Tomando como ponto de partida o Largo da Ponte, seguimos a direção indicada e, rapidamente, estamos em caminho rural. O nosso destino são as azenhas e os fortins, mas até lá ainda temos muito que andar. Passamos por alguns 'montes'. Um monte alentejano não é, em rigor, uma propriedade construída no topo de uma colina ou de uma montanha pequena, mas, sim, a designação que se dá a uma propriedade rural, com todas as suas instalações e dependências. Para se destacarem na imensidão das planícies, geralmente e quando possível, esses complexos situam-se em zonas mais elevadas. O primeiro é o da Gravia de Pisões.
Os edifícios brancos e os portões menos ou mais elaborados oferecem-nos um contraste muito pictórico com a cor da terra. Chegamos a uma área de cultivo intensivo. Imensa! Na verdade, no Alentejo, tudo é muito. Muito grande, muito longe, muito seco, muito quente, muito frio... não há meios-termos. Ali, e até onde a vista alcança, são hectares e hectares de árvores recém-plantadas, aparentemente, oliveiras, e outros tantos hectares de terra já lavrada, à espera de mais plantações. Um pouco à frente, um olival já consolidado. Não há dúvidas de que a água de Alqueva veio alterar completamente o panorama agrícola no Alentejo e onde, antes, havia cereais, agora há olivais, amendoais, nogueirais...
Sentimentos contraditórios tomam conta de nós quando contemplamos estes mega latifúndios em que cada árvore é calibrada para ser do tamanho da outra. Tudo é simetria e aproveitado até ao último milímetro. Valerá o lucro rápido e desenfreado a fatura que todos teremos de pagar quando aqueles solos se exaurirem? Serão de qualidade aqueles produtos conseguidos à custa de produtos químicos e muita água, que é um bem cada vez mais escasso? Sim, parte considerável do Alentejo transformou-se numa espécie de meca para culturas de regadio... Não é um tema fácil. Na (in)devida altura, grupos de trabalho serão nomeados para analisar impactos ambientais e estudar soluções para remediar o que, muito provavelmente, já se sabe que não terá remédio. Mas adiante.
Segue-se o Monte da Gravia do Meio ou, mais exatamente, o que dele sobra. Um conjunto de ruínas que deixa adivinhar que aquela propriedade terá vivido tempos de grandeza e prosperidade. Dirigimo-nos para o barranco da Gravia e sabemos que, na época das chuvas, a sua linha de água implica que se atravesse a vau. Mas estamos em época de seca, apesar de ser novembro, e de água, nem uma 'pinguinha', que é como se diz no Alentejo. Apenas uma impressionante superfície barrenta, ressequida e gretada. São estas as imagens que nos devem dar a medida da nossa preocupação perante as tão mediáticas alterações climáticas.
Um pouco à frente, chegamos a uma bifurcação e defrontamo-nos com a inexistência de qualquer sinalética. Olhamos em volta, mais ou menos desorientados, e apercebemo-nos de que toda a área circundante está ocupada por novas plantações. Estava explicado o motivo do desaparecimento dos sinais. Sabemos que temos de ir na direção do rio, visível à distância, mas receamos enveredar por algum caminho sem saída.
Perguntamos a um dos trabalhadores da empreitada que, por não conhecer bem a região e por mal falar português, não nos consegue ajudar. Voltar para trás estava fora de questão, pois já percorreramos cerca de metade do trilho. Arriscamos, seguimos a nossa intuição, e entramos num montado de azinho (sobreiral) labiríntico. Muito bonito, no entanto. Até parece que estamos no Alentejo... Sempre com o rio na nossa mira, vamos desbravando caminho e, depois de algumas voltas, lá recuperamos a rota.
A visão dos dois tracinhos (amarelo e vermelho) fazem-nos respirar de alívio. Nestas circunstâncias, confesso, tenho algum receio de ser surpreendida por algum javali. Há muitos por ali. Chegamos ao Guadiana, o grande rio do Sul, como também é conhecido. Ladeamo-lo durante algum tempo, apreciando os reflexos da sua galeria ripícola na superfície espelhada das suas águas.
O grande rio do Sul
Corre nobre Guadiana; espelho de moura formosa; vai ficando uma ribeira; pela terra sequiosa", Carlos Tê / Rui Veloso
O Guadiana é o quarto rio mais longo da Península Ibérica. Nasce em Espanha, na serra de Alcaraz, nas lagoas de Ruidera, a uma altitude de cerca de 1700 metros, percorrendo 829 Km até desaguar no Oceano Atlântico (no Golfo de Cádis) entre Vila Real de Santo António, em Portugal, e Ayamonte, em Espanha. Dos 235 Km que corre em Portugal, 150 são passados no Alentejo. Assegura a fronteira entre os dois países ao longo de cerca de 110 Km, sendo navegável, na sua parte final, em cerca de 70 Km (a partir do concelho de Mértola). Sobre o seu curso foi, também, construída a Barragem de Alqueva, junto à localidade alentejana com o mesmo nome, que deu origem a um dos maiores lagos artificiais da Europa e que transformou radicalmente a agricultura no Alentejo que, de sequeiro, passou a regadio. No nosso percurso, acompanhamo-lo durante 2 Km, os mesmos que separam o concelho onde nos encontramos, Beja, do de Serpa, na margem esquerda.
Será um barco? Não, é o fortim do Vau de D. Isabel.
Poderia ser, afinal está junto à margem de um rio, mas não é. Trata-se de um fortim, ou pequena fortaleza, com um aspeto bastante peculiar, por ser completamente fechado, como se de uma 'carapaça' se tratasse. Está virado a montante, qual proa de navio, diz-se que para resistir à força das águas do Guadiana, em caso de cheias. Quanto às 'medidas', são quase 20 metros de comprimento, 5,5 de largura e 8 de altura. Não tem portas nem janelas (o acesso ao interior era feito por uma escada móvel). As paredes têm um metro de espessura e ostentam 21 aberturas muitos estreitas (troneiras) com finalidades defensivas. Para dificultar o acesso, contava com um fosso de 4 metros de largura e um de profundidade. Vigiar e proteger era a sua função, tarefa que assegurava em conjunto com outras oito construções semelhantes, formando uma linha defensiva ao longo da margem direita do Guadiana, distribuídos pelos concelhos de Beja, Vidigueira e Mértola. Foram construídos por alturas da Guerra da Restauração (1640-1648) e, eventualmente, teriam como objetivo dificultar a entrada em território nacional a invasores castelhanos. Aquela é uma zona de vaus, logo facilmente atravessada. Os que sobreviveram ao passar dos séculos encontram-se, infelizmente, em estado de abandono e profunda degradação. Tratando-se de exemplares de património de natureza militar tão pouco comuns, mereciam melhor sorte. O fortim do Vau de D. Isabel é o que se insere neste percurso. Pela informação de que dispomos, é o maior de todos. É uma construção bastante sui generis, há que reconhecer. E não é que parece mesmo um barco ali ancorado? Pena que esteja tão degradado.
Visitemos, então, as azenhas, moinhos cerealíferos movidos pela força das águas do rio. Hoje, não passam de 'peças' decorativas daquelas margens, mas há muito, muito tempo, eram fundamentais para a atividade de moagem. Não nos esqueçamos de que esta era uma zona de cultivo quase exclusivo de cereais (lá dizia a canção, ou moda, como por ali se diz, que "o Alentejo é o celeiro da nação"). De tal forma que chegou a haver, entre Beja e Serpa, naquelas margens, qualquer coisa como 22 moinhos e azenhas. O seu aspeto é muito interessante e têm o seu 'quê' de estrutura defensiva. São robustas, de forma abaulada, para resistirem às correntes do rio em altura de cheias, têm uma só divisão, o teto em abóbada, pé direito até cerca de 2,5 metros, comprimento de 10 metros e largura de 5 metros, tendo as paredes uma espessura de cerca de 80 centímetros. Pararam os seus engenhos na década de 60 do século XX. Neste trilho, passa-se pela azenhas do Vau de Baixo, de Quilos (ou Vau de Cima), e dos Machados. Nesta última está inscrita a data de 1539, a mais antiga encontrada em construções deste género e, provavelmente, a data da sua construção.
A partir daqui, e deixando o rio para trás, regressamos a Quintos, sempre por olivais de intensivo. Alguns desses campos, enquadrados pelo olival tradicional nos montes e potenciados pela imensidão da paisagem alentejana, ao longe, dão imagens muito bonitas.
Depois de um merecido lanche, em que degustámos algumas iguarias locais, demos ainda um 'pulinho' a Baleizão, onde fomos surpreendidos pelo 'ateliê' de um artesão local, o mestre Manuel Pica, exímio e fiel depositário da arte de trabalhar o buinho (ou bunho) e a 'ataboa' (corruptela de taboa, como comummente se diz no Alentejo), com o qual continua a fazer as tradicionais cadeiras alentejanas com o fundo feito desse material. Mas a sua arte não se fica pelo buinho. Vale a pena visitá-lo, aqui ou em Beja, onde também trabalha e ensina a sua arte a quem a quiser aprender, no interessantíssimo Centro UNESCO, criado para salvaguardar o património cultural imaterial, neste caso, do Alentejo. Sem dúvida, um ponto alto do dia e mais uma prova de que é, muitas vezes, à margem dos circuitos mais 'badalados' que encontramos os melhores pedacinhos do nosso magnífico país.
Baleizão encerra, ainda, uma particularidade histórica. É que é a terra natal de Catarina Eufémia que, em 1954, foi baleada à queima-roupa por um tenente da GNR, no decurso de uma manifestação de trabalhadoras agrícolas que reivindicavam melhores salários (mais dois escudos por dia) e melhores condições de trabalho. Tinha, então, 26 anos e tornou-se um símbolo de resistência anti regime salazarista no Alentejo. Dos vários poetas que a 'cantaram', destaco um excerto, particularmente bonito, de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen. "Porque eras a mulher e não somente a fêmea; Eras a inocência frontal que não recua; Antígona pousou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste; E a busca da justiça continua."