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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

08.05.23

PR4SPS Trilho da Cabra e do Lobo (Aldeia da Pena)


Emília Matoso Sousa
Data: 2 de março 2023
O  percurso
12 Km (fizemos 15,26)  |  Circular |  822 m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Aldeia da Pena; Parede de Escalada; Covas do Monte; Covas do Rio; Livraria da Pena
Localidade
Aldeia da Pena | Aldeia da freguesia de Covas do Rio, concelho de São Pedro do Sul, distrito de Viseu.
Observações
Trilho com trajetos de alguma dificuldade, que poderão não ser adequados a quem sofra de vertigens.

20230302_114430.jpgÉ em plena Serra de São Macário que se desenvolve a Rota da Cabra e do Lobo, cujo principal atrativo é um trajeto conhecido como o 'caminho do morto que matou o vivo'. É um trilho com uma carga lendária grande que, em conjunto com a sua espetacularidade paisagística, faz com que seja obrigatório no currículo de qualquer pedestrianista. 

Até há pouco mais de um ano, achei que nunca seria capaz de fazer este trilho. Porém, a experiência dá-nos a confiança necessária para saber que com persistência (quase) tudo se consegue. Além disso, por maior que seja o cansaço e por muito que os músculos reclamem, a compensação chegará sempre sob a forma de paisagens e cenários inesquecíveis. 

20230302_122349.jpgO percurso arranca da Aldeia da Pena, uma pequena aldeia com casinhas de xisto e ardósia, situada na Serra de São Macário, escondida nas profundezas de um vale e rodeada por maciças e sombrias encostas. Por ali, a vida é assegurada por treze resistentes habitantes que encontram na extraordinária beleza do local a devida recompensa pelo isolamento e condições agrestes proporcionadas pelas montanhas. A criação de caprinos é uma atividade que se vai mantendo por aquelas bandas, pelo que é normal encontrarmos cabras e cabritos a passearem descontraidamente pelas ruelas da aldeia.

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A aventura começa na estrada.
Chegar à Aldeia da Pena implica percorrer uma estrada, linda e cénica, é verdade, mas com uma configuração que nos deixa com os nervos em franja. De via única, na maior parte do seu traçado, íngreme e com curvas muito apertadas, causa algum desconforto pensar que podemos cruzar-nos com outro veículo a meio da subida/descida e, se houver cascalho no asfalto, a probabilidade de o carro ‘patinar’ é grande. A boa notícia é que há trabalhos em curso para a alargar um pouco. Ora, uma intervenção naquele local, por mínima que seja, bloqueia completamente a circulação, e nós fomos contemplados com um desses momentos: estrada impedida, sem qualquer tipo de sinalização na via de acesso. Resultado: hora e meia à espera a assistir ao vai e vem do camião que transportava o monte de rocha cortada. Enfim… nada agradável.

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Mortos que matam vivos. Cabras que matam lobos.
Se há sítios propensos a lendas e mitos, este conjunto montanhoso é um deles. Quando se fala da Aldeia da Pena é inevitável que se lhe associe a lenda do afamado caminho do morto que matou o vivo. Como assim? É que há muito, muito tempo, não havendo cemitério na Pena, os defuntos eram transportados a pé e a braços para a aldeia de Covas do Rio. Por um caminho ‘terrível’ de 3 km, inclinado, pedregoso e vertiginoso. E foi numa dessas missões que um dos carregadores escorregou, provocando que a urna lhe caísse em cima… transformando-o também em defunto. Assim se batizou o caminho com tão sugestivo nome.
Há, ainda, outra versão que fala de uma cabra que, ali, foi perseguida por um lobo. Aflita, tentou escalar uma parede rochosa e caiu sobre o lobo, matando-o e salvando-se.
Entre uma versão e outra mon coeur balance, ou seja, nenhuma auspicia um caminho fácil de fazer. E é este caminho o ex-libris da rota de hoje.

Cobras que comem pessoas. Santos que foram boémios.
O imaginário popular está recheado de lendas. Histórias mais ou menos fantásticas, mas ou menos fictícias, passadas oralmente de geração em geração, através das quais se explica o que muitas vezes não tem explicação. Misturam realidade e fantasia e definem a capacidade de imaginação de um povo ou comunidade. São, pois, um património importante. O centro de Portugal é riquíssimo em lendas e até há uma que explica o topónimo Pena. É que vivia ali uma enorme cobra, que apenas saía do seu buraco para ir ao rio beber água. Nessas saídas, aproveitava para comer o que encontrasse. Ora, as pessoas, para escaparem ao voraz apetite da rastejante criatura, ofereciam-lhe cabras ou outros animais. Sempre que isso acontecia, diziam: "ai, que pena!". Et voilá, estava encontrado o nome para a aldeia. 
Uma boa lenda tem de conter algum drama, pois então! A de São Macário, cujo nome foi eternizado na serra, é disso exemplo. É que, antes de ser santo, Macário era um jovem de boas famílias dado a alguns excessos e extravagâncias. Certo dia, durante uma caçada, matou acidentalmente o pai, após o que mergulhou num profundo desgosto. Como penitência, renunciou a todos os prazeres terrenos e isolou-se na montanha, dedicando-se à oração e à proteção dos animais. E assim viveu, como um eremita e em santidade, até ao fim dos seus dias.  
A Pena é um diamante em bruto que a serra parece esconder avaramente no seu seio (...). Há no estrangeiro muitas coisas que o reclamo apregoa e que o turista snob admira boquiaberto, que não valem a pena.”, Abade de Ribolhos, 1940
Uma breve volta pelas ruas da aldeia antes de nos fazermos ao caminho, faz-nos sentir que viajámos no tempo. Um restaurante e uma lojinha de produtos locais são os únicos pontos de contacto com o resto do mundo. Era cedo e estavam fechados, mas, diz quem sabe, que ali se come divinamente. 

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Saímos da aldeia e rumamos à serra de São Macário, por uma zona arborizada bastante agradável e que nos conduzirá a terrenos pedregosos e escorregadios, devido ao gelo acumulado durante a noite.

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Pouco depois, chegamos a uma encosta muito pedregosa e sem sinais de caminho, a não ser ‘trepar’ a própria encosta. Seria aquilo a parede de escalada referida no folheto descritivo do trilho? E lá tivemos de escalar por entre pedras e pedregulhos. À medida que subimos, a paisagem vai ficando cada vez mais bonita. À nossa volta, montanhas a perder de vista, num jogo entre relevos de cumes arredondados e mais escarpados, entre o verde de fundo e as manchas lilases das urzes que já começam a aparecer. As palavras serão sempre diminutas perante a enormidade de tal paisagem.

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Surpreendentemente, naquele fim de mundo de pedra, encontrámos um pastor  aguardando pacientemente o regresso das suas cabritinhas, que andavam dispersas por aquelas encostas. Surpreendentemente, aquele pastor deslocava-se com recurso a duas canadianas, as quais, segundo nos disse, usa há mais de dez anos. Surpreendentemente, para ali chegar tem de calcorrear um percurso, desde a aldeia de Covas do Monte, de hora e meia. Mas o que mais nos surpreendeu foi ele ser capaz de trepar a encosta e ultrapassar os obstáculos de pedra… Outras vidas, outros costumes, outras resiliências...

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Avançamos para Covas do Monte, mais uma aldeia típica com casas de xisto, erguida no sopé da montanha e rodeada por impressionantes montes. Não fora a rica palete de verdes do mosaico dos seus campos agrícolas, e passaria despercebida naquele cenário dominado pelas encostas imensas da serra. Parece saída de um caderno de desenhos. Ruas estreitas, casinhas de xisto com telhadinhos de lousa… os únicos seres vivos com que nos cruzamos nas ruas são algumas cabras que, aparentemente, partilham pacificamente os espaços com as pessoas.

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A antiga escola primária, hoje transformada em restaurante (da Associação dos Amigos de Covas do Monte), diz-nos que ali já houve animação. Do restaurante, que apenas funciona por marcação, diz-se que são imperdíveis os autóctones cabritos da Gralheira e a vaca Arouquesa. E deve ser verdade! Ali, vive-se da pastorícia. Cabras, ovelhas, vacas… que encontram alimento nas encostas escarpadas que rodeiam a povoação. A agilidade permite-lhes trepar qualquer escarpa, por inacessível que possa parecer. Uma das peculiaridades desta aldeia é o seu rebanho comunitário de cabras, que já terá tido 2500 animais, e que todas as manhãs, bem cedinho, atravessa as ruas em direção às montanhas. Não tivemos a sorte de assistir a este alvoroçado ritual, mas ainda encontrámos alguns caprinos que decidiram ficar em casa. 

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Espera-nos, agora, uma subida “hercúlea”, daquelas que me fazem maldizer tudo e todos, até ao momento em que me rendo incondicionalmente à beleza da paisagem. Mas que é uma subida inclinadíssima, rasgadíssima, lá isso é!

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Dirigimo-nos a Covas do Rio, outra aldeia típica do Portugal rural menos turístico. A agricultura de subsistência e a criação de gado são as principais atividades. É esta a sede da freguesia, englobando Covas do Monte e Aldeia da Pena. É recortada pela ribeira de Deilão. Água, ali à volta, não falta. seja para a rega, seja para as pastagens. As vistas para o vale do Deilão são muito bonitas, bem assim a geometria dos campos agrícolas trabalhados em socalco. Apesar de começarmos a avistar Covas do Rio, logo após a tal subida hercúlea, a verdade é que tivemos de ziguezaguear muito para lá chegar.

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Por caminhos muito bonitos e com trajetos florestais muito agradáveis, é certo, mas a atirar para muito tarde a chegada ao caminho do morto que matou o vivo, o ponto alto do trilho que, sabíamos, tinha de ser bem saboreado. Com calma e com luz. Estávamos a sentir a falta da hora e meia que ficámos retidos na estrada. Além disso, há que confessar que tínhamos alguma apreensão (vá lá, algum receio) relativamente a tão mal afamado caminho.
A certa altura, como que a dar-nos a boas-vindas, ou não, começámos a ver bonecos tipo espantalhos, alguns de aspeto quase assustador, outros mais grotescos, outros apenas peluches, a ladear o caminho. Tanto quanto consegui saber, são ali deixados pelas pessoas que vão passando. Não sabemos qual o ritual ali representado, tampouco se terão algum significado especial… mas que introduzem ali um elemento meio místico, meio enfeitiçado, lá isso introduzem. Finalmente, estamos a chegar ao caminho! Nervos!!

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À medida que avançamos, vamos ficando mais enclausurados entre duas grandes encostas, como duas paredes de pedra, gigantes, ao fundo das quais há uma escarpa de uma altura imensa. E nós íamos ter de a atravessar, para chegar novamente à Pena. Mas como iríamos nós atravessar aquilo?
O piso passa a ser, a partir de agora, praticamente de pedras. No fundo da enorme garganta onde nos encontramos, corre a ribeira da Pena que, ora se ouve apenas, ora se vê. Ora corre calma, formando pequenas lagoas, ora cai em pequenas cascatas. A vegetação  torna-se densa e rica. 

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Caminhamos sobre xisto, camadas de xisto que vão ficando mais estreitas, pelo que todo o cuidado é pouco. Esta parte do caminho é imprópria para quem sofre de vertigens. De obstáculo em obstáculo, vamos avançamos por cima do xisto, que agora assume a configuração de uma escadaria natural e muito irregular. Terá sido ali que o morto fez aquilo que fez? Continuamos a subir o ‘escadório’, mas do acesso à Pena, nem vestígios.
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Antes disso, ainda temos de nos impressionar com a última atração do dia, a Livraria da Pena que, no final daquela subida insana, surge na nossa frente imponente e majestática, do alto da verticalidade dos seus estratos quartzíticos com cerca de 480 milhões de anos. Parece mesmo uma gigante estante de livros. Uma livraria com uma envolvente idílica: árvores raras, quedas de água e, para conhecedores, fósseis de vidas que quase não cabem na História. Mais uns passos em frente e, como que por um golpe de magia, somos ‘teleportados’ para a Aldeia da Pena. 

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Um caminho duro e complicado para quem não aprecia alturas, mas repleto de surpresas e misticismo. Uma espécie de twilight zone onde se entra e de onde se sai por uma pequena porta na rocha. 

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E voltámos à aldeia, já sem luz do Sol, que ali é de pouca dura, e a pedir a São Macário que nos deixasse subir a estrada sem nos cruzarmos sem nenhum carro. Pedido satisfeito! 
Nota final: Apesar da aventura que é chegar à aldeia por aquela estrada ‘manhosa’, a verdade é que ‘valeu a pena ir à Pena’.

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