PR14 Trilho da Aldeia Mágica (Drave) - Parte I
Data: 1 de março 2023
O percurso
4 Km (mais 4 Km de volta) | Linear | 403 m desnível acumulado | Grau dificuldade: fácil
Pontos de interesse
Drave; Serra da Arada; Portal do Inferno; Complexo Mineiro Poço da Cadela
Localidade
Regoufe | Aldeia tradicional do Arouca Geopark, situada na serra de Arada, na União de freguesias de Covelo de Paivó e Janarde, concelho de Arouca, distrito de Aveiro.
Somewhere, something incredible is waiting to be known”, Carl Sagan
Sempre que pensávamos em ir a Drave, desencorajava-nos o ‘difícil’ percurso a pé que teríamos de fazer para lá chegar. Agora, que já nos aventuramos por caminhos que antes tínhamos como impossíveis, chegou o dia. Drave é uma pequena aldeia, rodeada de algum mistério, situada a 600 metros de altitude num vale encaixado entre as serras da Freita, da Arada e de São Macário (qualquer uma delas, por sinal, muito bonita). Desabitada desde 2009, sem uma única infraestrutura (comunicações, água canalizada, eletricidade…), e com um edificado quase totalmente em ruínas, a aldeia continua, ainda assim, a atrair e fascinar visitantes. Resta acrescentar que não é acessível de carro e que, para lá se chegar, têm de se caminhar quatro quilómetros (mais 4 para a volta) bastante ‘puxadotes’.
Pelo Reino das Montanhas Mágicas
Há sítios que estão inseridos em zonas de tal forma fascinantes, que justificam um enquadramento prévio. Drave situa-se em pleno Maciço da Gralheira, uma cadeia montanhosa que se ergue nos distritos de Aveiro e Viseu e que é constituída pelas serras da Freita, Arada, São Macário, e Arestal. Ao conjunto deste maciço com o de Montemuro atribuiu-se a designação de Montanhas Mágicas.
No fundo, um ‘selo’ que promove todas as riquezas naturais e patrimoniais deste território montanhoso situado na zona ‘fronteiriça’ entre o centro e o Norte de Portugal Continental, entre os rios Douro e Vouga, e que abrange sete municípios: Arouca, Castelo de Paiva, Castro Daire, Cinfães, S. Pedro do Sul, Sever do Vouga e Vale de Cambra. Acolhe, ainda, quatro Zonas Especiais de Conservação da Rede Natura 2000 e um Geoparque Mundial da UNESCO (o de Arouca). Montanhas, vales, rios, cascatas, lagoas, geossítios, biodiversidade… entre muitas outras coisas que deslumbram os amantes da natureza, esta zona é, de facto, imperdível. E sim, aquelas montanhas têm qualquer coisa de encantatório!
Um Portal dos Diabos
Não é do Diabo, ainda que o nome lhe assente como uma luva, mas é do Inferno e é um dos pontos altos da estrada que nos leva a Regoufe, aldeia de onde se parte para Drave. É logo na estrada que a magia começa! Uma estrada de montanha, estreita, serpenteante e com inclinações acentuadas, sinuosamente desenhada no meio de uma paisagem incrível. De um lado e do outro, as vistas são esmagadoras, numa sucessão de vales e montanhas que se sobrepõem formando efeitos verdadeiramente cénicos.
Estamos a subir, as curvas vão-se apertando, até nos retirar qualquer resquício de visibilidade, há alguma adrenalina no ar… Até porque sabemos que nos aproximamos do Portal do Inferno e Garra. Que nome! Trata-se de um miradouro a cerca de 1000 metros de altitude (estamos na Arada), curiosamente, situado no exato local que separa os concelhos de S. Pedro do Sul do de Arouca. A estrada torna-se ainda mais estreita, estendendo-se sobre duas vertentes íngremes constituídas por rochas metamórficas, que tornam a paisagem escarpada.
De um dos lados do horizonte, a serra de São Macário, do outro, avista-se a Garra, uma montanha artisticamente entrecortada por diversas linhas de água que, no seu trabalho de erosão, como que esculpiram os dedos de uma ave de rapina. Há, também, quem acredite que se trata da mão do Diabo que, segundo a lenda, terá por ali andado a atemorizar uns e outros. Será que ainda por lá anda? O melhor é seguir viagem, antes que o dito as teça…
Tudo o que sobe tem de descer, como está 'instituído' na Lei da Natureza e, geralmente, respeitando e replicando os respetivos graus de inclinação. E lá descemos para Regoufe, com algumas buzinadelas a avisar carros que, eventualmente, se aproximassem em sentido contrário.
Regoufe, entre o belo e o… mais ou menos belo (dependendo dos gostos)
Regoufe é uma aldeia tradicional com uma população de cerca de 20 pessoas - mais concretamente 22, quando a visitámos - cujo modo de vida depende da pastorícia e da agricultura. Percorrendo as suas ruelas é quase certo que nos cruzemos com cabras e cabritinhas, patos ou galinhas que partilham a aldeia com os seus habitantes numa relação de grande proximidade. Aliás, são muitos os vestígios orgânicos com que vão decorando as ruas numa clara declaração da sua importância. Passam por nós com a maior das normalidades e, só não nos dão as boas-vindas, porque não falam a nossa língua.
Privilegiadamente situada na Serra da Arada, território das Montanhas Mágicas, a aldeia está rodeada por um cenário idílico… por todos os lados, menos por um. É que, numa das encostas, situam-se as ruínas do complexo mineiro Poço da Cadela, explorado até à década de 1970. Está bom de ver que aquela zona é rica em minério e que a vida por ali já foi muito agitada. Foi ali que, em 1941 se constituiu a Companhia Portuguesa de Minas, que funcionava essencialmente com capitais e sob administração britânicos. A eles se deve um conjunto de melhoramentos na aldeia, designadamente a abertura da estrada, ou a instalação de telefone e eletricidade. Um ‘preço’, provavelmente, demasiado alto quando comparado com os danos irreversíveis que ali provocaram, mas naquela época as consciências ecológicas ainda não estavam devidamente despertadas.
No tempo da corrida ao volfrâmio
Durante a II Guerra Mundial, houve, portanto, grande movimentação mineira ali para os lados de Arouca, protagonizada por ingleses e alemães que, longe dos ‘teatros de operações’ (como agora se diz) ou, quiçá, magnetizados por aquelas paisagens idílicas e de bons ares, ali coexistiam tranquila e pacificamente. Tudo por causa do volfrâmio, um minério brilhante e escuro que, fundido, dá origem ao tungsténio, uma liga que, acrescentada ao aço, o torna mais resistente e adequado à produção de armamento e munições. Assim, em Regoufe, sob a ‘bonomia’ de um Portugal neutral, que ali viu uma oportunidade economicamente irresistível, os súbditos de Sua Magestade exploravam o Poço da Cadela, e os seguidores do Führer, as minas de Rio Frades, ali ao lado. E parece que o negócio era mesmo rentável, havendo relatos de fortunas ganhas de um dia para o outro. No Poço da Cadela chegaram a trabalhar cerca de 1000 pessoas, tendo sido extraídas, entre 1935 e 1951, 639 mil toneladas de minério de volfrâmio e estanho. Terminada a necessidade do minério, todos se foram embora, deixando como legado uma montanha com cicatrizes irreversíveis. Confesso que ‘dói’ um bocadinho olhar para aquela enorme mancha de montanha sem vida. Uma mancha que guarda ainda as ruínas do complexo constituído por instalações técnicas e administrativas, residências e galerias. Um local cheio de história, sem dúvida, e também de muitas memórias, ainda que associadas a um dos acontecimentos mais infames de um passado não muito distante. Quem vai a Regoufe não deixa de visitar o espaço. Mas a principal razão para uma deslocação a Regoufe é mesmo a ida a Drave!