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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

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"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

15.03.23

PR2 CRS: Rota dos Narcissus (Fiais da Telha, Carregal do Sal)


Emília Matoso Sousa
Data |  23 fevereiro 2023
 
O  percurso
14 Km (fizemos 19)  |   Circular   |   425 m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Abrigo da Orca; Dólmen da Orca; Orcas do Ameal 1 e 2; Penedo da Víbora; Orquinha da Víbora, Rio Mondego
Localidade | Fiais da Telha  | Freguesia de Oliveira do Conde, município de Carregal do Sal, distrito de Viseu.
Observações  |  Mau estado do piso em alguns dos caminhos abertos de elevada inclinação; sinalética com algumas falhas, a reclamar meios de orientação alternativos; zonas do caminho tomadas por vegetação. O percurso desenvolve-se em área protegida e integrada na Rede Natura 2000, cuja finalidade é “assegurar a conservação, a longo prazo, das espécies e dos habitats mais ameaçados da Europa, contribuindo para parar a perda da biodiversidade”.
 
O percurso de hoje iria proporcionar-nos, supostamente, a observação do Narcissus Scaberulus, também denominado Narciso do Mondego, no seu habitat natural. Íamos andar pelo vale do Mondego, zona de grande biodiversidade florística e com alguns endemismos, entre os quais este narciso, que floresce nos meses de fevereiro e março. Porém, apesar de estarmos no ‘sítio certo à hora certa’ não vislumbrámos um único exemplar. Mas vimos outras coisas… Esta é, aliás, uma rota que pode dividir-se em duas partes completamente distintas, desenvolvendo-se a primeira numa área arqueológica protegida, sendo parcialmente coincidente com o Circuito Pré-Histórico Fiais/Azenha. Para os amantes dos períodos mais longínquos da História, este é um passeio recheado de pontos de interesse. Provavelmente pela sua localização privilegiada em plena zona de planalto, sem grandes elevações e com vertentes suaves, pelos bons recursos fluviais (Mondego e Dão), e abundância de granito, esta é uma região que, há muitos milhares de anos, terá potenciado a ocupação humana. É isso que provam os muitos vestígios arqueológicos ali encontrados. E essa ocupação terá sido contínua, desde os tempos pré-históricos (Neolítico, Calcolítico e Idade do Bronze), passando pelo período de ocupação romana e Idade Média. 

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Íamos ver, sobretudo, antas. Não sendo a Pré-História a época de estudo que mais me atrai, ao invés do meu marido e inseparável companheiro de viagens, que com qualquer 'pedregulho' com história fica fascinado, a verdade é que é quase impossível ficar-se indiferente perante a visão daqueles monumentos tão (aparentemente) rudimentares quanto engenhosos. Na Beira Alta e na Beira Baixa, há muitos monumentos megalíticos, especialmente antas, orcas ou dólmenes, variando o nome consoante a região onde se encontram. Terão sido construídos, maioritariamente, entre o Neolítico Final e o Calcolítico e tudo indica que seriam sepulturas coletivas. Com maior ou menor grau de elaboração, eram feitas com enormes pedras verticais graníticas (esteios), sobre as quais assentava uma laje ainda maior.
 
Entre antas, orcas e dólmenes: na senda do megalitismo
O ponto de partida é na entrada norte de Fiais, junto à casa dos cantoneiros. O rumo é para sul, em direção ao ‘estádio’ de futebol (o das Gândaras), junto ao qual, na bifurcação, se segue no sentido anti-horário com destino ao planalto do Ameal. Pouco a pouco, o cenário vai-se preenchendo com pinheiros (bravos e mansos), arbustos, formações graníticas, e até lajes enormes sobre as quais caminhamos. Começa a ser evidente onde é que os nossos antepassados iam buscar a matéria-prima para as suas megalíticas construções. Outras ruínas de tempos mais recentes vão também aparecendo.

20230223_105741.jpg20230223_110456.jpgA primeira relíquia que encontramos é o Abrigo da Orca. Um abrigo granítico em pala, a qual assenta numa arcadura de proteção constituída por seis esteios. Terá sido utilizado por comunidades pré-históricas, em época não determinada, e, num passado mais recente (sécs. XVI-XVIII), por pastores em sistema de rotatividade (vezeira).

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Avançamos um pouco e eis que surge à nossa frente a monumental Lapa da Orca (ou Dólmen da Orca, ou Orca de Fiais da Telha). Esta impressiona mesmo, seja pela sua dimensão, seja pelo seu excelente estado de conservação, fruto de intervenções arqueológicas. A maioria dos objetos lá encontrados permitiu situar a sua construção no Neolítico Final (a partir de cerca de 3500 a.C.). Outros achados apontam para uma segunda utilização, já na transição para a Idade do Bronze (c. 2400-1800 a.C.). É monumento nacional desde 1974.

20230223_113407.jpg20230223_113500.jpg20230223_112838.jpgSeguem-se as duas orcas do Ameal, ambas muito semelhantes e intervencionadas arqueologicamente nas décadas de 80 e 90. A Orca 1 insere-se no Neolítico Médio (c. 4100 a.C.) e, de acordo com a descrição, terá sido construída cerca de mil anos depois do surgimento das primeiras comunidades camponesas no atual território da Beira Alta.

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O Complexo Rupestre do Ameal é a ‘atração’ seguinte. Ficamos curiosos. Desde logo, porque o termo ‘rupestre’ remete para representações artísticas pré-históricas desenhadas nas rochas. Iríamos ver pinturas rupestres? O que surgiu à nossa frente foi um enorme bloco granítico que, a um primeiro olhar, mais não era do que um ‘pedregulho’ de tamanho XXL. Mesmo ao lado, uma placa informativa garantia que nele constavam “insculturas diversas… representando motivos figurativos associados eventualmente a manifestações de culto ou a certos rituais…”. E foi, então, munidos de um olhar mais analítico e informado que, efetivamente, encontrámos algumas dessas insculturas. Só não lhes conseguimos decifrar significados óbvios. Mas a arte é assim mesmo. Cada um vê o que vê e, por vezes, o que não vê… Em todo o caso, é uma sensação estranha pensar que, naquele exato sítio, há alguns milhares de anos, os nossos antepassados registaram sabe-se lá que mensagens, sabe-se lá com que intenção. Artistas!!

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A paragem seguinte seria num sítio com um nome muito sugestivo. Penedo da Víbora. Um nome associado a uma lenda, pois claro, e uma boa história enche-nos sempre as medidas. E se causar um arrepio ou outro, tanto melhor. Estamos em pleno planalto. O granito é nota dominante. Alguns pinheiros mansos, particularmente bonitos, pontuam a paisagem. O silêncio é quase absoluto. E é neste ambiente que, imponente e quase assustador, se levanta o Penedo da Víbora.
Muda-te em enorme víbora”/ -Disse para a princesa-/ E ao príncipe com dureza:/ -”Muda-te num rouxinol,/ Cantarás de noite e de dia/ Quer chova, quer brilhe o Sol/ Em cima do arvoredo,/ E o castelo que habitais/ Transforme-se num rochedo”. Excerto de versos in Memória e Tradições, recolha de Maria Piedade Alves
Cá está. Uma maldição sobre um príncipe cristão e uma princesa ‘moura’, para castigar egoísmos e orgulhos. Na verdade, o penedo mais não é do que um conjunto de blocos graníticos com uma configuração circular e bastante sugestiva, mesmo a apelar à criatividade interpretativa. De forma mais ou menos incompreensível, até um carvalho solitário se instalou lá dentro.

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Mas qualquer ‘cheirinho’ a sobrenatural provoca em nós sensações estranhas, essa é que é essa, e eu, não sei se levada pela imaginação, se sugestionada pela narrativa, rapidamente me afastei de tão amaldiçoado ‘ninho’. Just in case... Curiosamente, quando, a alguns metros de distância, olhei para trás, o penedo havia-se ‘transformado’ numa enorme rã, mas penso que foi mera imaginação. Ainda assim, é um animal mais simpático do que a víbora…

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Da Estrela à Lousã. Do Vale do Mondego à Estrela.
Estamos a 324 metros de altitude, junto ao Marco Geodésico da Víbora, como é conhecido. O horizonte abre-se à nossa frente num conjunto de vistas que mais parecem telas. De um lado, a monumental Estrela com o seu perfil sério, robusto, inconfundível. Movimentamos o olhar para a direita e lá está um vale, como uma espécie de separador entre montanhas, ao mesmo tempo que assinala a mudança de geologias. Acaba o granito da Estrela e passa-se para os xistos das serras do Açor e da Lousã, por esta ordem. Depois desta pausa, que apetecia prolongar, estava na altura de iniciar a parte dois do percurso, rumo ao vale do Mondego, um dos rios que, a par do Dão, faz o enquadramento da região.

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20230223_125455.jpg20230223_130413.jpgPassamos ainda pela Orquinha da Víbora, ou antes, pelo pouco que resta dela. Um dado curioso relativo a esta orca é que foi ‘descoberta’ duas vezes.  A primeira, em 1987, tendo sido alvo de trabalhos arqueológicos que, nos anos seguintes, ficaram tapados por vegetação, perdendo-se a sua localização. Foi redescoberta em 2009, apresentando fortes indícios de ter sido vandalizada. Melhor nem comentar!

20230223_131210.jpgAté ao Mondego é sempre a descer. E muito. E com um grau de inclinação acentuado demais para os nossos gostos. E com um piso deplorável. São caminhos abertos, com muitas pedrinhas soltas sobre terra batida e com muitos sulcos profundos deixados pelas chuvas. As acácias, ou mimosas, ladeiam estes caminhos e começam já a ficar amarelas, dando um colorido engraçado à paisagem. 

20230223_133654.jpg20230223_134920.jpgNo final da descida, espera-nos o Mondego, o maior rio nascido em território português, na Serra da Estrela. Ladeamo-lo durante algum tempo, embora só o consigamos ouvir, tal a profusão de vegetação da sua ripícola. Em dois momentos, conseguimos ‘furar’ e chegar às suas águas, que correm, ora calmas, ora mostrando a sua força ao abrir caminho por entre as rochas.

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Gosto particularmente dos percursos que incluem rios. Rios são fontes de riqueza e o Mondego é fundamental para o desenvolvimento da região centro, seja para a agricultura e indústria, seja para a produção de energia elétrica e abastecimento público de água. Perante a beleza das imagens proporcionadas por um rio que corre em plena natureza é inevitável refletir um pouco sobre a sua importância para a vida no planeta, desde logo, porque são a principal fonte de água potável para as populações. São também responsáveis pelo equilíbrio de ecossistemas ao fornecerem condições para a existência de um conjunto de espécies, quer de flora, quer de fauna, tão importantes para a biodiversidade.
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Infelizmente, entre fenómenos naturais e intervenção de mão humana, são muitos os danos causados nas nossas zonas ribeirinhas e florestas. Do corte de árvores para aproveitamento de terrenos, à poluição proveniente da agricultura, passando pelos incêndios, muitos são os males que tendem a alterar os desejados equilíbrios. E o vale do Mondego tem sido fustigado por incêndios, designadamente os de 2017, que danificaram uma área bastante significativa da sua floresta, com consequências muito danosas ao nível dos endemismos. Felizmente, a natureza tem tendência a regenerar-se, ainda que nesse processo de regeneração haja espécies ‘oportunistas’, de que as acácias e os eucaliptos são exemplos, que se expandem prejudicando e alterando habitats. Já a giesta-branca, que também surge quase de imediato, segura os solos e prepara-os para o regresso de arbustos e árvores. O Narcissus Scaberulus acabou por também tirar algum partido da situação, já que o desaparecimento de uma grande quantidade de vegetação arbustiva os tornou mais visíveis… 
O Narcissus Scaberulus, o tal que dá o mote a este trilho e que é uma das espécies endémicas que vivem ‘à sombra’ da galeria ripícola do Mondego, uma galeria riquíssima composta, sobretudo, por amieiros, mas também por freixos, loureiros, e outras árvores que dão sombras que abrigam espécies mais pequenas, como a madressilva, a violeta-brava ou o feto-real. 

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Estava na altura de atacarmos a subida de regresso, felizmente, mais suave do que a descida e com paisagens muito bonitas em que o tom lilás das urzes começava já a pintar as encostas. Só faltou ver os ditos  narcisos. Mas o balanço foi positivo e, mais uma vez, reforçámos a nossa convicção de que cada caminhada na natureza é uma aula viva, da qual trazemos sempre novos e bons conhecimentos.

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