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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

17.05.23

PR10 GVA Rota da Caniça (Lapa dos Dinheiros)


Emília Matoso Sousa
Data: 23 de abril 2023
O  percurso
(6,966 Km) (fizemos 11,28 Km)  |  Circular |  402m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado / difícil 
Observações 
A dificuldade deve-se, sobretudo, à subida 'técnica' que conduz ao buraco do Sumo. Os locais preferem fazê-la em sentido contrário. 
Pontos de interesse
Ribeira da Caniça; Praia fluvial Lapa dos Dinheiros; Quedas da Caniça; Cornos do Diabo; Buraco do Sumo; Buraco da Moura 
Localidade
Lapa dos Dinheiros | Freguesia do concelho de Seia, distrito da Guarda.
 

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Lapa dos Dinheiros, assim batizada por D. Dinis quando, numa passagem pela aldeia, foi surpreendido com um farto jantar pago com os ‘dinheiros’ dos anfitriões. Mais uma lenda, presumo...
É desta pequena aldeia de montanha, empoleirada numa das encostas da Serra da Estrela, a 700 metros de altitude, sobre o rio Alva e a ribeira de Caniça, que parte o percurso de hoje. E que percurso! Sem dúvida, um dos mais bonitos dos muitos que já fizemos.
Para quem, como eu, tem fascínio pela montanha, penetrar em alguns dos caminhos do Parque Natural da Serra da Estrela menos percorridos é motivo de grande excitação.
Sabendo que estes não são caminhos para principiantes, que isto de andar a pé tem que se lhe diga, só agora nos arriscámos a avançar para terrenos mais ‘acidentados’. E muito timidamente, para já, que a serra não é para brincadeiras. 
Afastamo-nos da igreja matriz e, pouco depois, entramos num bosque que mais parece um reino encantado. Uma zona verde magnífica, conhecida como Souto da Lapa e onde predominam os castanheiros. Castanheiros centenários que compartilham o espaço com outras espécies arbóreas (carvalho-robles, freixo…) e arbustivas (aveleiras, folhados, gilbaldeiros, azevinho…), entre as quais algumas raridades (azereiro, mostajeiro). Fetos, plantas e flores variadas compõem o cenário, cujo silêncio só não é respeitado pelo chilrear das aves. Um autêntico santuário de diversidade. A parte menos boa, é que todo este trajeto é feito em subida… Não há bela sem senão, lá diz o ditado.

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Atravessado o bosque, chegamos à praia fluvial da Lapa dos Dinheiros, situada na Ponte da Caniça. Uma praia de montanha, quem diria! Enquadrada pela paisagem do Souto da Lapa e também por enormes afloramentos graníticos, a praia ‘alimenta-se’ das águas da ribeira da Caniça, que ali é represada, criando uma área de banhos que mais parece uma piscina natural. Aliás, naturalíssima, se atentarmos à  transparência da sua água. O som da água a despenhar-se em pequenas cascatas selvagens entre as rochas é um convite a permanecer ali…

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Retomamos o nosso trilho e, uns metros à frente, fazemos um desvio que dá acesso às quedas de água da Caniça e ao buraco da Moura. Um desvio de cem metros que  mais parece de mil, por se tratar de um trajeto extremamente declivoso e muito pedregoso, com musgos e zonas húmidas e escorregadias. A vegetação, ali, tem caraterísticas ribeirinhas. É variada e densa, abundante, muito verde… parece uma pequena floresta tropical. A atmosfera é de alguma magia. Que bom saber que ainda existe natureza em estado puro! O buraco da Moura é uma espécie de gruta natural, criada pelo deslizamento e acumulação de enormes penedos de granito, com várias cavidades naturais a formar uma sequência de salas e galerias. Estudos arqueológicos ali desenvolvidos revelam que terá sido usada como habitat no período compreendido entre o Neolítico Final e a época tardo-medieval. A entrada está obstruída, não sendo possível entrar, nem aconselhável, dado tratar-se de um local com risco de acidente. 

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Retomamos a rota, depois de subir tudo o que tínhamos descido, e  enfrentamos nova e íngreme subida, desta vez sobre um piso ‘calcetado’ com os nossos já conhecidos blocos de granito irregulares e desconfortáveis (à la romana). A envolvente é muito bonita e, à medida que subimos, as encostas da serra vão surgindo no nosso campo de visão. A Serra. Maravilhosa, robusta, assombrosa, já a cobrir-se de amarelo, penso que de carqueja (a tal com que se faz o arroz, prato típico - e delicioso- da zona). No meio daquele ‘nada’ ainda somos surpreendidos por uma alminha, sinal de que aquele era um caminho antigo.

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No topo da subida, encontramos o canal que transporta a água para a câmara de carga da central hidroelétrica Ponte Jugais. Uma central situada em pleno Parque Natural e a funcionar há um século (desde 1923), alimentando-se das águas do rio Alva e da ribeira de Caniça, através de dois canais a céu aberto. É um desses canais que vamos ladear. 

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Vivemos numa era em que já pouco ou nada nos surpreende, ao ponto de nem sempre darmos o devido valor à enormidade das ‘pequenas’ grandes obras do passado. Houve alguém (o industrial António Marques da Silva) que um dia, no início do século XX, viu nas águas da serra uma fonte de produção de energia elétrica. Alguém que sonhou, que lutou e que concretizou. E isso foi um feito extraordinário. 
Já agora, como curiosidade, existe na Serra da Estrela um complexo sistema de centrais hidroelétricas em cascata, que inclui barragens, açudes, túneis condutas e canais, que percorrem altitudes entre os 400 e os 1600 metros.
E ali vamos nós a ladear um canal (ou levada) que transporta água que irá produzir… eletricidade. Um canal lindo, perfeitamente integrado no meio (parece que já nasceu assim, para ser canal). São cerca de dois quilómetros de puro deleite para os nossos sentidos. Os sons, as cores, os aromas… Lindo demais!
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No final do canal, uma mini represa capta as águas da ribeira, mas o que ali nos levou foi uma enorme rocha granítica, de aproximadamente seis metros de altura, ‘coroada’ com duas pontas de pedra, cujo formato se assemelha a uns cornos. Os Cornos do Diabo, assim se chama a rocha, e é uma das atrações do trilho.

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Recuamos 80 metros para retomar o nosso itinerário, por um caminho que nem queríamos acreditar que teríamos de subir. A encosta mais íngreme e pedregosa que subimos até hoje, sem dúvida (de curta extensão, mas de desafiante dificuldade).
Ao logo  do percurso, fomo-nos cruzando com algumas pessoas em sentido contrário, agora entendíamos porquê. Vencida aquela subida ‘técnica’, chegámos ao buraco do Sumo. Um sítio, onde blocos gigantes de rocha terão resvalado das encostas superiores e ali se amontoaram sobre o leito da ribeira da Caniça, obrigando-a a correr subterraneamente. 

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Seguimos viagem e atravessamos uma zona de pinhal. Já na descida para a Lapa dos Dinheiros, ainda nos espera um troço espetacular, com a água da ribeira a despenhar-se até à localidade em pequenas cascatas e levadas (para a rega), e com uma zona de vegetação verdejante e luxuriante. Até parece que estamos na selva. É mesmo muito bonito.

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Os senhores estão a cumprir uma promessa?
A pergunta foi-nos dirigida por uma senhora, quando atravessávamos a localidade já em direção ao ponto de chegada. O nosso aspeto de caminheiros não a enganou. Mochilas, bastões, marcas de quem já trás muitos quilómetros nas pernas… Só não acertou no motivo. A nossa única promessa é aproveitar ao máximo as coisas boas que a Natureza tem para nos dar, mostrar e ensinar.

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A aventura só terminou com uma passagem pelo Mercado Municipal de Seia, onde ainda conseguimos almoçar, apesar do avançado da hora. 

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