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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

19.05.23

PR1 GVA Rota dos Galhardos


Emília Matoso Sousa
Data: 18 de abril 2023
O  percurso
13,22 Km  |  Circular |  500 m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Calçada medieval; Calçada Romana 
Localidade
Folgosinho | Freguesia do concelho de Gouveia, distrito da Guarda.

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Descansemos aqui… e vamos tomar um folgosinho de ar!”
As palavras terão sido proferidas por D. Afonso Henriques… ou D. Sancho I (não se sabe bem), dirigindo-se aos seus homens, quando ali pararam para um breve descanso, enquanto perseguiam uns mouros em fuga. Ali, naquele lugar magnífico com ar puro e águas cristalinas. Ali, em Folgosinho, que assim passou a chamar-se.

20230411_152201.jpg20230411_150355.jpg20230411_150415.jpgTerá acontecido assim? É o que a lenda diz. Quanto ao ar puro, outra coisa não seria de esperar desta linda Aldeia de Montanha tão bem situada na encosta norte da Serra da Estrela, a 930 metros de altitude. Quanto às águas cristalinas… são, certamente, de grande qualidade, tendo em conta a forma como é homenageada através de inúmeras quadras populares distribuídas pelas paredes da localidade. Destaco a vistosa fonte, no largo principal, que, num tom ‘brincalhão’, assegura que “Água e mulher, só boa se quer». Uma frase que ‘machucará’ as atuais sensibilidades, mas que faz parte da história daquela fonte e como tal deve ser entendida. 

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 Mas voltemos às lendas e aos mitos. Viriato. O valente líder lusitano que ‘despachou’ nada menos do que quatro exércitos romanos. Pois é, consta que nasceu em Folgosinho.  
Depois, há essa grande instituição chamada O Albertino. Um restaurante quase lendário, portanto, que atrai multidões a esta pacata aldeia da Beira Alta. Alguém sabe o segredo? Eu sei, mas não conto!

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Em frente, a toda a largura, o ondeado da montanha. O Sol embate contra ela, desnuda-a até à aridez. Vejo-a desdobrar-se desde a aldeia até ao alto, com grandes matas escuras, erguer-se ainda em grandes massas até ao céu queimado.”, Vergílio Ferreira, Para Sempre
Calçadas que vêm de longe…
Tendo Folgosinho como pano de fundo, a Estrela iria hoje mostrar-nos algumas pérolas do seu património geológico e cultural. Íamos calcorrear duas impressionantes calçadas, uma medieval, a da Serra de Baixo, ou dos Cantarinhos, e outra romana, a dos Galhardos, classificada como Imóvel de Interesse Público. Uma em cada vertente do vale da ribeira do Freixo, estas duas vias foram, desde há muitas centenas de anos, a conexão aos Casais de Folgosinho. Em busca do melhor que a natureza lhes podia oferecer para a sua subsistência, estes ‘casais’ ocupavam de forma dispersa áreas adjacentes a cursos de água, essencial para a agricultura e pastagens. Quase todas estas casas foram sendo abandonadas, mas tempos houve em que ali havia vida… e muito movimento. Os sulcos dos rodados de carros de madeira estão vincados naquelas calçadas para nos lembrar que entre o Homem e a Natureza, com maior ou menor equilíbrio, a relação sempre foi intensa.

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Subir a calçada ou subir a calçada?
Grande parte do trilho é feita sobre as calçadas, portanto, sem volta a dar, vamos ter de subir por uma e descer por outra. Optamos por subir a medieval (a da Serra de Baixo), respeitando o sentido recomendado. Saímos do miolo urbano de Folgosinho pelo lado dos tanques públicos e, durante cerca de um quilómetro, percorremos um caminho muito bonito em jeito de corredor , ladeado por arbustos e rochas. Passamos por algumas habitações dispersas. As vistas para o vale são muito bonitas, apesar das cicatrizes, ainda bem visíveis, dos devastadores incêndios de 2017 e, mais recentemente, de 2022. Marcas desoladores que, provavelmente, alterarão a paisagem para sempre. 
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20230411_112104.jpg20230411_113019.jpg20230411_113547.jpg20230411_113541.jpgAtravessamos a ribeira da Freita e chegamos ao início da Calçada da Serra de Baixo. Uma senhora calçada, por sinal! Olho para aquela ‘passadeira’ feita de enormes blocos de granito, em terreno bem inclinado e sem fim à vista, e sei que vou sofrer. Cerca de dois quilómetros, seguidinhos, sempre a subir… sobre pedregulhos irregulares.

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20230411_122507.jpg20230411_122011.jpgMentalmente, vou tecendo apreciações sobre aquela ‘fantástica’ via de comunicação. Sim, fantástica, porque antes da sua construção, percorrer aquelas encostas declivosas deveria ser muito mais penoso. Sim, já houve um tempo em que aquela calçada foi bem-vinda e festejada por aquelas comunidades como uma grande obra e um ‘investimento estruturante e fundamental para a melhoria da qualidade de vida daquelas pessoas…’. Terá havido cerimónia de inauguração com direito a discursos? 

20230411_122135.jpg20230411_121006.jpgO enquadramento não podia ser mais bonito (se nos abstrairmos das marcas recentes do incêndio). O vale, as encostas da serra repletas de formações graníticas, a paisagem a tornar-se mais imensa à medida que subimos. E a subida que nunca mais chega ao fim!! Cada vez mais, a Estrela mostra-nos a matéria de que é feita: rocha, granito, blocos de granito, caos de granito. É impossível, a quem vive neste território, ser imune a esta dureza. Dureza combate-se com dureza, com força de vontade, com resiliência (mais um termo da moda), e foi isso que estes homens e mulheres fizeram ao longo dos séculos. Assim funciona o ciclo. O meio que molda o homem, que molda o meio. Um ciclo que só é perfeito se houver equilíbrio. Passamos por uma casa de abrigo, verdadeira benção para quem, fustigado pela intempérie, merece uns momentos de tréguas. 

20230411_125038.jpg20230411_123647.jpg20230411_125835.jpg20230418_094528.jpgQuase a chegar àquilo que julgamos ser o topo da subida, deparamo-nos com um estradão. Será o da Grande Rota Aldeias Históricas (GR12), com o qual o nosso percurso há de coincidir, entre a Pedra Furada e a Portela de Folgosinho? Não! E aqui há que ter muita atenção, pois corre-se o risco de se perder o trilho. O estradão é para atravessar e seguir em frente… e para cima… 

20230418_100638.jpg20230418_100643.jpgEste troço do caminho é particularmente bonito e apetece parar constantemente para apreciar com tempo e calma. E também para recuperar o ‘folgosinho’. Entendo agora o comentário do rei! Nem quero imaginar o que seria perseguir mouros naquelas condições e, ainda por cima, com armas e armaduras. Vida de rei não era fácil naqueles tempos. Adiante! Os afloramentos graníticos vão-se tornando mais imponentes.

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E eis que descobrimos a Pedra Furada, assim denominada por ter uma perfuração que, segundo a lenda, servia para os mouros prenderem os cavalos. Faz sentido, até porque a pedra está mesmo ali à mão…

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Só uns metros à frente, atingimos o estradão da GR12. Entre bosques de bétulas e carvalhos, e área ardida, vamos avançando até ao ponto mais alto do nosso trilho, sensivelmente 1335 metros de altitude.

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Ali, onde tudo é pedra. Ali, onde o horizonte se abre em ângulos de quase 360º e nos oferece paisagens absolutamente esmagadoras. Ali, onde, num exercício de antropomorfismo, as geoformas graníticas foram apropriadas pelas pessoas e receberam nomes de gente. É o caso da Cabeça do Faraó, uma formação granítica que surge junto ao caminho, que tem a forma de uma cabeça humana que lembra a cabeça de um rei egípcio. Se tivesse sido esculpida por mãos humanas, provavelmente, não teria ficado melhor. Coisas da erosão!

20230418_112956.jpg20230418_113629.jpg20230418_113720.jpg20230418_114001.jpg20230418_120852.jpg

De bom grado, ali ficaríamos por algum tempo a usufruir daquele ambiente, mas ainda tínhamos muito chão pela frente. E uma extensão considerável desse chão (circa 2,5 Km), antevia-se pouco confortável. E muito fizeram os romanos, pois rasgar uma calçada na encosta de uma serra, não deve ter sido fácil. 
Pois bem, depois de umas voltinhas no panorâmico baloiço do Faraó, era hora de ‘atacar’ a calçada dos Galhardos. A tal que deve ter feito os romanos suarem as estopinhas, mas que, de acordo com a crença popular, terá sido construída numa noite de trovões por pequenos diabos ou galhardos. Daí, o nome. Tudo numa só noite. É obra!

20230418_122014.jpg20230418_123124.jpgÉ da Portela de Folgosinho que parte a calçada que nos vai levar até à sede da freguesia. Trata-se de um pequeno troço milenar, de cerca de três quilómetros, pertencente ao itinerário que, entre os séculos I a.C. e IV d.C., ligava as maiores cidades do ocidente peninsular imperial, Bracara Augusta (Braga) e Emerita Augusta (Mérida). Era, então, uma via fundamental de acesso aos Casais, relevância que manteve por muitos e muitos séculos.  

20230418_124334.jpg20230418_125836.jpg20230418_131038.jpgRealmente, é uma calçada dos Diabos! Desde logo, pelo ‘conforto’ do piso, pavimentado em blocos de pedra de configuração retangular e dispostos de forma irregular. Está implantada numa zona com alguma inclinação, descrevendo algumas curvas e sendo ladeada por formações rochosas. Mas é, de facto, espetacular! E, com toda a certeza, mais uma grande obra devidamente celebrada pelos utentes da época. Fizemo-la em sentido descendente, ótimo para quem gosta de descida, mau para o impacto nos joelhos. Andamento mais propenso a escorregadelas e tropeções. Atenção, portanto!

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Passamos por mais duas casas de abrigo. Construídas por volta de 1940, e de utilização gratuita, elas tinham a finalidade de abrigar pessoas e animais durante tempestades inesperadas. Ou seja, aquelas calçadas eram utilizadas ainda no século XX. Inacreditável!

20230418_123646.jpg20230418_123928.jpg20230418_132414.jpgJá mesmo na entrada de Folgosinho, ainda passamos pelo Parque de Lazer O Poção, onde há uma piscina magnífica de água natural… porém, fresquinha.

20230418_135029.jpg20230418_135053.jpg20230418_135140.jpg20230411_104114.jpgEste trilho superou muito as nossas expetativas e entrou para o top 10 dos nossos preferidos. Na verdade, as localidades são muito mais do que as suas ruas e as suas casas, da mesma forma que a paisagem natural ou rural não se esgota nas árvores e nos campos de cultivo. Folgosinho está rodeada de uma rica paisagem cultural rural de montanha, repleta de marcas de identidade que a tornaram única.

20230418_143755.jpg20230418_144051.jpg20230418_144121.jpgPara o dia ser mais-do-que-perfeito só faltou uma paragem n’O Albertino. Penso que, depois de subir e descer duas calçadas daquele calibre, temos o lastro adequado à ‘degustação’  ali proposta. (In)Felizmente, estava fechado para férias…