3 novembro 2022
O percurso | 13,5 km (fizemos 17,35), 230 m desnível acumulado, circular, fácil
Localidade | Serpa, distrito de Beja
O percurso de hoje vai dar-nos a conhecer um pouco melhor a paisagem natural alentejana, tendo Serpa como ponto de partida e de chegada. Dona de um dos maiores concelhos portugueses, com uma área de 1106,5 quilómetros quadrados, esta pacata cidade alentejana merece ser visitada. A par de uma gastronomia de perdição, onde se destacam os afamados e premiados queijos, o seu centro histórico muralhado e repleto de casinhas brancas maravilham qualquer visitante. É que o castanho das muralhas do século XIV combina na perfeição com o branco imaculado das casas. De facto, o epíteto de 'vila branca' assenta-lhe que nem uma luva. Apesar de já conhecer a cidade, percorremos algumas ruas apenas para 'matar saudades'. Deixo uma nota para o Museu do Cante Alentejano, cuja missão é contribuir para a promoção e preservação desta forma tão única e tradicional de cantar (e encantar, acrescento eu). Muito merecidamente, desde 2014, por decisão da UNESCO, passou a fazer parte da Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Além de um centro interpretativo, o museu assegura um conjunto de atividades e exposições relacionadas com o cante, motivos mais do que válidos para uma 'espreitadela'.
Dirigimo-nos para o ponto de partida, o jardim em frente do cineteatro.
Quem me dera ir contigo; Rio Guadiana querido; Nas ondas que vão p’ro mar", Tradicional
É quase impossível falar de Serpa sem falar no Guadiana, o 'grande rio do Sul', o quarto mais longo da Península Ibérica. É que dos 235 Km que este rio transfronteiriço corre em Portugal, 150 são no Alentejo, e Serpa situa-se, justamente, numa elevação na sua margem esquerda. A sua influência neste território é grande e justifica que a região esteja integrada no Parque Natural do Vale do Guadiana, uma área com cerca de 70 hectares que, nos concelhos de Serpa e Mértola, abrange a zona ribeirinha do Guadiana e também a vila de Mértola. O seu objetivo é, naturalmente, proteger e preservar, não apenas a área ribeirinha, mas também a planície circundante, colocando-as fora da mira voraz de quem olha para os territórios em busca de formas de lucro fácil. E toda aquela envolvente bem merece, efetivamente, ser preservada, pois, do ponto de vista paisagístico, esta é uma área particularmente rica e de grande beleza, inclusive na vertente mais humanizada.
Só o que é belo nos faz abrandar o passo. O que é feio apressa-nos o passo.", Gonçalo M Tavares in O Torcicologologista Excelência
Iniciamos a nossa marcha, não esquecendo que estamos em pleno coração do Baixo Alentejo. Ora, "em Roma, sê romano", por isso vamos fazê-lo sem pressas, com muita calma. Temos todo o 'vagar' do mundo, afinal estamos ali para desfrutar da imensidão que temos pela frente. Sim, porque no Alentejo tudo é muito grande e o 'vagar' uma matriz alentejana.
Saímos do miolo urbano e entramos em área rural, atravessando campos agrícolas a perder de vista. Estamos em terras de latifúndio. São de cereais os primeiros campos por que passamos. É novembro, as culturas estão ainda no início, o solo, que ali é escuro, já está preparado ou semeado e, aqui e ali, já começou a germinar. Os grande torrões de terra seca são um indicador evidente do clima (seco) naquela região. E também, acrescento, das alterações climáticas, pois em novembro era suposto que a terra já tivesse sido 'regada'. À nossa direita, um milheiral imenso ergue-se formando uma massa que, ao longe, faz lembrar o mar, um mar verde. Vem-me à memória Florbela Espanca, essa grande poetisa alentejana que, entre outros temas, também (e tão bem) imortalizou o seu amor pelo Alentejo.
A terra prende aos dedos sensuais; a cabeleira loira dos trigais; sob a benção dulcíssima dos céus.", Florbela Espanca
Onde se lê 'trigais' poderia ler-se milheirais, que o sentido não se perderia. Infelizmente, nem tudo é poesia e a verdade é que aqueles lindos milheirais, já com maçarocas e tudo, dão abrigo aos temíveis javalis. É bom que permaneçam escondidos.
Avançamos, passando por alguns montes, como o da Caldeira ou o da Repoila e o cenário começa a mudar. Os vastos campos lavrados dão, agora, lugar ao olival e ao montado. Olival tradicional que, felizmente, e quase miraculosamente, ainda sobrevive nesta região. A planície, aqui, é ondulada e, no nosso horizonte, tudo está organizado em pequenas colinas e vales como que a esconderem o rio e os seus afluentes. É esta a envolvente de Serpa, é daí, também, que vem o seu encanto.
Vamos descendo em direção ao rio e vamo-nos deliciando com as oliveiras e os sobreiros, marcas (ainda) identitárias de um Alentejo mais profundo e autêntico. Passamos por duas hortas abandonadas, a do Lala e a do João Garcia, de onde já se avista o Guadiana. No terreno circundante à margem do rio a vegetação é, predominantemente, arbustiva e, no chão, inúmeras tocas indiciam que aquela é uma zona rica em coelhos e lebres... será uma zona de caça? Presumimos que sim. Junto à margem, já dentro de água, os juncos e o bunho (ou buinho) são os protagonistas. Deste buinho se fazem os fundos das tradicionais cadeiras alentejanas, arte também quase em vias de extinção. O espelho de água reflete as colinas pontuadas por oliveiras da outra margem. Visto de algumas perspetivas, o rio parece um lago. Fazemos ali uma pausa apenas para comungar daquela beleza tão tranquila que, literalmente, nos toca todos os sentidos. Os sons, as cores, os cheiros... São estes os recantos que fazem valer a pena todo o esforço que despendemos nestas empreitadas. E estão ali só para nós!
Acompanhamos o curso do rio e chegamos à Azenha da Ordem, a tal que dá o nome ao trilho, um robusto e pitoresco engenho de moagem típico da indústria ribeirinha, em muito bom estado de conservação, apesar de há muito estar desativado. Estes moinhos ancestrais, em tempos bastante numerosos nas margens dos rios, utilizavam a força motriz da água para acionar os mecanismos que moíam os cereais que, nesta zona, abundavam ao ponto de valerem ao Alentejo o título de celeiro da nação. Estas obras de engenharia, camufladas de uma aparente simplicidade, não deixam de me surpreender.
Antes de chegar à azenha, fomos confrontados com um obstáculo que poderia ter arruinado o dia. No Alentejo, é muito frequente ter de se atravessar propriedades privadas, através de vedações que evitam a saída de animais, maioritariamente rebanhos. Nestes casos, há autorização para se abrir (e fechar) as cancelas e continuar. Há, no entanto, algumas situações em que, devido a alguma obra ou intervenção no terreno, o caminho pode estar interrompido. Foi o que aqui nos aconteceu. Sem qualquer aviso de que a passagem para a azenha não estava 'muito' acessível, fomos confrontados com uma vala, larga e bastante profunda, que quase nos impediu de avançar no trilho. Voltar para trás estava fora de questão, pelo que, com alguma arte, engenho e espírito de aventura, lá conseguimos concretizar o nosso objetivo. São situações pouco agradáveis, pois podem significar uma queda, o que naqueles locais remotos não é desejável. Fica o alerta.
É hora de regressar e de subir tudo o que havíamos descido. Uma subida longa, mas suave, através de uma bonita zona de montado de azinho, uma paisagem valiosa, porque rara, de grande interesse económico, cultural e ambiental. Depois de passar os montes das Melrinhas e do Gago, a paisagem volta a ser agrícola, até que entramos em Serpa pela Eira de São Pedro, onde nos espera uma capelinha, branca, pois claro, dedicada ao referido santo.
Duas notas, breves e finais, sobre dois importantes tópicos a reter deste percurso:
- Os montados de sobro e de azinho são ecossistemas agro-florestais criados pelo homem, sendo muito caraterísticos do Alentejo e subsistindo apenas no sul da Península Ibérica e no norte de África. Trata-se de florestas de sobreiros (quercus suber), de onde se extrai cortiça, e azinheiras (quercus ilex), que produzem as bolotas que alimentam o 'delicioso' porco alentejano de montado. São, pois, relevantes ao nível económico e social, mas também ambiental, pelo contributo para a conservação da biodiversidade, dando abrigo a várias espécies ameaçadas, como é o caso do lince ibérico. Gozam de proteção atribuída pelo Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade. Portugal é dono da maior extensão de sobreiros do mundo, 35 % da área mundial, sendo o maior exportador de cortiça.
- O olival faz parte da tradição milenar nos países da orla mediterrânica. O tradicional, não os de cultura de intensivo e de superintensivo, que mais parecem gigantescos relvados de campos de futebol. O azeite proveniente das suas azeitonas, porventura a gordura vegetal mais valiosa, é muito apreciado e obrigatório em qualquer menu gastronómico que se preze (e componente obrigatória da dieta mediterrânica), pelo que a sua importância económica é inegável.