10.01.23
PR4 MGL: Rota Sra. dos Verdes ou 'em busca da janela do Manuel Lima'
Emília Matoso Sousa
Beira quer já de si dizer beira da serra. Mas não contente com essa marca etimológica que lhe submete os domínios, do seu trono de majestade a esfinge de pedra exige a atenção inteira.”, Miguel Torga, Beira in Portugal
Foi por acaso que entrámos no mundo dos trilhos pedestres. Naquele dia, o objetivo era tentar fazer 15 quilómetros, partindo de Abrunhosa-a-Velha (concelho de Mangualde/MGL) e explorar os arredores. O cenário, por estas bandas, não podia ser melhor. Estamos em plenas terras altas da Beira, e a Estrela, em pano de fundo, oferece-nos paisagens de cortar a respiração.
Perto da localidade, apercebemo-nos de sinalética indicativa de um percurso homologado e decidimos experimentar, até porque sabíamos da existência, ali, de alguns pontos de interesse. Rumámos até à Ermida Nossa Sra. dos Verdes, ponto de partida do percurso. A partir daí, bastava seguir as orientações dos ‘risquinhos’ amarelos e vermelhos.
Caraterização do percurso
8.8 Km | Circular | +248m desnível acumulado | Grau dificuldade 1
Observações | Mesmo sendo um percurso de grau de dificuldade 1, reclama algum esforço de subida, sobretudo na encosta de calçada romana, bem como cuidados especiais na travessia das ribeiras.
Pontos de interesse
Ermida de Nª Srª dos Verdes; Alminhas; Rio Mondego e moinhos; Calçada romana; Moinhos de água da Retorta; Janela Manuelina e Pelourinho de Abrunhosa a-Velha; Igrejas; Apeadeiro de Abrunhosa-a-Velha.
Localidade: Abrunhosa-a-Velha | Freguesia do concelho de Mangualde de que fazem parte as as povoações de Abrunhosa-a-Velha, Vila Mendo de Tavares e Gouveia-Gare.
A Ermida da Nossa Sra. dos Verdes, que se situa a cerca de dois quilómetros de Abrunhosa-a-Velha, terá sido fundada por volta de 1600. Foi erguida para invocação à santa que, segundo a crença, protege a agricultura de pragas e de outras maleitas, propiciando colheitas boas e fartas. De aparência simples e despojada, esta pequena capela de pedra destaca-se na paisagem bucólica e isolada em que se insere e onde, com alguma frequência, é possível encontrar pastores com os seus rebanhos. É também ali que, algumas semanas depois da Páscoa, se realiza uma grande romaria, com missa campal, piqueniques, entre outras manifestações de caráter marcadamente popular.
Seguimos pela estrada municipal (EN 329-2), bastante tranquila e com pouco trânsito, e com paisagens muito bonitas a ladeá-la. De um lado, ligeiras encostas pontuadas de blocos de granito e espécies arbustivas que mudam de cor consoante a estação do ano, do outro, zonas de pequena floresta, e a Serra… Sempre a Serra. A da Estrela, cujo inconfundível e austero contorno nos lembra, a cada instante, que aquele é o seu território. Uma estrada verdadeiramente cénica. Poucos metros à frente, somos ‘encaminhados’ para o rio Mondego. Tendo a sua nascente na Serra da Estrela, sabemos que ele corre por ali, embora nem sempre seja visível. Abandonamos a estrada e iniciamos a descida… longa, muito inclinada, mas em bom piso. A nossa atenção está focada na beleza da paisagem que nos rodeia, típica das terras altas em que o granito predomina. À medida que a descida continua (e se acentua), sem sinais de rio, uma ‘ligeira’ apreensão começa a instalar-se no nosso pensamento: a subida que, inevitavelmente, se seguirá.
Valerá mesmo a pena descer até ao leito do rio? Afinal, é apenas um rio, provavelmente, igual a tantos outros. Nada mais errado! O cenário que se nos apresentou no final da descida valeu todo o esforço que fizemos e que ainda iríamos fazer no sentido inverso. Um autêntico espelho de água, enquadrado por vegetação, e formações graníticas que mais à frente se juntavam para agitar e empurrar as águas no seu percurso descendente. Na margem, ruínas de azenhas, cujos mecanismos, em tempos, se terão movido à custa da força daquelas águas.
Sensivelmente a meio da subida de regresso, uma placa desvia-nos para a direita. Levar-nos-ia a nova direção por caminhos menos inclinados? Claro que não! À nossa espera estava uma ‘belíssima’ calçada de origem romana, em algumas partes bastante sinuosa, e foi ela que nos levou ao cimo da encosta. A boa notícia é que passámos por um ‘complexo’ de antigos moinhos de água (ruínas), os da Retorta e os da Ribeira, que, pela sua quantidade, são bem reveladores da importância que a ‘força motriz’ do Mondego teve para o sustento de muitas pessoas.
As marcas de rodados de carroças escavadas naqueles ‘pedregulhos’ enormes permitem-nos imaginar a movimentação que por ali havia. É difícil acreditar que naquele lugar inóspito e de tão difícil acesso já houve vida. O caminho segue até se passar por baixo da linha da Beira Alta e, de seguida, até à estrada que tínhamos deixado para trás. De permeio, houve duas ribeiras que, literalmente, atravessámos ‘de gatas’, já que as pedras que serviam de passagem estavam soltas e escorregadias. Acontece, por vezes, depararmo-nos com travessias que têm de ser feitas a vau, sendo a alternativa… voltar para trás. Por este motivo, este não é um percurso muito aconselhável na estação das chuvas.
Seguimos rumo a Abrunhosa-a-Velha e a primeira paragem é no seu Apeadeiro. Um simples interface da linha de caminho de ferro da Beira Alta, hoje desativado, inaugurado em 1935 com o propósito de possibilitar o acesso à Casa de Repouso desta localidade (hoje, Hotel Mira Serra, mas fechado), na altura um estabelecimento hoteleiro importante. Mas o que torna este apeadeiro digno de uma visita é o facto de estar decorado com azulejos de Jorge Colaço. Um artista português multifacetado, que viveu entre 1868 e 1942, com inúmeros trabalhos realizados em áreas como a pintura, o desenho, a caricatura, a ilustração ou a azulejaria, tendo-se destacado nesta última pela introdução de processos e técnicas inovadores. A sua mestria está imortalizada nos painéis de azulejos de muitos edifícios espalhados pelo país, sendo, porventura, os mais conhecidos os da Estação de São Bento, no Porto.
No horizonte, há um edifício que se destaca: o Hotel Mira Serra (antiga Casa de Repouso). Chega-nos de 1927 e nasceu da vontade benemérita do Prof. Dr. Sebastião Cabral da Costa Sacadura (1872/1966), um filho da terra que voou alto, formando-se em medicina e distinguindo-se na área da obstetrícia. Foi ainda professor catedrático e desempenhou cargos de chefia em diferentes clínicas e hospitais, tendo tido um papel bastante ativo, em Portugal, na reforma do ensino da obstetrícia, puericultura, enfermagem, sanidade escolar e educação física. O seu objetivo ao mandar construir a Casa de Repouso terá sido “curar fraquezas e constituir repouso para convalescentes”, algo propiciado pelas caraterísticas terapêuticas atribuídas ao microclima ali existente, bem como à composição das águas. Resta acrescentar que, se as vistas curassem, naquele local, ninguém ficaria doente por muito tempo. É que a Serra da Estrela oferece cenários verdadeiramente deslumbrantes. A homenagem a este benemérito está bem presente na localidade, designadamente através de um busto seu em frente a uma escola primária que tem também o seu nome.
A caminhada terminou com um passeio pelas ruas da localidade. A par das casas inteiramente construídas em pedra, tão comuns por estas bandas, há alguns elementos que convidam a um olhar mais atento, seja o pelourinho, o edifício da antiga cadeia, as igrejas…
Em busca do Manuel Lima
De acordo com a descrição do percurso pelas ruas da aldeia, haveríamos de encontrar uma janela quinhentista ou manuelina. Depois de várias voltas, em vão, e já cansados de subir e descer as mesmas ruas, estávamos prestes a desistir, quando avistámos um residente a quem perguntámos onde se situava a dita janela. A resposta do senhor foi surpreendente: “Vivo aqui desde que nasci, e não conheço nenhum Manuel Lima!”. Falhas de comunicação acontecem a qualquer um, mas entendemos que melhor seria deixarmos o assunto para outro dia. Vencidos, demos meia volta e dirigimo-nos à saída. E foi num triste casebre que, por estar em ruínas nos chamou a atenção, que finalmente encontrámos a janela do ‘Manuel Lima’...
O objetivo do dia estava cumprido e superou todas as expectativas. O passo seguinte foi procurar e recolher informação sobre mais percursos. Foi assim que ficámos a conhecer a Rede de Percursos em Natureza promovida pela Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões, que envolve os seus 14 municípios: Aguiar da Beira, Carregal do Sal, Castro Daire, Mangualde, Nelas, Oliveira de Frades, Penalva do Castelo, São Pedro do Sul, Santa Comba Dão, Tondela, Vila Nova de Paiva, Viseu e Vouzela.
Os dados estavam lançados. E os Caminhos da Mil também!