Por caminhos (des)conhecidos
Viaje segundo um seu próprio projeto, dê mínimos ouvidos à facilidade dos itinerários cómodos e de rasto pisado, aceite enganar-se na estrada e voltar atrás, ou, pelo contrário, persevere até inventar saídas desacostumadas para o mundo. Não há melhor viagem.”, José Saramago in Viagem a Portugal
Não há, de facto, melhor passeio (ou viagem) do que aquele para o qual partimos sem um rumo definido. Um par de bastões, indispensáveis para pisos menos amigáveis, calçado apto para todo o terreno, e uma mochila com água e algum alimento é o equipamento básico para qualquer caminhada. Decidimos começar por explorar os sítios “ali à volta” da ‘nossa’ aldeia. Afinal, o nosso objetivo era apenas treinar para o Caminho de Santiago.
E foi em Santiago que, por curiosa coincidência, iniciámos a nossa preparação. Não de Compostela, mas de Cassurrães, uma pequena freguesia pertencente ao concelho de Mangualde. Com as encostas da Serra da Estrela como cenário, as suas casas de traça beirã (de pedra, pois então), os terrenos para a pastorícia, os rebanhos, e rodeada de pequenas florestas, vinhas e áreas de cultivo, esta é uma zona que, não sendo muito conhecida, faria boa figura em qualquer folheto turístico. Num raio de, sensivelmente, 15 quilómetros, seja qual for a direção que sigamos, atravessamos lugares e aldeias muito bonitos, onde as casas, maioritariamente de pedra e distribuídas por emaranhados de ruas e ruelas que sobem e descem, vão resistindo à inclemência das condições ditadas pelos rigores da serrania.
Sinal dos tempos em que a vida acontecia em comunidade, em todas estas aldeias ainda existem lavadouros e fornos comunitários, alguns ainda em uso. Percebe-se, também, que a religião é aqui muito levada a sério, se tivermos em conta as muitas capelas e capelinhas, cruzeiros e alminhas, a par das igrejas matrizes, sempre em lugar de destaque e com interiores surpreendentemente ricos. Destaco o Santuário da Nossa Senhora de Cervães, considerado um dos mais belos do concelho de Mangualde e classificado como Monumento de Interesse Nacional desde 1986. É uma construção granítica, do século XII, com um grande adro murado e coberto de árvores seculares. A título de curiosidade, é aqui que, anualmente, em setembro, se realiza uma missa campal precedida de uma procissão bastante peculiar, já que os santos de cada uma das aldeias da freguesia são transportados em tratores, devidamente engalanados. Um evento visualmente rico e diferente, tradições que dão vida a estas aldeias quase perdidas no mapa.
Os solares são relativamente frequentes por estas zonas e dão nas vistas pelas suas características arquitetónicas distintivas das demais habitações, reveladoras da riqueza e poder dos seus proprietários. Estes podiam ser nobres ou apenas famílias abastadas, apesar de a designação ‘solar’, ou ‘palacete’, se aplicar às habitações dos primeiros, com direito a um brasão na fachada para não haver confusões… Mas títulos e fortunas medem-se aos palmos e os títulos nem sempre saem vencedores, portanto, com ou sem brasão, é solar para todos e não se fala mais nisso.
O Solar dos Seabra Beltrões, em Cassurrães, é um desses exemplares. Um impressionante edifício de dois pisos e com uma frente de 11 janelas, com data original desconhecida, mas reconstruído no século XVIII. Está integrado num conjunto, classificado como Monumento de Interesse Público, de que fazem ainda parte uma capela, um jardim e um grande fontanário com acabamentos em pedraria. Por ser propriedade privada não é visitável.
A poucos quilómetros de distância, já noutra freguesia, e depois de um percurso entre caminhos de floresta e campos de pastoreio, surge na nossa frente o magnífico Solar de Almeidinha, cuja primitiva construção, em pleno coração da aldeia, remonta ao século XVI. Também com uma capela e jardins, bem como um conjunto de anexos agrícolas (cavalariça, lagar, adega, …), o espaço foi alvo de obras profundas de recuperação e é atualmente utilizado para a realização de eventos e como alojamento local. É visitável, mediante marcação.
Em Póvoa de Cervães, outra aldeia cheia de bocadinhos de História, se repararmos nas datas de vários exemplares do seu património cultural, encontrámos uma simpática senhora que fez questão de nos guiar numa visita à Igreja Matriz. Ponto alto da visita, e grande orgulho da anfitriã, a imagem da Nossa Sra. de Aparecida, padroeira do Brasil, que, de acordo com a 'guia', será única no nosso país. Será? Uma senhora com muito mundo, fruto de muitos anos passados em terras brasileiras, entre outras geografias igualmente longínquas, que acabou por dar um contributo engraçado para a nossa cultura geral. Para nós, aquela minúscula aldeia beirã ficará certamente associada à Sra. de Aparecida, à boa receção daquela simpática senhora e, curiosamente, ao filme Karaté Kid... já que a senhora é casada com um senhor japonês que é, e foi a própria que o disse, parecido com o senhor Miyagi, personagem do referido filme. Estes são os tais pormenores que tornam inesquecíveis estes momentos.
São várias as aldeias que ali se podem percorrer, cada uma com as suas peculiaridades e encantos. Muitas daquelas pequenas casas de pedra, que hoje achamos tão pitorescas e que são tão valorizadas e procuradas, são sobreviventes de uma época marcada por grandes dificuldades e privações. Por vezes, as pedras usadas na sua construção eram aproveitamentos de ruínas de edifícios de outras eras, pelo que, se olharmos com atenção, é possível, no meio de uma parede, vermos partes de janelas manuelinas, florões de pequenos monumentos, etc. Engenhosamente alojadas nas irregularidades de um território serrano e austero, ora cercadas de verde, ora do cinza do granito, estas aldeias são autênticos presépios quando avistadas de longe.
Para quem gosta da natureza ou, simplesmente, pretende fazer uma pausa ‘fora de tudo’, estes são os caminhos… os tais que não vêm nos roteiros, nem nos guias, e em que apenas nos cruzamos com um ou outro residente, com um ou outro rebanho. Também podemos cruzar-nos com alguns exemplares de Serras da Estrela, magníficas e encorpadas criaturas caninas geralmente pacíficas, mas que, quando em missão de guarda, impõem muito respeitinho. O procedimento é manter a calma e acreditar que, se estiverem soltos e sozinhos, é porque não são perigosos. Até hoje, nada aconteceu que contrarie esta minha tese. De resto, as paisagens são deslumbrantes e, momentaneamente, fazem-nos acreditar que vivemos no melhor dos planetas…. E depois… a civilização está logo ali ao virar da esquina. Até Viseu são menos de 20 Km.