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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

22.02.23

PR2 PCT/MGL: Caminho dos Galegos | Rota de Santiago


Emília Matoso Sousa
O  percurso
7 Km   |   Circular   |   150 m desnível acumulado   |   Grau dificuldade fácil
Pontos de interesse
Aldeia de Mareco; trilhos rurais murados; sítio de Pousadas; poldras; antigo hospital/albergue dos peregrinos; azenhas; escorrega natural..
Localidade
Mareco | Localidade do concelho de Penalva do Castelo. Deste concelho fazem parte as freguesias de Castelo de Penalva, Esmolfe, Germil, Ínsua, Lusinde, Pindo, Real, Sezures, Trancozelos, Antas e Matela, Vila Nova de Covelo e Mareco.
 
Pelos caminhos da fé…
Se há palavra que conduz a reflexões 'filosóficas' é a palavra ‘caminho’. E, se a associarmos ao gentílico ‘galego’, é certo e sabido que vamos dar a Santiago, aquele por quem, desde o século IX, muitos milhares de peregrinos de todo o mundo têm percorrido caminhos. Os Caminhos de Santiago. Pois bem, o trilho de hoje foi, precisamente, criado por esses caminheiros que se dirigiam à Galiza para prestar homenagem ao Apóstolo. Desconheço se ainda será utilizado, mas está ali como testemunho de muitos séculos de peregrinações, fazendo parte  da imensa rede de rotas jacobeias que cruzam a Península Ibérica e a Europa. Situado num vale e enquadrado pelo monte Cabeço de Vela e a Serra da Lapeira, este é um percurso curto, mas carregado de mística.

20220304_170107.jpg20220304_152602.jpgUma alminha de granito como que pousada em cima de um muro antigo marca o local de partida. Apesar da sua simplicidade quase ingénua, estes elementos escultóricos simbolizam religiosidade, fé e devoção, e por isso é comum encontrá-los nos sítios mais inusitados, desde caminhos rurais isolados até junto aos portões de algumas habitações. Imediatamente, entramos num caminho muito antigo, cujo piso é de lajedo em granito, sendo bem visíveis os sulcos deixados, noutras eras, por rodados de carroças. Quantas vezes e durante quanto tempo terão aquelas ‘estradas’ sido percorridas? E por quem? Não consigo deixar de me surpreender! Já os muros, parece que nasceram ali espontaneamente e não por obra e graça de mão humana. 

20220304_170300.jpg20220304_161425.jpg20220304_144113.jpgEste é um caminho que evidencia a prática de agricultura de subsistência, bem como da pastorícia, já que, quase sempre, seguimos ladeados de campos de cultivo ou de prados, alguns ocupados por rebanhos. Aqui e ali, atravessamos pequenas florestas de pinhal, mas também de árvores como carvalhos, oliveiras, freixos, algumas de porte impressionante, sem esquecer as variadíssimas espécies arbustivas que conferem à paisagem aquele toque decorativo que muda de cor consoante a estação do ano. De facto, uma paisagem humanizada q.b., a não interferir negativamente com a natureza e biodiversidade. 20220304_161802.jpg20220304_161926.jpgPassamos pela aldeia de Pousadas e percorremos as suas pitorescas ruas. Ali, vive-se pacatamente, as ruas estão quase desertas. Sempre por caminhos rurais, dirigimo-nos para a já nossa conhecida Ribeira de Ludares, que fizemos questão de atravessar sobre as poldras em detrimento da alternativa ponte de madeira, tal como terão feito os verdadeiros peregrinos. As ribeiras surgem, geralmente, integradas numa paisagem de grande beleza, e esta não é exceção. Vale a pena fazer uma breve paragem para alguns momentos contemplativos. Neste dia, o céu estava particularmente bonito, pelo que tudo à volta ganhava um encanto ainda maior.

20220304_153329.jpg20220304_153054.jpg20220304_153028.jpg20220304_153408.jpg20220304_153721.jpgSeguia-se o antigo Hospital dos Peregrinos, a prova maior da passagem dos mesmos por aqueles campos. Hospital no sentido de ‘hospedagem’, ‘sítio onde se hospedam pessoas’, e não no sentido que, posteriormente, veio a ter de ‘local onde se tratam pessoas’. Atualmente, os alojamentos que acolhem peregrinos são designados como albergues. E que hospital! O edifício, quase em ruínas, é surpreendente, não apenas pela dimensão do edificado, mas também pelas áreas exteriores que abrange, onde se vislumbram grandes áreas de cultivo. A quantos peregrinos terá proporcionado abrigo? Muitos, certamente. 

20220304_153735.jpg20220304_153847.jpg20220304_153828.jpg

 

E, se lho pedir a sensibilidade, registe, por sua vez, o que viu e sentiu. O que disse e ouviu dizer.", José Saramago in Viagem a Portugal
Relembro, a este propósito, que as movimentações de peregrinos de toda a Europa, ao longo de cerca de doze séculos, muito contribuíram para o desenvolvimento dos sítios por onde passavam. Por todo o lado, se foram erguendo igrejas e fundando mosteiros, ao mesmo tempo que se construíam hospitais, refúgios e outras estruturas de apoio aos peregrinos. Pode afirmar-se que o fenómeno ‘Santiago’ deu (e continua a dar) um contributo importante para a construção de uma identidade europeia, tendo deixado marcas por todo o lado e Portugal não é exceção. Por todo o país existem igrejas dedicadas ao Apóstolo, bem como misericórdias, hospitais, albergarias, ermidas… Mas também ao nível da toponímia, com muitas localidades a conterem no seu nome referências a Santiago (ex: Santiago do Cacém, Santiago de Cassurrães…), São Tiago, Albergaria, Hospital, etc. E quem nunca ouviu falar na Ordem de Santiago?
 
A visão daquela impressionante construção, ali, no ‘meio do nada’ conduz-nos, inevitavelmente, a um conjunto de questões. Como terão sido as peregrinações de outrora? Que sinais terão conduzido a bom porto aquelas pessoas em épocas em que os meios de comunicação eram tão precários? Que perigos terão enfrentado naquelas terras tão isoladas e inóspitas? E como terão sabido que aquele albergue ali existia? Para muitos de nós, que já quase não passamos sem GPS,  tudo isto é, no mínimo, assombroso.

20220304_155328.jpgMais à frente, voltámos a cruzar a ribeira e iniciámos o regresso a Mareco. Através de um pequeno desvio, visitámos ainda umas antigas azenhas. Equipamentos do ‘antigamente’ que hoje consideramos pitorescos, mas que estão na base dos grandes avanços tecnológicos. No caso presente, a utilização da energia gerada pela movimentação das águas da ribeira para fazer funcionar o mecanismo de moinhos e azenhas. De engenheiro e de louco o homem sempre teve um pouco, essa é que é a verdade.

20220304_161237.jpg20220304_163250.jpg20220304_163319.jpg20220304_164324.jpgE chegámos ao ‘escorrega natural’, uma enorme e curiosa formação granítica que, por via da erosão, ganhou uma zona pela qual se pode escorregar. É uma experiência divertida, mas a reclamar algum cuidado.

A empreitada estava a chegar ao final e, à nossa espera, tínhamos ainda um último ‘ponto de interesse’. Uma paragem reconfortante (para os estômagos) no bar Parque de Santiago, ali mesmo à beira da estrada, em Mareco. Um espaço muito agradável, com bons ares, boas vistas e bons petiscos, ingredientes mais do que suficientes para tornar o dia ainda mais memorável.

20220304_164938.jpg20220304_170450.jpg20220304_171827.jpg20220304_172046.jpg