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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

06.02.24

PR2 GDA | Rota da Cabeça Alta | Videmonte


Emília Matoso Sousa
Data | 16 abril 2023
 
O percurso | Circular | 19,12 Km (fizemos 21,7) | 540 m desnível acumulado | Moderado, mas longo
Localidade | Videmonte, concelho da Guarda
Observação: Não é um percurso difícil, mas a sua extensão poderá reclamar alguma resistência física.
 
Implantada no coração da Serra da Estrela, numa das suas encostas, a cerca de 1000 metros de altitude (altitude média), Videmonte, é uma das aldeias mais altas do país. É, ainda, dona do ponto mais alto do concelho da Guarda - o marco geodésico da Cabeça Alta, a 1287 metros. Está, assim, identificado o protagonista da rota de hoje. Já deu para perceber que vamos andar nas alturas e isso é garantia de boas vistas. 

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Videmonte faz parte da rede de Aldeias de Montanha, um projeto que dinamiza iniciativas inovadoras e geradoras de maior potencial para um conjunto de aldeias localizadas entre o Parque Natural da Serra da Estrela e a paisagem protegida da Serra da Gardunha, ao mesmo tempo que promove o que estas têm de melhor e mais autêntico. Recentemente, ganhou notoriedade por ser uma das entradas para os Passadiços do Mondego, que ligam a aldeia à Barragem do Caldeirão, os quais merecem uma visita. Para os apreciadores de montanha, estes passadiços são, mesmo, imperdíveis! Brevemente, falarei sobre eles.

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Água e pão nunca se negam a ninguém
Porque há muita, e boa, água em Videmonte e porque esta é uma zona de cultivo de centeio,  com o qual se faz o pão, e porque os videmontenses fazem questão de preservar a sua fama de hospitaleiros. Hoje, o 'lema' poderá não ser tão levado ao pé da letra como antigamente, mas o pão continua a ser rei e de excelente fama. De tal forma, que é celebrado anualmente, em finais de julho, no evento Festival do Pão. Dos moinhos que existiram na freguesia, cerca de vinte, apenas sobram algumas ruínas, no entanto, o forno comunitário continua em funcionamento para quem o quiser utilizar. A importância que o centeio tem para a aldeia está, simbolicamente, imortalizada no mural de homenagem à Ceifeira de Videmonte, da autoria de um multifacetado designer português, Nuno Aparício. Natural da Guarda e conhecido por Miles, o artista tem-se destacado no mundo da realidade aumentada, mas também já desenvolveu vários trabalhos de arte urbana. 

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Videmonte revelou-se uma surpresa e com encantos que lhe conferem potencial para se inserir no pelotão das mais conhecidas daquela região serrana. Talvez, agora, os passadiços lhe proporcionem o merecido reconhecimento. Mas não too much... ou lá se vai o encanto. Deambulamos um pouco pelas suas ruas. As casas são de pedra, como seria de esperar, maioritariamente de arquitetura popular. Mas, aqui, e porque os recursos naturais o permitem, o granito convive com o xisto, numa combinação que as tornam únicas. A aldeia está muito bem preservada, notando-se cuidado na manutenção da traça original nas casas que foram alvo de reabilitação. No que respeita ao património religioso, o saldo também é positivo, com destaque para a Igreja de S. João Baptista, a matriz, de caraterísticas barrocas, de fachada muito vistosa a ostentar uma bonita janela de avental. 
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Iniciamos a caminhada, saindo da aldeia e entrando em caminhos rurais. Durante algum tempo, acompanha-nos o sermão da homilia, difundido para toda a aldeia através de altifalantes. Era domingo, dia de missa... e ninguém podia ficar de fora.

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Durante os primeiros quilómetros é sempre a subir. A subida é suave, é certo, mas constante até ao marco geodésico da Cabeça Alta, no cimo dos seus  1287 metros de altitude. A paisagem vai variando entre rural e florestal. As árvores ainda estão 'despidas', mas bonitas. 

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Chegamos à Cabeça Alta, subimos até à base do marco e ali ficamos por uns minutos a deleitar-nos com aquilo que a nossa vista consegue alcançar. Em fundo, o Planalto Superior da Estrela. O vento não foi o melhor anfitrião, mas não nos demoveu de ali permanecermos pelo tempo que quisemos.
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Seguimos caminho, entrando numa zona de floresta de coníferas, maioritariamente espécies de pinheiros e abetos, a fazer lembrar os países nórdicos. São enormes e a sua forma piramidal deixa bem claro que estão preparadas para a neve. É, aliás, por isso que ali estão. Outra árvore qualquer não conseguiria fazer resvalar o gelo. São perenes, resistentes e capazes de sobreviver em ambientes áridos. São também o habitat perfeito para alguns animais menos sociáveis, que ali encontram bons esconderijos. Por acaso, não encontrámos nenhum.

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Pouco depois, uma mudança na cenário. É este dinamismo da montanha que me fascina. Os campos de centeio são, agora, donos e senhores da paisagem. O tal centeio que será transformado naquele famoso pão com que os habitantes de Videmonte fazem as honras da casa.

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Mas esta é, também, terra de castanhas, pelo que o castanheiro também predomina por ali, porém ainda não estavam compostos com as suas vistosas e frondosas copas verdes.  
Há muitos caminhos abertos nesta zona do trilho. Esteticamente, não são a coisa mais maravilhosa do mundo, na medida em que representam cortes na paisagem natural. Mas são necessários, desde logo porque facilitam o acesso de meios de intervenção em caso de incêndio. Incêndios que, infelizmente não dão tréguas ano após ano. E a Serra da Estrela tem sido particularmente massacrada por esse flagelo. Prova disso mesmo é a vastíssima área recentemente ardida, por onde passamos entretanto. A necessária limpeza do terreno está em curso e pilhas e pilhas de troncos amontoam-se ao longo do nosso percurso. O cenário é devastador e causa-nos tristeza e mal-estar! É que uma coisa é ver as imagens na TV, outra é vê-las in loco. Não há palavras que descrevam estas catástrofes e o único pensamento que me ocorre é que quem não respeita a natureza, não respeita a própria espécie.

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Felizmente, ainda passamos por mais alguns bosques, não resistindo a questionar quanto tempo mais conseguirão eles resistir.

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E assim, chegamos à Necrópole Rupestre do Souto da Caravela, a 1010 metros de altitude, pérola do património arqueológico de Videmonte, constituída por seis sepulturas escavadas na rocha, quatro de forma antropomórfica (com o contorno da silhueta humana), duas de forma longitudinal algo ovalada. Não há certezas quanto à sua origem e cronologia, mas pensa-se que poderão ser do século X ou XI. Este tipo de 'monumentos' suscita sempre alguma divagação sobre as narrativas que encerram. Alguém, algures num tempo longínquo, se muniu de uma qualquer ferramenta para, literalmente, partir pedra e escavar a figura de um corpo humano num bloco de granito. Quem terão sido os destinatários? Por que terão, mais do que outros membros da sua comunidade, merecido ser sepultados de forma mais distintiva? Muito do que hoje se sabe sobre a vida nesses tempos longínquos é deduzido a partir destes vestígios. Mas isso é para os estudiosos. Aos mais leigos, onde nos incluímos, compete-nos apreciar e preservar estes legados ancestrais, e refletir sobre o que os nossos antepassados terão feito até se chegar àquilo que somos hoje. Uma coisa que podemos observar a olho nu é que, pela dimensão das sepulturas, a espécie humana cresceu significativamente em altura. São estes os apontamentos que enriquecem estes caminhos e que, no fim do dia, nos fazem voltar para casa mais ricos. 

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O nosso caminho estava a chegar ao fim e estávamos ansiosos por experimentar a hospitalidade dos videmontenses. E não é que tivemos sorte? O estabelecimento era simples, mas a vista para a montanha era soberba e os produtos eram de primeiríssima categoria. Nota mais do que positiva para o remate este passeio!

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