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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

31.01.23

PR1 MGL: Trilho de Ludares


Emília Matoso Sousa
O percurso
16,60 Km (nós fizemos 19,5)   |   Circular   |   251m desnível acumulado   |   Grau dificuldade fácil/moderado
Pontos de interesse
Casa de Quintela; sepulturas antropomórficas; poldras; Ribeira de Ludares; ponte e azenha; Quinta do Coval; igrejas e alminhas.
Observações
Percurso genericamente fácil, mas um pouco longo, o que reclama algum esforço. A parte final do percurso é feita por caminho florestal, pelo que convém planear bem o horário para não se ser ‘surpreendido’ pelo escuro.
Localidade
Quintela de Azurara | Freguesia do concelho de Mangualde de que fazem parte as povoações de Canelas, Quintas do Campo Redondo, Coval e Quintela de Azurara.
 
Poldras, galerias ripícolas e moinhos de água...
O trilho de hoje começa em Quintela de Azurara, uma típica aldeia beirã. Casas de pedra, ruas estreitas que se cruzam e que, havendo disponibilidade, podemos percorrer em busca de pequenos segredos. Encontram-se sempre. Curiosamente, e prova de que a aldeia não quer perder-se no tempo, há um número bastante considerável de moradias de construção recente. A visita ao ‘centro’ da localidade ficaria para mais tarde, já que agora era tempo de iniciar o percurso. Sabíamos que tínhamos pela frente um caminho longo, mas rico, com muitos vestígios e memórias de um passado que faz desta zona uma das mais antigas do concelho de Mangualde.

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Partimos da capela da N. Sra. da Esperança. Pequena e simples, construída em pedra entre 1971/75 numa encosta sobre a Ribeira de Ludares, da original capela apenas mantém o campanário, a cruz e algumas imagens. Caminhamos um pouco e entramos em terrenos agrícolas, onde a vinha predomina. Um muro de pedra ladeia o caminho, ao longo do qual há também oliveiras, carvalhos e sobreiros. Começa bem! Dirigimo-nos a Canelas, uma pequena povoação que terá tido algum protagonismo em séculos passados, mas que, dessa altura, apenas guardou alguns vestígios. Um deles, uma janela Manuelina numa casa em ruínas que, graças à ausência de sinalética, não encontrámos. Mais um sinal de como o nosso património cultural nem sempre tem a atenção que merece!

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O traçado do caminho leva-nos novamente a Quintela, onde podemos apreciar a Casa de Quintela. De dimensão imponente, como competia às casas solarengas, mas sóbria e robusta, à boa maneira beirã, não ostentando materiais nem artifícios esteticamente elaborados, é, ainda assim, harmoniosa na forma como se integra no meio que a envolve. Consta, na história da casa, que por lá passaram apelidos como Morais, Pintos, Melos, Ataídes, Arriagas, Tavares e Cabrais. Supõe-se, também, que a sua construção poderá ser medieval, tendo sido reconstruída em meados do século XVIII. Salvo pequenas alterações, chegou aos nossos dias quase inalterada, sendo agora utilizada como turismo de habitação. Ainda voltaremos a Quintela de Azurara, mas, agora, era hora de avançar.

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Desta vez por caminhos de floresta de pinheiro-bravo. Estamos em territórios em que as atividades rurais são fundamentais para os modos de vida destas populações. E se é verdade que a natureza é, ainda, aqui, um valor inestimável, não podemos esquecer que é preciso reclamar-lhe espaço espaço para garantir a subsistência: espaço para a agricultura, para a pastorícia e para a silvicultura (Aproveitamento e uso racional das florestas com vista ao equilíbrio entre necessidades de extração de matéria-prima, e regeneração e reflorestamento. Depois, vêm os incêndios e desequilibram tudo, mas isso é outra história).

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De facto, a floresta é um dos elementos que traduz bem a forma como o homem tem interferido com a natureza e consequente (re)configuração da paisagem. Se, onde antes havia carvalhos e castanheiros, hoje há pinhais, é porque o pinheiro-bravo produz lenha, madeira e resina. Sobrevivência oblige! O único ‘senão’ é que nem sempre se tem conseguido compensar a intromissão do homem no ambiente que o rodeia. A boa notícia é que há cada vez mais consciências focadas nas questões ambientais. A notícia menos boa é que há questões que teimam em falar ainda mais alto… 
 
Mas, por enquanto, nem tudo é mau. É que, apesar dos pesares, se nos aventurarmos por caminhos menos percorridos e menos óbvios, ainda é possível encontrar florestas e bosques ancestrais, muitas vezes sombrios (o que, no tempo quente é maravilhoso) e ricos em biodiversidade. Habitats perfeitos para aves e outros animais. E quem diz animais, diz flores e diz plantas autóctones, algumas raras e protegidas para evitar a sua extinção. Contemplar a natureza e tratá-la com respeito são comportamentos obrigatórios durante estes percursos.

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E foi entre contemplações e reflexões que encontrámos as primeiras sepulturas antropomórficas (em forma humana). Confesso que, em campo aberto e ‘no meio do nada’, nunca tinha visto nada semelhante e, apesar de não apreciar ‘monumentos’ fúnebres, é um apontamento interessante. Sobretudo pelo que nos revela: a existência, ali, de vida desde tempos imemoriais, e o respeito do ser humano para com os seus entes queridos para além da morte. Trata-se de sepulturas escavadas na rocha, geralmente abertas em afloramentos graníticos, abundantes nesta região, podendo ser ovais ou retangulares, sendo o tamanho variável, consoante se tratasse de adultos ou de crianças. Podem surgir isoladas ou em grupos de duas ou três, supostamente perto das habitações a cujo agregado pertenciam os corpos ali sepultados. Tal poderá significar que as habitações eram distantes umas das outras, organizadas em pequenos núcleos dispersos. No que respeita a datas, fala-se de um período compreendido entre os séculos VI e XI. Depois destas, haveríamos de encontrar mais exemplares ao longo do caminho.
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Continuamos e o caminho torna-se cada vez mais bonito, sempre ladeado de muros feitos de granito. Pedras sobre pedras, grandes e pequenas, cobertas de musgos de muitos invernos e a deixarem no ar a dúvida quanto à sua antiguidade. Muitos anos, certamente, apesar da aparência quase instável daquela construção ancestral. Outros tempos, outras engenharias! Caminhos antigos, outrora muito percorridos, tendo em conta a proliferação de parcelas de terreno muradas, habitações em ruínas, sulcos de rodados nas zonas empedradas, e algumas pequenas quintas em estado de abandono total. 

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É neste trajeto que se encontra um abrigo de pastor, hoje, fora de uso. À luz dos padrões de conforto que hoje temos como adquiridos (e garantidos), é difícil acreditar que aquela rudimentar e inóspita espécie de cabana de pedra pudesse abrigar alguém. Tudo é relativo quando comparamos uma situação muito dura com outra que é apenas dura. A alternativa parece óbvia. Não consigo deixar de pensar quão assustador devia ser à noite.

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A fé, a religiosidade e a crença no divino, que acompanham o homem desde a sua origem, também estão presentes neste caminho. Ali, onde só existem árvores e muros de pedra! Uma alminha incrustada num dos muros oferece conforto e tranquilidade a quem se aventure por tão isoladas paragens. Ou oferece tão somente a possibilidade de mais uma oração.

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Alminhas, ou cruzes das almas, assim se chamam os pequenos monumentos com que frequentemente nos deparamos nas terras da Beira Interior. Geralmente construídos de granito e de linhas muito simples, são, ainda assim, considerados exemplares de arte sacra de grande significado artístico e patrimonial, se bem que de raiz popular. São, na sua essência, locais de culto, onde se parava para uma breve oração ou para deixar pequenas oferendas pelas almas. Também se acreditava que protegiam os viajantes de encontros com forças do mal, pelo que estão muitas vezes situadas em caminhos rurais e isolados, em encruzilhadas e cruzamentos  considerados perigosos, nas bermas das estradas, etc, no fundo, em todos os locais que reclamassem proteção divina.
E é este caminho cénico que nos leva até à Ribeira de Ludares, atravessando-a duas vezes, a primeira sobre poldras, que é sempre uma experiência muito agradável, a segunda, sobre uma antiga ponte em granito.
 
Ao passar a ribeirinha…
Acontece, ao longo destes trajetos, ter de se atravessar cursos de água, sejam rios, ribeiras ou riachos, e nem sempre há pontes. Mas há poldras (ou alpondras)! Nesta região do país, toda a gente sabe o que são poldras. Uma espécie de passadiços feitos de pedras, mais ou menos afastadas entre si, para permitir o atravessamento, a pé, de rios, ribeiras e outros cursos de águas. No fundo, uma forma muito rudimentar de ponte, havendo algumas que já contam muitos séculos. Dependendo do estado das pedras, pode não ser fácil atravessá-las, e algumas reclamam algum equilíbrio, pelo que poderão representar um fator de stress. Eu gosto de poldras! Pela sua vertente estética (proporcionam imagens bonitas), mas sobretudo pela carga simbólica que encerram, mostrando que a criação de pontes e de estreitamento de margens foram (são), desde sempre, fundamentais no longo processo de adaptação do homem ao meio. Podemos também olhar para elas como o tal “caminho das pedras” de que por vezes se fala… ou como as “pedras do caminho” que devemos usar para construir castelos… Haja imaginação. Objetivamente falando, elas representam a solução para uma necessidade. Afinal, é assim que a evolução acontece.

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Aproximamo-nos novamente de Quintela de Azurara, atravessando aquele que é o símbolo da freguesia: uma belíssima ponte medieval sobre a Ribeira de Ludares, ao pé da qual existe uma antiga azenha.

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Iniciamos aqui uma nova etapa do percurso, acompanhando a Ribeira de Ludares e maravilhando-nos com a sua magnífica galeria ripícola. As galerias ripícolas, além de visualmente lindíssimas, são fundamentais para o ambiente. Muito sucintamente, são linhas de árvores ou espécies arbustivas autóctones ao longo das margens dos cursos de água que fazem a transição entre ecossistemas aquáticos e terrestres. Os seus benefícios para a biodiversidade são muitos: as suas raízes estabilizam as margens dos leitos; regulam a temperatura da água e limitam a proliferação de algas indesejáveis; reduzem a velocidade da corrente e os efeitos negativos das cheias; proporcionam abrigo e alimento à fauna terrestre e aquática. As suas copas frondosas e os seus reflexos nos leitos dos rios tornam a paisagem verdadeiramente idílica. 

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20220302_165412.jpgÁguas passadas que moveram moinhos…
A antiga povoação do Coval, com os seus moinhos, era a paragem seguinte. Se há testemunhos do passado que quase nos cortam a respiração, a Quinta do Coval é um deles. Percebe-se que ali houve muita vida e que se tratava de uma comunidade autossuficiente, tendo em conta as infraestruturas que restam, com destaque para o lagar de azeite, o sítio do ferreiro, ou as largas eiras para a seca e malha dos cereais. E os moinhos de água, claro. Construídos em granito e datados dos séculos XIX/XX. É evidente que Coval era quase exclusivamente uma terra de moleiros e, na verdade, há pouco mais de 50 anos, laboravam ali cerca de 12 moinhos com 18 mós em funcionamento, dedicando-se as famílias maioritariamente à moagem do milho, do centeio, do trigo, da cevada, e à agricultura de subsistência. Hoje, destacam-se na paisagem quatro moinhos, cujo sistema hidráulico era muito singular. A água, vinda da ribeira, corria por um aqueduto a uma distância de cerca de 500 metros, passando depois pelos quatros moinhos, sucessivamente, fazendo girar as mós até, por fim, entrar novamente no leito da ribeira. Um sítio imperdível, até porque é acessível de carro (isto, claro, para os não pedestrianistas). Um excelente exemplo da importância dos rios e ribeiras e de como os homens tiveram arte e engenho para tirar partido da força das suas águas.

 

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Estavamos na reta final, mas ainda havia muita floresta pela frente. O tempo é que começava a ser curto e foi em ritmo bastante acelerado, e já ao lusco-fusco, que percorremos os últimos dois ou três quilómetros. Do escuro da floresta, confessadamente, não gostei. Do trilho… é um dos mais bonitos que fizemos.

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Notas finais
Quintela de Azurara está integrada, desde 2022, na Rede de Aldeias de Portugal, uma classificação que visa a valorização e promoção dos territórios rurais e das suas aldeias, dos seus patrimónios natural, cultural e identitário. Uma marca que aposta numa experiência global da ruralidade e das suas tradições e que impulsiona o interior como destino de excelência. Das tradições desta localidade, destaco a celebração do Carnaval. Um festejo que mobiliza todos os seus habitantes, de todas as idades, mas também os habitantes das aldeias vizinhas. Durante três dias há uma agenda de eventos para todos os gostos: jogos tradicionais, bailes de máscaras, casamentos de Carnaval, papas de milho, entre outros. E há uma fogueira enorme no largo principal. Mas o espírito folião não fica por aqui. A aldeia, literalmente, veste-se de Carnaval ostentando, a cada porta, decorações, elaboradas artesanalmente, alusivas à época, quase todas com boas doses de humor, com mais ou com menos picante, porque no Carnaval ninguém leva a mal. Um verdadeiro espetáculo de criatividade, originalidade e boa disposição. A merecer também uma visita! 

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