Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

17.06.24

PR1 ARR | Percurso da Esperança | Arronches


Emília Matoso Sousa
3 maio 2023
 
O percurso | 15,2 Km | 330 m desnível acumulado
Localidade | Esperança, freguesia do município de Arronches, distrito de Portalegre
 
O trilho de hoje leva-nos pelo território da freguesia de Esperança, no concelho de Arronches, distrito de Portalegre, inserido na zona protegida do Parque Natural da Serra de S. Mamede. A Serra de São Mamede, que se estende pelos territórios dos concelhos de Arronches, Castelo de Vide, Marvão e Portalegre, é a cadeia montanhosa mais alta a sul do Tejo (1025m) e confere a algumas zonas do Alto Alentejo caraterísticas quase beirãs. Não é o caso do território que vamos percorrer, situado na transição entre este maciço e a planície alentejana, e cuja altitude máxima não chega aos 500 metros.

arronches1.jpg

Esperança é uma típica aldeia alentejana, com ruas preenchidas por casinhas baixas, de arquitetura simples, e predominantemente brancas, em que sobressai o amarelo ou azul com que embelezam as fachadas. Pormenor interessante, e diferenciador, é a dimensão das chaminés, quase exageradamente grandes. Como em tantas outras aldeias do nosso país rural, dos habitantes há poucos sinais...

arronches2.jpgarronches3.jpgarronches6.jpg

 

Iniciamos o percurso junto à Igreja Matriz de Esperança, que data do século XVI, tendo sido reconstruída no século XVIII. De traços simples, mas altaneiros, a 'estatura' do edifício fá-lo sobressair no meio daquele edificado tão 'rasteiro'.

arronches4.jpgarronches5.jpg

Rapidamente se sai do miolo urbano, para se entrar em terrenos rurais, primeiro por piso asfaltado e depois por terra batida. O nosso destino, e primeira paragem, vai ser Marco, localidade da freguesia de Esperança que, com a sua homónima espanhola El Marco, partilha a ponte internacional mais pequena do mundo. Antes, temos de passar por Hortas de Cima, enfrentando alguma subida, que por estas bandas a planície é um pouco ondulada. Afinal, estamos em território 'serrano'. 

arronches7.jpgarronches8.jpgarronches9.jpgarronches10.jpgarronches11.jpgarronches12.jpgarronches13.jpg

Sempre por paisagem marcadamente rural, onde predominam as oliveiras e os sobreiros (a paisagem de montado de sobro é linda), vamos passando por alguns 'montes' e hortas.

arronches14.jpgarronches15.jpgarronches16.jpgarronches17.jpgarronches18.jpgarronches20.jpgarronches21.jpgarronches22.jpg

Num breve trajeto por estrada asfaltada, e porque caminhamos em zona fronteiriça, aproveitamos para pôr um pézinho em terras de nuestros hermanos.

arronches24.jpgarronches25.jpg

E eis que chegamos ao Marco. Ali, a fronteira com Espanha é natural e assume a forma de uma ribeira, a de Abrilongo. E se hoje a passagem de um país para o outro é 'ridiculamente' fácil, usando a pequena ponte, tempos houve em que vencer o caudal daquela ribeira, especialmente na época das chuvas, era uma aventura. Uma aventura com riscos e tudo, já que a travessia era feita mais ou menos 'à sucapa' com o objetivo de contrabandear produtos (tabaco, café, cortiça, azeitonas) entre os dois países. As fronteiras, entretanto, deixaram de ser barreiras, mas só num passado muito recente (2008) é que as duas localidades (Marco e El Marco) tiveram direito a esta infraestrutura. A Ponte Internacional do Marco, como é conhecida, é de madeira, tem apenas 6 metros de comprimento, 1,45 metros de largura, e é apenas pedonal. Quem ali chegue, e não conheça a 'história', nem se apercebe de que do outro lado da ponte é uma hora mais tarde e vai achar muito estranho que se fale uma língua diferente. É que a única sinalética disponível são umas discretíssimas letras em pedra, 'P' e 'E', uma em cada margem. Muito curioso!

arronches28.jpgarronches29.jpgarronches32.jpgarronches30.jpgarronches31.jpgarronches33.jpgarronches34.jpg

Depois de uma breve, e rápida, entrada em terras espanholas para conhecer El Marco, por sinal, uma localidade muito desengraçada, voltamos a atravessar a ponte e, de novo em Portugal, fazemo-nos à estrada para, pouco depois, penetrar numa zona de montado de sobro de uma dimensão e beleza avassaladoras. Uma mancha imensa de enormes sobreiros, com troncos de todos os feitios... Fico sempre fascinada perante estes ecossistemas criados pelo homem. Considerados "paisagens culturais", os montados são exemplos perfeitos de biodiversidade e de equilíbrio entre paisagem natural e humanizada. Os sobreiros são resistentes aos fogos, proporcionam habitat a inúmeros animais, fornecem a cortiça... enfim, muito mais haveria a dizer sobre esta árvore tão preciosa. Não é por acaso que o montado de sobro é considerado um dos ecossistemas mais ricos do mundo. Como curiosidade, a maior área de floresta de sobro ao nível mundial pertence a Portugal (34 %). Sem dúvida, um dos pontos altos deste percurso. 

arronches36.jpgarronches37.jpgarronches38.jpgarronches39.jpgarronches40.jpg

Dirigimo-nos a Hortas de Baixo, desta vez em descida, até chegar a uma zona em que a paisagem se transforma, tornando-se plana a ampla. Continuamos a andar, agora empolgados pela ideia de que vamos visitar um interessante, e importante, testemunho pré-histórico de ocupação humana naquela região. Nada menos do que pinturas rupestres com vários milhares de anos. Quantos milhares de anos? Os especialistas divergem quanto à cronologia, mas desconfiam que são 'obras' de vários 'autores' executadas em eras diversas desde o Neolítico, no Calcolítico e na Idade do Bronze. Ou seja, entre os 4000 a. C. e os 2000 a. C. É certo que até ao surgimento da escrita ainda teriam de passar muitos anos, mas esta forma rudimentar de expressão (rudimentar ao nosso olhar atual) já revelava a necessidade que o homem sempre teve de organizar o seu pensamento e criar representações gráficas para o traduzir. Com que objetivo terão feito estas pinturas? Seriam mensagens, seriam apenas desenhos? Não se sabe ao certo, mas que elas serviam para comunicar, disso, não há dúvidas. Cenas de caçadas, rituais religiosos ou outras cerimónias, enfim, cenas do cotidiano, eram os temas mais recorrentes.
 
Na freguesia de Esperança, existem vários abrigos com estas pinturas, mas nem todos estão acessíveis. O que vamos visitar é o do Vale do Junco, ou Lapa dos Gaivões, como também é conhecido. No território português, não há muitas pinturas rupestres conhecidas, pelo que estas são tidas como das mais importantes existentes ao ar livre, sendo considerado Monumento Nacional. O abrigo da Lapa dos Gaivões situa-se na Serra dos Louções (um contraforte da de São Mamede), no limite sul do parque Natural da Serra de São Mamede, a 365m de altitude, estando rodeado de pinheiros e sobreiros. Trata-se de um abrigo natural numa pequena formação quartzítica, em cujas paredes se podem observar as ditas pinturas.  
 
Confesso que ia um pouco apreensiva, pois este tipo de 'manifestação artística' nem sempre é evidente e só mesmo olhares muito esclarecidos e experientes os conseguem descortinar. Por vezes, só com muito boa 'vontade'... Felizmente, e surpreendentemente, algumas são bem perceptíveis. Conseguem perceber-se figuras humanas, de animais e uns 'traços' que poderão ser marcas de uma qualquer contagem... Que interessante se revelou a visita! É impossível ficar-se indiferente a um monumento desta natureza, é impossível não nos deixarmos transportar para aquela época em que os nossos antepassados viviam em grutas e cavernas e tinham de caçar para comer, é impossível não questionarmos o que os terá levado a deixar aqueles testemunhos. E logo ali, naquele Alentejo, hoje profundo, mas naquela altura mais profundo ainda. Realmente, o nosso país não para de me surpreender.
 
Não sendo conhecedora destas matérias, e considerando que nem todas as pinturas estão acessíveis à vista, deixo a informação constante no painel informativo do local: "Representações: Na arte megalítica, as gravuras predominam nos abrigos, penedos e afloramentos rochosos ao ar livre. Por sua vez, as pinturas - em 10 painéis maioritariamente pintados a ocre vermelho, mas também a laranja e preto - correspondem a diferentes expressões artísticas, aplicadas com diferentes técnicas. Identificam-se figuras humanas, animais, astrais e geométricas. Aqui, no teto, um painel parece representar uma cena de caça ou de pastorícia envolvendo uma figura humana, canídeos e um cervídeo, facilmente relacionável com a sociedade agro-pastoril que terá elaborado as pinturas. No lado poente, entre as representações antropomórficas, duas figuras são sexuadas e exibem coberturas na cabeça. Na face externa do abrigo resiste um painel com uma figura humana sem cabeça e ao seu lado 4 linhas, cada uma com vários traços berticais. Num conjunto de 5 figuras antropomórficas alinhadas, 3 delas parecem estar de mãos dadas. O significado das figuras não merece concordância. Alguns autores indicam que parecem representar a consagração deste espaço."

arronches49.jpgarronches51.jpgarronches52.jpgarronches53.jpg

No regresso, passamos ainda por alguns montes, alguns de aspeto moderno e plenos de atividade agrícola. Veem-se algumas vinhas, e gado a pastar. O círculo fecha-se, novamente, na igreja matriz. O calor já começava a apertar e os nossos estômagos já começavam a dar sinais... Era tempo de ir procurar um sítio catita para petiscar, que é sempre uma boa maneira de terminar a empreitada.

arronches55.jpgarronches56.jpgarronches57.jpgarronches58.jpgarronches59.jpg

Uma ponte internacional com seis metros, um 'santuário' de sobreiros impressionante e um abrigo pré-histórico com pinturas rupestres são os pontos altos de tudo o que levamos na 'bagagem' desta caminhada por território alto alentejano. Um balanço mais do que positivo, a que somámos ainda outras pérolas que recolhemos no pequeno périplo que aproveitámos para fazer nesta zona, talvez não muito conhecida. Em Pavia, concelho de Mora, merecem destaque a Anta-Capela de São Dinis (uma pequena capela construída numa anta) e a interessante Casa-Museu Manuel Ribeiro de Pavia (pintor e ilustrador neo-realista que, entre uma vasta obra, criou capas para os livros de intelectuais da sua época, como Alves Redol, Fernando Namora, Antunes da Silva, Domingos Monteiro, e ainda para edições portuguesas de Tolstoi e Dostoievski, entre outros).

arronches64.jpgarronches65.jpgarronches66.jpg

Já em Arronches, fomos surpreendidos pelo improvável Museu de (a) Brincar, que conta com um riquíssimo acervo de brinquedos, maioritariamente antigos, e que nasceu de um conjunto de doações feitas por particulares. Um espaço deveras interessante, onde também se recria, na perfeição, uma sala de aula de uma escola do Estado Novo.

arronches62.jpgarronches63.jpgarronchesescola.jpg

Digna de destaque é também a vistosa, e bonita, Fonte do Vassalo, uma construção do século XVIII com um escudo de Portugal no topo e ladeada por dois bonitos painéis de azulejos que retratam cenas da vida agrícola e os lazeres da fidalguia.

arronches60.jpg