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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

18.01.24

PR2 GVA Caminhos de Fé | Gouveia


Emília Matoso Sousa
Data | 15 abril 2022
O percurso | Circular | 16 Km (fizemos 20 Km) | 420 m desnível acumulado | Moderado
Localidade | Gouveia, distrito da Guarda
 
Sem necessidade de raciocínios rebuscados, facilmente se deduz qual o tema do percurso que hoje nos vai dar a conhecer as localidades de Aldeias, Mangualde da Serra, Moimenta da Serra e Vinhó, e respetivas envolventes, marcadamente rurais. A fé. A fé, tão enraizada na religiosidade e no modo de vida daquelas populações beirãs ao longo dos séculos e que fez nascer um património religioso rico e variado que se nos mostra a cada passo. Contas feitas, são dez capelas, sete alminhas, cinco igrejas, uma ermida, um convento e um antigo colégio jesuíta os exemplares que vamos encontrar durante o nosso percurso. É obra! 
 

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À semelhança de tantos outros trilhos, também este nos vai conduzir por caminhos antigos. Caminhos utilizados, há muitos anos, para a deslocação entre aldeias. Sem estradas e sem carros, a não ser os puxados por animais, ainda assim, as pessoas tinham de realizar as suas transações comerciais e isso implicava sairem das suas terras. Esses caminhos são muitas vezes, à luz dos nossos padrões atuais de apreciação, desconfortáveis, inóspitos e, até, perigosos, mas os seus traçados correspondem ao melhor que era possível, tendo em conta a morfologia dos terrenos. 

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Feitos de muito sobe e desce e a 'rasgar' atalhos sempre que possível, a verdade é que estes são caminhos mais curtos do que as estradas entretanto construídas. Porém, de um modo só podem ser calcorreados a pé. Eram também usados pelos romeiros nas suas movimentações até aos locais dos seus santos de devoção. Quantas promessas terão por ali passado? As romarias são, aliás, uma prática ainda hoje muito comum naquela região do país, como o são também as muitas lendas e mistérios associados àqueles lugares. Sem dúvida, um património cultural imaterial riquíssimo que atrai cada vez mais pessoas de fora, em busca de experiências diferentes, de tradição e de autenticidade.
 
Iniciamos a caminhada em plena cidade de Gouveia, no Monte do Senhor do Calvário, junto à capela com o mesmo nome. Outrora conhecido como o Monte Ajax (nome da ribeira que atravessa a cidade) é, porventura, um dos principais pontos de devoção da região. É a este santo que são consagradas as festas anuais de Gouveia, em agosto, um evento que se realiza desde 1838 e que, na atualidade, traz milhares de pessoas a esta cidade da Beira Alta. Vencida a escadaria que nos leva ao topo, é lá que se situa a capela setecentista, bem como duas capelinhas que representam a Agonia de Cristo no Horto e o Beijo de Judas, dos passos da paixão de Jesus. Um local muito apreciado e com muito significado para os crentes, seguramente.

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Aproveitamos para apreciar a paisagem que, daquele 'camarote' onde nos encontramos, é imensa. A plataforma do Mondego está ali toda ao alcance do nosso olhar.   
 
Descemos a escadaria e os primeiros passos dão-nos a conhecer algum do património edificado gouveense mais emblemático. Apercebemo-nos de que há muito para ver e percorremos algumas ruas em busca de ideias para uma próxima visita. A Casa da Vivência Judaica, o Museu da Miniatura Automóvel, o Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta (instalado no antigo Solar de Vinhó e Almedina, aqui se encontra o espólio deste pintor natural de Gouveia), a Biblioteca Vergílio Ferreira (instalada no antigo Solar dos Serpa Pimentel de Gouveia), ou o roteiro de Vergílio Ferreira (natural de Melo, freguesia gouveense, e alvo de várias homenagens na cidade) são algumas das propostas. O próprio edifício dos Paços do Concelho encerra vários capítulos da história da cidade, tendo sido inaugurado como colégio de Jesuítas (1739), e chegado a ser utilizado como quartel militar e hospital militar durante a Guerra Peninsular (1809). Tudo isto merece uma visita com mais tempo. Fica registado.

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Seguimos viagem e começamos a deixar Gouveia para trás. A paisagem começa a 'ruralizar-se' à medida que vamos subindo rumo à encosta da Serra da Estrela e, após cruzar a estrada N232, por passagem aérea, entramos na freguesia de Aldeias. Tenho um fascínio particular por trilhos que atravessam aldeias, porque nos dão uma ideia muito próxima de como é a vida naqueles lugares aparentemente tão remotos e tão 'à mercê' dos caprichos, neste caso, da serra. E se hoje o conceito de 'remoto' é relativo, por via da proximidade que o desenvolvimento e as tecnologias vieram proporcionar, tempos houve em que estas pequenas localidades rurais eram pequenos mundos ainda mais isolados de tudo e de todos. Em Aldeias, ficamos a saber, através de uma placa de homenagem, que Irene Lisboa passava ali férias e ali escreveu o livro Crónicas da Serra. Da Estrela, naturalmente. 

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Uma pensadora fora do tempo
Nasceu em Arruda dos Vinhos no final do século XIX, em 1892. Foi pedagoga, tendo feito a sua formação na Suíça, em França e na Bélgica. Foi um espírito independente, tendo sido impedida, pelo regime salazarista, de colocar em prática os seus conhecimentos e de exercer a sua função de professora primária. Foi escritora, ensaísta, poetisa e cronista, tendo sido censurada e obrigada a recorrer a pseudónimos. Terá sido, acima de tudo, uma mulher corajosa num tempo em que qualquer pensamento 'fora da caixa' era penalizado. Irene Lisboa nasceu, claramente, na época errada. Ou não, já que a evolução só acontece quando há espíritos disruptivos. Passava férias em Aldeias. Foi ganhando a confiança das pessoas, ou do "gentio serrano", como ela 'respeitosamente' dizia, observou e ouviu atentamente toda aquela paisagem e todo aquele modo de vida das décadas de 40 e 50, duro e rude, e escreveu sobre todo esse encanto e desencanto. Sobre a ruralidade, sobre a pobreza, sobre as vicissitudes da vida daquele povo. "Aqui passava férias, percorrendo os caminhos da serra, montes e vales, conversando com a gente da nossa terra." Para a posteridade fica a justa homenagem, o orgulho e o agradecimento de um povo. 
 
Em lugar de destaque, e protegida por um carvalho secular, a igreja matriz de S. Cosme, de fachada simples, mas digna, relembra-nos que aquele é um caminho de fé. Mais à frente, outra homenagem "por dever de gratidão". Desta vez, "aos que pela mão do destino ou opção do viver, partiram, levando saudades, a vontade, o querer, de poder voltar um dia". Neste Portugal profundo, os emigrantes nunca são esquecidos! Aliás, em Aldeias, ninguém é esquecido, como o prova uma escultura de granito que homenageia "todos os aldeenses". Já na estrada, uma imponente fonte, a Fonte do Tio Martinho, convida a uma pausa refrescante. A primavera trouxe calor e a vista é panorâmica e bonita. Há que desfrutar.

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Até Mangualde da Serra, o caminho é feito por estrada. Uma estrada quase sem trânsito e com um enquadramento muito pictórico. Os céus azuis pontilhados por flocos de nuvens brancos oferecem-nos verdadeiros postais ilustrados.
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Chegamos à capela da Nª Srª do Monte, já em terras de Mangualde da Serra. O seu posicionamento é um autêntico miradouro para paisagens deslumbrantes. A capelinha é simples e tem por companhia três majetosos carvalhos seculares. Os bancos e mesas de pedra, para usufruto dos visitantes, convidam a nova pausa. Aquele é também um local de romaria anual, em devoção à Santa. Consta que ali apareceu a imagem de uma Virgem. Naqueles tempos era comum o aparecimento de santos e santas, ou as suas imagens, nestes sítios ermos. E tantas vezes lá apareceu que a população decidiu construir a ermida, que se transformou em local de culto. Desta forma se justifica a proliferação de ermidas e capelas nestas localizações tão improváveis. Não há dúvida de que as lendas e outras narrativas fantásticas constituem um património valioso na história de um povo.

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Até agora tínhamos vindo a subir, pelo que estava a altura de começar a descer na direção de Moimenta da Serra onde, no centro da aldeia, passamos pela ermida da Nª Srª do Porto, também erguida em 1641 para assinalar o sítio onde apareceu mais uma Nossa Senhora. 

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Até Vinhó, a paisagem é predominantemente rural, com vinhas, olivais e terras delimitadas pelos sempre bonitos muros de pedra antigos. Neste trajeto há um troço em que a vegetação envolvente é de tal forma frondosa que quase nos sentimos arredados de qualquer tipo de civilização. A Igreja Matriz de Vinhó recebe-nos do alto da sua imponência. Classificada como Imóvel de Interesse Público, o edifício foi fundado em 1567, como igreja do Convento das Freiras Clarissas, dedicado a Madre de Deus. O convento fechou em 1834, ano da extinção das ordens religiosas, tendo sido demolido, restando pouco mais do que a igreja. Reza a lenda que por ali passou uma freira com dons de santidade, a Tia Baptista, cujas cantigas de trabalho e devoção ainda por ali ecoam. Provavelmente, é por terem ficado registados num manuscrito que está no Museu Arte e Memória.   

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Já próximo de Gouveia, passamos ainda pelo, também extinto, Convento de São Francisco, hoje propriedade privada. É um edifício bastante interessante e com uma localização e enquadramento privilegiados, mas a precisar de obras de reabilitação. Não é visitável.  

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Estamos novamente no miolo urbano de Gouveia, onde chegamos sob um calor já intenso e a reclamar uma bebida fresca. A tarde terminou na sombra de uma esplanada na companhia de alguns amigos que, casualmente, ali encontrámos.