14.04.23
PR3 SAT: Rota do Barrocal (Sátão)
Emília Matoso Sousa
Data: 9 maio 2022
O percurso | 14 km (fizemos 15,7) | Circular | 208 m desnível acumulado | Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Santuário do Sr. da Agonia; Laje da Deguedinha; Capela N. Sra. do Barrocal; Geomorfologia granítica
Localidade
Avelal | Freguesia do município de Sátão, distrito de Viseu.
Avelal, de Avelanal, terra de avelãs. É na freguesia de Avelal, mais exatamente no Santuário do Sr. da Agonia, que tem início o percurso que nos vai dar a conhecer mais alguns pontos de interesse do concelho de Sátão.
O santuário é um desses pontos. Inserido num enorme penedo, transmite, desde logo, a impressão de algum misticismo. E não é que o local está associado a uma lenda? Consta que certo cavaleiro viveu momentos de pânico quando, ao ser perseguido por assaltantes quando cavalgava por aqueles montes e penedias, se viu na iminência de cair num precipício. Em desespero, apelou ao N. Sr. da Agonia que, imediatamente, o acudiu, revelando-se debaixo de um penedo e fazendo com que o cavalo parasse. Há até quem diga que as marcas das ferraduras ainda lá estão. Eram épocas muito férteis em acontecimentos extraordinários, se contabilizarmos todas as lendas que por ali rezam… Em todo o caso, trata-se de um local de culto bastante peculiar e a tirar partido da geomorfologia local, onde os penedos abundam. A imagem do Sr. da Agonia, no entanto, encontra-se atualmente na Sé de Viseu, ali permanecendo uma imagem mais pequena.
Iniciamos a nossa rota e o primeiro trajeto leva-nos por um extenso pinhal onde ainda se faz extração de resina, algo que não é muito frequente nos dias de hoje. E pela floresta avançamos até Douro Calvo, onde não vamos visitar o Museu Municipal de Gulfar por ser segunda-feira e estar encerrado. Atravessamos a localidade e dela saímos passando por um contínuo de campos de cultivo, até chegar à Laje da Deguedinha, uma mega eira que, em conjunto com alguns edifícios, hoje em ruínas, constitui uma forma primitiva de celeiro comunitário. Na eira malhavam-se e secavam-se os cereais, nas casas armazenavam-se. Em terras de granito há muitas eiras ‘naturais’... basta aproveitar as que ‘brotam’ dos solos, como a da Deguedinha. Esporadicamente, presumo que em ocasiões especiais, ainda é utilizada.
Uma estrada cénica
Deixamos para trás o ancestral celeiro e pouco depois entramos numa estrada asfaltada, daquelas que poderiam ter sido projetadas por um paisagista diplomado, aproveitando cada um dos pedaços do horizonte que se apresenta em verdadeiras telas. As árvores e os blocos de granito que a ladeiam fazem o resto. Estamos em território montanhoso e as formações rochosas graníticas são uma constante. À medida que vamos subindo e nos vamos aproximando do sítio arqueológico do Barrocal, as rochas vão tomando conta da paisagem, até se concentrarem todas num imenso oceano de pedra. A natureza tem, de facto, o condão de nos fazer sentir muito pequeninos e é assim que nos sentimos perante a visão destes conjuntos colossais de rochas. Desolador, mas extremamente belo. Como entender esta nossa atração pelos contrastes?
Barrocal: Um sítio arqueológico
Estamos nas proximidades das aldeias de Carvalhal e Romãs. Tudo à nossa volta é pedra. Granito. Formações rochosas graníticas de tamanho variável, algumas de tamanho gigante, outras com formas muito peculiares, outras, ainda, num aparente equilíbrio precário. Quem as terá pousado ali?
E é neste ambiente que, numa elevação de tors graníticos, surge o sítio da Sra. do Barrocal. Tors graníticos ou, de forma muito simples, “grandes afloramentos rochosos que se erguem abruptamente do solo, como resultado da erosão” ou, simplificando ainda mais, “blocos graníticos empilhados”. A par da extraordinária beleza natural do local, bem como da espetacularidade das vistas para o vale da ribeira de Côja, aqui se edificou, noutra era, um povoado fortificado. Por sinal, um sítio de grande relevância arqueológica, tendo já sido alvo de três campanhas de escavações, a última em 2016. Alguns dos achados, sob a forma de objetos, sementes de leguminosas e cereais, espaços habitacionais e de armazenagem, entre outros, encerram informação sobre como era a vida daquelas comunidades rurais enquanto ali viveram, pelo menos até ao século X.
Quanto ao povoado que ali existiu, é interessante ver como o homem, desde sempre, em resposta às suas necessidade, soube tirar partido das condições e recursos naturais do meio envolvente. Neste caso, isso é visível, ainda que na presença de apenas alguns vestígios, na forma como os enormes tors graníticos foram usados como pontos de ligação entre os muros feitos de pedra aparelhada. Por outro lado, tudo foi feito para que, não se perdendo o controlo do vale, o povoado passasse o mais possível despercebido a partir das cotas mais baixas. Conceitos muito vernaculares de arquitetura que, nos tempos atuais, tendem a ser recuperados em nome da sustentabilidade ou de uma maior harmonia com o meio natural. É, de facto, curioso e muito elucidativo de como a arquitetura sempre teve por base a relação do homem com o espaço que o rodeia e a forma como o organiza, tendo sempre (e desde sempre) presente a vertente funcionalidade. No centro há um enorme tor, onde agora se encontra um abrigo natural.
Os achados no local permitem, também, afirmar que a utilização religiosa do espaço remonta ao século X (971). No entanto, terá sido no início do século XVIII que a ermida da N. Sra do Barrocal foi mandada construir pelo Bispo de Viseu, D. João de Melo, para o culto da Sra. das Candeias e de S. Brás, celebrações que ainda hoje ali se praticam.
Deixamos as pedras para trás, ou assim pensávamos que ia acontecer, e dirigimo-nos para a povoação de Romãs, ali bem pertinho. Porém, a sinalética teimava em orientar-nos para a encosta de um monte onde só avistávamos pedregulhos. Não podia ser por ali! Mas era. Um caminho antigo, usado no tempo em que não havia estradas ou outro tipo de acesso. E foi a trepar, mais do que a caminhar, que fizemos a subida. Mais uma vez, comprovámos que as melhores coisas são as que dão luta… e aquele trajeto foi dos mais bonitos que fizemos até hoje.
Do outro lado, Romãs apresentou-se-nos como uma pequena aldeia beirã, onde se destaca a sua igreja matriz e as suas casas predominantemente de pedra. O percurso até Avelal, a nossa meta, fez-se por caminhos rurais e florestais. Avelal tem a particularidade de se dividir em duas partes bem distintas: uma parte velha recheada de casas de granito, em grande parte muito bem recuperada; e uma mais moderna, com habitações de construção mais atual, algumas a evidenciar que estamos numa zona de emigração.
De Avelal, parte a Via Sacra até ao Santuário Senhor da Agonia, o nosso ponto de partida, agora de chegada. E lá a percorremos, passando pelas tradicionais 14 estações ou etapas que ‘ilustram’ as cenas da Paixão de Cristo… sempre a subir o que, na reta final, já custa um pouquinho.
Foi, pois, com chave de ouro que encerrámos Sátão. Três trilhos (Rota dos Míscaros, Rota do Barroco, Rota do Barrocal) bastante diferentes entre si, mas todos muito interessantes, com trajetos memoráveis e com muitos testemunhos de que a história daquele território se perde no tempo. Há, claramente, duas forças que são uma constante: o granito e a fé, seja pela paisagem dominada pelas formações rochosas graníticas, seja pela quantidade (e qualidade) do património religioso ali existente. Este terá sido, inquestionavelmente, um território ‘duro’ de vencer, mas não o suficiente para derrotar a resistência daquelas gentes que tão bem moldaram o meio, dele tirando todos os benefícios essenciais à sua sobrevivência.