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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

28.07.24

PR1 VDG | Pelas Vinhas de São Cucufate


Emília Matoso Sousa
22 de março 2024
 
O percurso | 17,9 Km | desnível acumulado 268m | circular | moderado (pela extensão)
Localidade | Vila de Frades, concelho de Vidigueira, distrito de Beja

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Terras de pão. Gentes de paz.
Assim é conhecido o território da Vidigueira, vila do distrito de Beja, a que pertence a localidade de Vila de Frades, onde se desenvolve a caminhada de hoje. O concelho da Vidigueira situa-se na divisão entre o Baixo e o Alto Alentejo (entre Beja e Évora), o que lhe confere algumas caraterísticas especiais. Desde logo, um clima mais ameno do que no restante Baixo Alentejo, devido à proteção dos ventos de norte pela serra do Mendro (que marca a fronteira), pelo rio Guadiana, a este, e pela vasta planície que se estende a sul e a oeste. Esta especificidade reflete-se na variedade paisagística natural, mas também na humanizada. É que nas terras férteis deste vale protegido proliferam as hortas, os laranjais, as searas, os olivais e..., naturalmente, as vinhas. Estamos no coração do Alentejo, estamos em terras de pão, de azeite e de vinho. Tudo em bom!

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E é na Vidigueira, na Praça da República, que o percurso tem início. Antes, damos uma volta pela vila e entramos no posto de turismo, ou melhor, no Centro do Património e do Turismo. Um espaço de "receção ao turista" com ares de pequeno museu, onde se promovem os recursos identitários do território e onde somos recebidos com uma simpatia e disponibilidade dignas de nota.

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Tentamos visitar a igreja da Misericórdia, edificada no século XVI, pois sabemos que no seu interior há painéis de azulejos de Gabriel del Barco, pintor de tetos e azulejista espanhol. Fechada! Destaque-se também a Torre do Relógio, não pelo seu interesse arquitetónico, mas por albergar um sino em que consta a inscrição: "Este sino mandou fazer o Sr. Conde Dom Vasco Almirante da Índia.". Sim, o navegador Vasco da Gama, personalidade com muito peso por aquelas bandas. Apesar de ter nascido em Sines, foi-lhe concedido, pelo rei D.Manuel I, o título de Conde da Vidigueira (1519), o que lhe deu direito a ficar na posse das terras da Vidigueira e de Vila de Frades. Uma ascensão social mais do que merecida, tendo em conta o grande feito que foi a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Que não se diga que os nossos reis não eram generosos... Os seus restos mortais permaneceram nesta vila alentejana até que, em 1880, foram transladados para o Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, algo que (diz-se) não terá agradado muito aos vidigueirenses.

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Passamos pela Bica da Cascata, chafariz datado do final do século XIX, construído para celebrar o abastecimento de água à vila e, um pouco mais à frente, deparamo-nos com o que resta do antigo castelo. E o que resta é muito pouco, ou quase nada. Parte da torre de menagem, que ostenta o brasão de armas dos Gama, e uma janela manuelina trazida de Vila de Frades em 1970, que se julga ter pertencido ao palácio dos condes da Vidigueira.

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Chegamos ao limite da vila e caminhamos em direção à ermida de Santa Clara, de estilo manuelino, mandada construir em 1555 pelo 2º Conde da Vidigueira, D. Francisco da Gama. Um templo religioso com alguma graciosidade que só não visitamos por não estar aberto.

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Entramos, agora, em terreno rural, ladeando algumas vinhas, até que chegamos a uma curiosa ponte de pedra em arco sobre a ribeira do Freixo, a Ponte dos Frades, que atravessamos. O seu tamanho é mínimo, quase uma ponte de brincar, fazendo duvidar sobre a sua robustez, apesar de estar ali há séculos. Mais uma obra de engenharia 'arcaica' que chega intocável aos nossos dias.  
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"Vila de Frades já não tem abades, mas tem adegas que são catedrais...", Popular

E é entre vinhas e olivais que chegamos a Vila de Frades, localidade que tem mais para nos contar do que as suas pacatas ruas aparentam. Pacatas, mas animadas pelas cores vivas com que contornam as portas e janelas do casario tipicamente branco. Pacatas, mas com muita tradição e muitos saberes ancestrais que os seus habitantes teimam em preservar. Saberes ancestrais deixados pelos romanos e pelos frades que, a seu tempo, por ali andaram, e saberes sabiamente mantidos por quem conhece e cultiva a terra. Mas Vila de Frades é, antes de mais, considerada a capital do vinho da talha, processo de produção vinícola que vem de há dois mil anos, do tempo dos romanos e que, com muita paixão, tem sido passado de geração em geração. Sobre este processo já falei na publicação sobre Vila Alva (Pelas Centenárias Vinhas de Vila Alva), mas, basicamente, trata-se de um método extremamente natural em que as uvas são colocadas, esmagadas, dentro de grandes recipientes de barro (ânforas ou talhas) aí fermentando espontaneamente.   

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Capital do vinho da talha. Ora, onde há vinhas, há vinho e há... adegas e em Vila de Frades há muitas. Muito típicas e muito bonitas, algumas com talhas centenárias, e todas a merecer uma visita, elas são o sítio certo para degustar o verdadeiro vinho da talha (a par das cubenses freguesias de Vila Alva e Cuba). Mas atenção, este vinho, por ser natural, tem uma longividade curta, pelo que apenas está disponível três ou quatro meses, se bem que, atualmente, já exista engarrafado. Verdadeiras instituições e locais preferenciais para o convívio, nas adegas e tabernas alentejanas um copo de vinho e um qualquer petisco (sempre partilhado) são, ainda hoje, pretextos para a prática espontânea de outra 'arte' em que os alentejanos são exímios e que é a expressão mais genuína da cultura destas gentes, o cante. Não será exagero dizer-se que o vinho da talha é parte integrante da história, cultura e vida social do Alentejo. Deste Alentejo!    

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Destaco uma adega que, pela sua antiguidade e caraterísticas, é também denominada como adega-museu, a Cella Vinaria Antiqua, pertencente à empresa Honrado Vineyards, proprietária do restaurante típico País das Uvas. Foi inaugurada em 2018 e está instalada num edifício centenário, podendo dizer-se que é o resultado de um acaso, já que a traça original do espaço foi 'descoberta' no âmbito de uma pequena obra de remodelação para transformar o que restava de um antigo café numa adega. Restituída, tanto quanto possível, à sua forma original, a adega é hoje um dos pontos de interesse da vila. A par de um espaço arquitetonicamente belíssimo, ali pode acompanhar-se o processo da técnica de produção milenar do vinho da talha. E prová-lo, naturalmente. Visita obrigatória.   
Há outro projeto recente na vila, este com a chancela de António Zambujo, músico alentejano que dispensa apresentações. É a Adega da Zabele, inaugurada em 2023, em resultado da recuperação de uma adega que viu a luz do dia em 1879. Entre outras coisas, o novo espaço, além de espelhar o compromisso do músico com o Alentejo, sua terra de origem, pretende dar a conhecer o que a região tem de melhor, desde a gastronomia às mais variadas formas de expressão artística, através de eventos em que a música é presença constante. E também o vinhos... obviamente.

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Merece ainda uma visita o Centro Interpretativo do Vinho de Talha, aberto em 2020, para ser "espaço de interpretação, de difusão científica e tecnológica e de divulgação do património imaterial relacionado com o saber-fazer daquele produto ancestral.". A visita é deveras interessante, pois leva-nos numa viagem pela história do vinho de talha, desde o tempo dos romanos até aos dias de hoje, dando-nos a conhecer o ciclo produtivo, desde a cultura da vinha, passando pela produção do respetivo néctar nas talhas e terminando numa taberna... Atualmente, este organismo lidera um processo de candidatura da produção artesanal de vinho de talha a Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.

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Miando pouco, arranhando sempre e não temendo nunca", Fialho de Almeida, in Os Gatos
A expressão é tida quase como o cartão de visita do escritor Fialho de Almeida, nascido em Vila de Frades (1857-1911) que, de acordo com a placa afixada na casa onde nasceu, foi "Romancista e pamphletario. Além de crítico illustre foi também o mais forte e original prosador da sua geração." Apesar das suas origens humildes, formou-se em medicina, que nunca exerceu, por ter encontrado na escrita a sua verdadeira vocação, tendo sido uma das vozes mais acutilantes, satíricas e irreverentes da sua época. Colaborou com vários periódicos da altura através da publicação de contos, crónicas, críticas literárias e teatrais, revelando sempre o seu espírito crítico, independente e rebelde. Condenando variadíssimos aspetos da sociedade no período que marcou a transição da Monarquia Constitucional para a Primeira República (finais do século XIX – inícios do século XX), nunca teve 'papas na língua' para denunciar, de forma implacável, o que considerava a decadência e corrupção que (já) então minava o país. E não havia instituição, personalidade, partido ou grupo social que merecesse a sua condescendência. O seu maior sucesso terá sido no conto, 'arte' em que foi, porventura, um dos maiores da sua época. Não me alongando muito, saliento Os Gatos, de onde extraí a frase acima (por sinal, també m reproduzida no mausoléu do escritor sito no cemitério de Cuba, terra que habitou nos últimos anos de vida). Uma obra muito mordaz, em seis volumes, publicada originalmente em crónicas que retrataram de forma irónica a sociedade burguesa de então; e O País das Uvas, uma coletânea de contos que retratam a vida na aldeia, no Alentejo. Homem de fortes ideais, e defensor de um Portugal mais evoluído, bateu-se sempre pela defesa da educação e pelo combate ao analfabetismo popular. Em jeito de nota de rodapé, o País das Uvas deu nome a um restaurante em Vila de Frades, como atrás referi. Já agora, ler Fialho de Almeida reclama o recurso constante a um dicionário, mas uma vez entendida a escrita é, sobretudo, doloroso verificar que, mais de um século depois, continua atual...

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Estão em curso escavações, pelo aspeto, feitas com critério científico apurado. [...] Em geral, as ruínas são melancólicas. Mas estas, talvez por se sentir nelas o trabalho de gente viva [...], acha o viajante que são agradável lugar. É como se o tempo se tivesse comprimido: anteontem estavam aqui os romanos, ontem os frades de São Cucufate, hoje o viajante, por pouco não se tinham encontrado todos.", José Saramago, in Viagem a Portugal
Vila de Frades tem, de facto, muito que contar, mas estava na altura de rumar aos campos, sobretudo de vinhas e olivais, mas também alguns amendoais, que começam a ser muito comuns no Alentejo.

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Chegamos às ruínas da romanas de S. Cucufate, um sítio arqueológico de grande valor histórico. O complexo é composto por uma mansão, termas, um templo e uma zona de produção agrícola, sendo provavelmente a maior villa em Portugal e uma das mais bem preservadas da Península Ibérica. Terá sido ocupada pelos romanos até ao século V ou VI d. C. Já no século XIII, as ruínas foram ocupadas por frades, os tais que terão dado origem ao nome da localidade, que as converteram num local de culto em honra de São Cucufate. Em 1255, o espaço foi doado ao Mosteiro de S. Vicente de Fora de Lisboa, que ali instalou novo convento. Desta vez, não visitamos, até porque estava fechado (hora de almoço), mas já lá estivemos antes e vale mesmo uma visita. É, na verdade, um espaço quase improvável naquela envolvente. 

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Seguimos caminho, sabendo que nos espera a grande subida do dia, rumo à ermida de Sto. António dos Açores, que data do século XVII. Começamos a avistá-la, a grande distância, lá bem no alto... tão alto que apetece desistir. Vamos divagando sobre os 'Açores' do nome do santo. Teria algo que ver com as ilhas? Nada disso. Ao que consta, foi mandada construir por um conde da Vidigueira, para cumprir uma promessa que fizera se achasse um ave que lhe havia desaparecido (um açor). O açor apareceu naquele outeiro e o conde lá teve de honrar a sua palavra. Visitada a capela e apreciadas as vistas amplas que dali não têm fim, descemos pelo mesmo caminho e iniciamos a aproximação ao local de partida, aí dando por concluída a jornada.

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