que em muito contribuíram para o desenvolvimento das regiões que ocuparam, destaca-se a arquitetura, tendo em conta o número de pontes, ruínas de cidades, templos, teatros, barragens, etc, que ainda hoje fazem as maravilhas de quem os visita. Foram também eles os pioneiros da criação de redes de estradas, algo que consideravam fundamental para a consolidação e desenvolvimento do seu Império. Foram, aliás, exímios na arte de construir estradas, cuja técnica consistia na sobreposição em camadas de vários materiais, terminando com um revestimento em rochas ou lajes. A estabilidade do terreno ficava, assim, assegurada. E estavam certos, os romanos, pois não só muitas dessas vias chegaram aos nossos dias quase intactas, como ainda não se inventou melhor processo de as fazer. A única alteração digna de nota é o revestimento em asfalto, apenas por uma questão de maior conforto. Como curiosidade, a expressão que deu origem à palavra ‘estrada’ é a expressão latina, língua falada por eles, via strata. Via estratificada, caminho estratificado ou caminho em camadas, em versão portuguesa. Para tornar a coisa mais fácil de dizer, e porque a língua sofre alterações ao longo dos tempos (ou andaríamos ainda a falar latim), em vez de via estratificada, a expressão foi sendo abreviada até chegar à versão que hoje utilizamos. Outra curiosidade, e prova da importância dos romanos nesta área, é que foi também à via strata que os ingleses e os alemães, cujas línguas não são de origem latina, foram buscar as suas streets e Straßes. O seu a seu dono, até porque o respeitinho é muito bonito.
 
No início, eram os castros…
Mas nem só as estradas romanas se fazem de camadas. A realidade à nossa volta também. Um monte de ‘pedregulhos’ num local remoto pode conter tanta informação sobre um período específico da História! Mesmo para quem, como eu, nunca adorou esta disciplina… E quantas vezes uma construção em ruínas isolada nos pretende dizer que naquele local, em tempos, já houve vida? O topo do Monte do Bom Sucesso é um desses locais. Era ali que se situava um castro, hoje completamente destruído, sendo apenas visíveis vestígios de antigas casas. Pelos achados arqueológicos foi possível ir até à sua primeira ocupação, que terá sido na Idade do Bronze (final). Terá, ainda, sido ocupado na Idade do Ferro e nos períodos romano e medieval. Os castros eram antigos povoados de períodos pré-romanos. Eram construções típicas das montanhas no noroeste da Península Ibérica, havendo em Portugal vários exemplares. Eram fortificados por muralhas, as casas, de pedra e com telhados de colmo, eram maioritariamente circulares, e a sua localização nos topos de montes facilitava a defesa das populações ao permitir o controlo dos campos circundantes. A existência de ruas mais ou menos regulares aponta para algum tipo de organização social avançado. Muitos destes castros foram, posteriormente, ocupados e destruídos pelos romanos, tendo alguns sido aproveitados e expandidos como cidades romanas.
 
Descendo do cume, e seguindo um pequeno troço de estrada romana de lajes graníticas ladeado, à direita, por um muro baixo, e à esquerda, por pilares com nichos e cruzes, chegamos à Ermida da Senhora do Bom Sucesso, construída já no século XVIII.
 
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Deixado para trás o Monte, seguimos caminho rumo à aldeia de Pinheiro de Tavares, rodeados de uma paisagem muito bonita onde predominam espécies arbustivas. Um magnífico souto de castanheiros anuncia que estamos próximos da aldeia e é lá que vamos encontrar uma estela funerária romana com mais de dois mil anos utilizada para peitoril da janela de uma habitação. Com epitáfio e tudo, de alguém de nome Flavina, filha de Flavo, apesar de o texto já estar um pouco gasto. Enfim, a habitação, já com muitos anos, terá sido construída numa altura em que se recorria aos materiais mais à mão. De vez em quando, calhava agarrar-se num ‘pedaço’ de história. Para todos os efeitos, era uma pedra…
 

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Cruzeiros, alminhas, capelas, capelinhas, assim é o espólio que vamos encontrando por estas localidades, geralmente muito pitorescas. Assim é, também, Avinhó, a última aldeia por onde passamos antes de encerrarmos o círculo em direção ao local de partida, São João. Por sinal, um final de percurso bastante agradável proporcionado por um caminho entre muros antigos, áreas de vinha e de pinhal.
 

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Nesta altura, já me tinha esquecido da terrível subida ao Monte do Bom Sucesso e já só pensava no trilho seguinte. Estas caminhadas são, verdadeiramente, viciantes!

 

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