PR4 GVA: Roteiro Literário Vergiliano + Rota rural
Data: 7 março 2022
Dois percursos | urbano: 1 Km, rural: 9 km | Circular | 403 m desnível acumulado | Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Todos os locais do percurso urbano; Chão do Paço; Minas do Caramão
Observações
A classificação ‘moderado’ deve-se sobretudo ao esforço exigido pelos trajetos em subida.
Localidade
Melo | Freguesia do concelho de Gouveia, distrito da Guarda.
Nasci em Melo, na serra da Estrela, a meia distância entre a Guarda e Viseu. E a sensibilidade que tenho aprendi-a ali. Mas é possível que essa sensibilidade fosse não um efeito mas uma causa, que eu tenha criado a aldeia e não ela a mim.", Vergílio Ferreira in Conta-Corrente
Para quem gosta de ler, para quem gosta de literatura de língua portuguesa e, principalmente, para quem gosta de Vergílio Ferreira... este é o roteiro! Realizado em Melo, terra natal do escritor, e composto por duas partes distintas (uma urbana, outra rural), o percurso proporciona-nos uma incursão no universo de um dos nomes maiores das letras em Portugal na segunda metade do século XX.
Começámos por percorrer as ruas de Melo, a aldeia "eterna" do escritor, onde ele passou toda a sua infância, para conhecer todos os locais que o marcaram e que ele tão bem levou para dentro das suas obras, praticamente sem quaisquer alterações. Os lugares, os monumentos, as igrejas, as casas, a escola onde aprendeu a ler, as paisagens de Melo, a Serra... Por isso, a homenagem está por todo o lado. Tudo começa na Praça Central que, por ocasião do centenário do nascimento do autor (2016), foi requalificada e dedicada à sua vida e obra. Depois, é seguir o roteiro e deixarmo-nos levar. Em cada local de referência, há excertos de textos com a identificação das respetivas obras. Caso as tenhamos lido, é tempo de relembrar, caso não tenhamos, fica suscitada a curiosidade.
O roteiro literário
Mas quando volto com a mala - a casa. Olho-a ainda, não me canso de a olhar. É alta, toda de amarelo, agora desbotado. Lojas, dois pisos. As empenas chanfradas, um ar poliédrico no seu facetado. E o olhar cego das janelas, cerradas. Bloco imóvel e à volta um ressoar grande de espaço.”, Vergílio Ferreira in Para Sempre
O roteiro passa pelos seguintes locais, bem identificados em obras do autor : Casa onde nasceu (Para Sempre); Pelourinho (Na Tua Face); Capela de Nossa Senhora da Conceição (Conta-Corrente); Casa de S. Caetano (Mudança; Diário Inédito); Escola dos Rapazes (Vagão 'J'; Alegria Breve; Signo Sinal); Loja do Nunes (Onde tudo foi Morrendo; Diário Inédito); Correio e Taberna do Coxo (Signo Sinal); Capela da Misericórdia (Para Sempre; Alegria Breve); Capela do Senhor do Calvário e Torre do Paço (Vagão 'J'; Contos); Casa dos Beja Neves (Manhã Submersa); Casa dos Pais de Cláudio de Até ao Fim (Até ao Fim); Casa do Pároco (Alegria Breve; Para Sempre); Igreja Matriz (Alegria Breve); Rampa (Alegria Breve); Casa de Gertrudes – Santa Vieira/Santa Moreira (Alegria Breve); Rua das Casas Queimadas (Para Sempre); Tronco do Ferrador (Signo Sinal); Casa dos pais de Vergílio Ferreira (Para Sempre); Ribeira dos Namorados; Minas do Caramão; Capela de Santa Eufémia.
Vergílio Ferreira saiu de Melo após concluir a escola primária com o objetivo de continuar o seu percurso de estudante (Fundão, Guarda e Coimbra). Estudou seis anos no Seminário do Fundão, experiência que o marcou profundamente e que tão bem ilustrou no seu romance Manhã Submersa. Foi, aliás, através deste romance que, ainda estudante, 'conheci' o autor. Uma obra que me marcou profundamente e que, em grande parte (toda?), ainda se mantém atual. É um daqueles escritores que, de vez em quando, revisito sempre com redobrado prazer. Melo e a Serra da Estrela (e a neve) foram o que mais moldou a sua essência, algo que se percebe nas referências que lhes faz nas suas obras. Como nota final, Vergílio Ferreira foi professor de português, nos liceus de Faro, Bragança, Évora (cidade que também deixou marca na sua obra - Aparição) e Lisboa, no Liceu Camões, onde terminou a sua carreira. A sua obra foi multifacetada, abrangendo, a par do romance, áreas como o ensaio, o conto, ou o diário. Acima de tudo, era um pensador (ou um escritor filósofo, de acordo com alguns dos seus estudiosos). Morreu em 1996 e está sepultado na sua aldeia, tendo pedido para ficar voltado para a Serra...
A Estrela. "Plácida. Imensa. Definitiva." (Para Sempre)
Neve, desolação do Inverno e o augúrio dos ventos e a presença física e metafísica da montanha que de um extremo da aldeia se vê desdobrar-se em toda a sua massa, e o erguer por detrás dela a Lua de Verão são entre outros os motivos que se me fixaram largo tempo para saber ser sensível e entender-me a mim próprio.", Vergílio Ferreira in Conta-Corrente
É impossível viver nas encostas da Serra da Estrela e não sentir a sua influência. A sua impressionante volumetria, que ocupa toda a paisagem, o rigor e a inclemência das suas temperaturas, ou a intransponibilidade de grande parte do seu território terão, certamente, moldado as populações que a rodeiam e habitam. Não lhes terá proporcionado um processo de adaptação fácil, mas acredito que as terá dotado de um caráter forte, cimentado no orgulho de 'conviverem' com a serra 'rainha', a mais alta do nosso território continental. E é numa dessas encostas que se situa Melo, uma aldeia serrana, rural e discreta que, de forma quase improvável, respira literatura em quase todos os seus recantos. Tudo por causa da homenagem que o município lhe prestou, 'salpicando' toda a aldeia com referências das suas obras.
Serra acima e serra abaixo…
Há em Melo um edifício que chama a atenção pela sua dimensão. É o Paço de Melo, um imóvel classificado que, ainda que em adiantado estado de ruína, mantém a imponência e dignidade que terá tido no passado. A sua origem remonta aos séculos XIII/XIV e era a residência senhorial do primeiro Senhor de Melo. Terá, certamente, muitas histórias para contar, sendo uma delas o facto de ter servido de refúgio ao Bispo da Guarda durante as invasões das tropas napoleónicas. Saímos de Melo e, imediatamente, começamos a subir... a serra. Uma subida daquelas tão rasgadinhas que quase nos obriga a levar as mãos ao chão. Os sulcos rasgados na pedra indiciam que, em períodos de chuvas, constituirão desafios a ter em conta. Como que de repente, olhando para trás, o casario da aldeia começa a ficar minúsculo, e cada vez mais minúsculo.
A corrida ao 'ouro negro'
Chegamos a uma antiga exploração de volfrâmio, as minas do Caramão. Encontram-se muitas pelas nossas serras. Marcas profundas deixadas, sobretudo, após a corrida ao 'precioso' minério, sobretudo durante a segunda grande guerra mundial. Por ser duro e resistente ao calor, o volfrâmio era utilizado para fabricar armas e munições. Portugal foi um dos principais países produtores, abastecendo ingleses e alemães. As cotações deste "ouro negro" subiram e originaram atividades clandestinas, desvios de minério e até falsificações. Muitas famílias dedicaram-se, noite e dia, a explorar o "volfro" que ali estava naqueles filões, como forma de aumentar os seus frágeis rendimentos dependentes da sazonalidade da agricultura. Pontualmente, fizeram-se fortunas.
A encosta onde nos encontramos guarda ainda muitas cicatrizes deixadas pelos incêndios de 2017. Troncos carbonizados, ruínas de pequenas casas que pouco mais são do que uma sobreposição de pedras sobreviventes. Não há palavras capazes de descrever tão enorme desolação. A vegetação arbustiva já começou a fazer o seu trabalho mais ou menos regenerador, mas há demasiados troncos queimados a entristecer a paisagem. Ainda assim, passamos por algumas quintas que foram poupadas à fúria dos fogos, mas que, é fácil de imaginar, terão passado por momentos de verdadeiro horror. Em zonas não muito distantes, a tragédia repetir-se-ia em 2022.
Deixada a encosta para trás, e depois de atravessar uma estrada asfaltada, entramos em paisagem rural, onde se destacam olivais antigos, e por ela regressámos até ao nosso ponto de partida.
O ponto diferenciador do percurso foi, sem dúvida, o roteiro literário, que nos proporcionou 'entrar' dentro da obra de Vergílio Ferreira, com passagem por alguns dos seus recantos mais emblemáticos. É de louvar a incrível homenagem feita por quem de direito a quem de direito. Na sua componente urbana, este roteiro pode ser feito com um guia, partindo da Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira, em Gouveia. Imperdível para os apreciadores!
Para terminar em grande só faltava mesmo encontrar um sítio onde pudessemos dar resposta a algum 'apetite' que, entretanto, começara a fazer-se sentir. E não é que encontrámos um bem catita? Pãolourinho de seu nome, por se situar junto... ao pelourinho. Um café/ restaurante/ bar/ alojamento local muito castiço e acolhedor, que funciona também como espaço de exposição da obra de escultura em madeira do seu simpático proprietário que, nas horas vagas, ainda consegue ser artesão.