7 novembro 2022
O percurso | 14 km (fizemos 16,44), 106 m desnível acumulado
Localidade | Peroguarda, concelho de Ferreira do Alentejo, distrito de Beja
Povo que canta não morrerá.", Michel Giacometti
Este poderia ser o cartão de visita da aldeia de Peroguarda, de onde hoje partimos para a descoberta de mais um pedaço de Alentejo profundo. O Alentejo da planície sem fim, das grandes propriedades, das searas e das espigas douradas, dos girassóis, dos calores abrasadores... Pensando melhor, este era o Alentejo de antigamente. Hoje, com a água de Alqueva, o panorama agrícola está completamente alterado e os campos de culturas tradicionais alternam com os de intensivo, onde proliferam extensos olivais, amendoais, vinhas de uva de mesa e até nogueirais. Tudo isto estaria muito certo se fossem respeitados os desejados equilíbrios. Ora, como é sabido, sempre que há lucros envolvidos, os equilíbrios e as preocupações ecológicas ficam apenas no papel, e o que está a acontecer é que as culturas tradicionais estão a desaparecer em prol de formas de cultivo mais lucrativas. Pessoalmente, tenho sentimentos contraditórios em relação a este tipo de culturas, não apenas pelo quase certo impacto ambiental de proporções eventualmente desconhecidas, mas também pela alteração profunda que introduzem na paisagem alentejana. E a cada dia que passa, novos campos de oliveiras e amendoais são plantados com milhares de árvores rigorosamente iguais e alinhadas ao milímetro. Dá que pensar.
Mas voltemos a Peroguarda. Uma pequena aldeia alentejana com as suas casinhas brancas debruadas a amarelo, azul ou laranja, a sua igreja, toda branca, a marcar o centro da localidade, o seu Cruzeiro da Independência... Nas ruas, como se diz no Alentejo 'não se vê vivalma'. Mais uma aldeia semelhante a tantas outras. Porém... Peroguarda tem mais para nos contar do que parece.
Etnografia e folclore
Quem diria que aquela pequena aldeia baixo-alentejana está associada a dois importantes nomes que se destacaram no mundo dos estudos etnográficos do Alentejo e não só. Joaquim Roque (1913-1995) é um deles. Natural de Peroguarda, professor, jornalista, escritor, etnólogo e folclorista, dedicou grande parte da sua vida aos estudos etnográficos do Alentejo. Alentejo Cem por Cento e O Baixo Alentejo no Cancioneiro Nacional são duas das obras que deixou publicadas. O outro é Michel Giacometti, um corso que, em 1959, se instalou em Portugal, país que lhe conquistou o coração e onde permaneceu até à sua morte, tendo desenvolvido parte do seu trabalho em Peroguarda, aldeia que também abraçou como sua. Ambos estão bem retratados nas paredes exteriores da Junta de Freguesia local, como que a darem as boas-vindas a quem ali chega ou por ali passa.
Michel Giacometti (Córsega, 1929 - Portugal 1990)
(Re)conhecido etnomusicólogo com uma vasta e importante obra desenvolvida em prol da memória históricomusical e etnográfica de Portugal. Foi responsável pela "recolha e preservação de saberes ligados à música que o povo canta, aos saberes culturais ancestrais e à memória registada ao longo de gerações". Entre outras obras de relevo, elaborou o Cancioneiro Popular Português, com a colaboração do compositor, e também musicólogo, Fernando Lopes-Graça. Do cancioneiro, para o qual fez recolhas por todo o país durante mais de uma década, o mínimo que se pode dizer é que é um autêntico tesouro, ao reunir uma compilação vastíssima e riquíssima da música popular portuguesa. Viveu em Portugal entre 1959 e 1990, estando sepultado, a seu pedido, precisamente, naquela aldeiazinha alentejana. A homenagem a este estudioso não se esgota nas paredes da Junta de Freguesia. Há outra que se repete anualmente - o Festival Giacometti - em que os sons do passado se juntam aos do presente em saudável convivência, celebrando e respeitando o espírito do homenageado, e provando que, culturalmente falando, o caminho que se tem pela frente é tão importante como aquele que nos levará ao futuro. O evento realiza-se em junho, em Ferreira do Alentejo, e é um mix de várias expressões, como a música, as artes, o cinema, a antropologia ou a dança. A gastronomia alentejana completa o 'pacote'. Imagino que deve ser animado!
A aldeia mais alentejana de Portugal
Como assim? Será verdade? Tantas vezes ali tenho passado a caminho do meu Alentejo e desconhecia esta 'distinção'. Para tudo há uma explicação e este 'enigma' não será exceção. Corria o ano de 1938, quando se realizou o concurso para a "Aldeia mais Portuguesa de Portugal", cuja honra coube, como é sabido, a Monsanto. O que não é muito sabido é que Peroguarda esteve na corrida, já na fase final, em representação do Alentejo, a par de outras três aldeias, Outeiro e Orada (Alto Alentejo), e Salvada (Baixo Alentejo), tendo obtido a melhor classificação. Ora, nestas coisas de concursos, o importante é participar e chegar à final e, portanto, e com todo o fairplay, o título de "aldeia mais alentejana" é que ninguém lhes tirou. As coisas que se aprendem nestas caminhadas!!
Antes de iniciar o percurso, percorremos, como sempre fazemos, as ruas da aldeia, por sinal muito bonitas, com algumas casas a merecer atenção especial. A igreja paroquial, em honra de Santa Margarida, com traço de construção estilo popular com alguns elementos de inspiração barroca, terá sido fundada entre os séculos XV e XVI, e encanta pela sua brancura e simplicidade. No Alentejo, há muitas destas igrejas que primam por uma certa ingenuidade. Passamos ainda pelo Padrão dos Centenários (Cruzeiro da Independência).
Iniciamos a nossa caminhada, dirigindo-nos para outra pequena aldeia, Alfundão, pelo recém inaugurado passadiço de madeira, que ladeia a estrada e liga as duas aldeias.
De um lado e do outro, campos cultivados e olivais. Estamos numa zona de azeite e o de Alfundão tem excelente fama. Pode ser comprado no lagar situado logo na entrada da aldeia.
Damos uma volta pelas ruas e saímos por uma pequena ponte em pedra, de origem romana, que poderá evidenciar a antiguidade da aldeia. Entramos em terrenos rurais, onde a criação de gado ainda subsiste e cuja visão nos transporta para um tempo que já quase não é desta era.
Continuamos a andar e chegamos aos campos agrícolas, em que as culturas tradicionais vão perdendo terreno para as mais modernas. Longe vão os tempos em que as lindas searas cobriam aqueles solos. As vinhas de uvas de mesa, os olivais e os amendoais de intensivo são os novos donos 'daquilo tudo'. Percebe-se a transformação operada por Alqueva. Uma extensão de terra lavrada pode significar que estão a preparar o solo para novas plantações... Passamos por alguns meloais, que nos deixam percecionar a dimensão da planície. A época do melão já terminou e no campo apenas restam os que não passaram no controlo da qualidade. Também não passaram no nosso controlo, pois provámos um e era intragável. Ainda assim, é uma imagem bonita. Algumas árvores isoladas sobressaem na imensa planície. São as azinheiras e as suas famosas sombras, traço tão identitário do Alentejo...
E chegamos novamente a Peroguarda, fechando o círculo do nosso trajeto. No regresso ao nosso poiso alentejano, ainda nos cruzámos com umas simpáticas vaquinhas que, pachorrentamente, tratavam de alimentar os seus complicados estômagos. Diz-se que são quatro (três pré-estômagos e um estômago)...