Já que estamos em Santiago de Compostela…
É fácil e é difícil falar desta cidade espanhola, capital da região da Galiza. Fácil, pela quantidade de atrativos que a tornam tão interessante e especial; difícil, pelos mesmos motivos. Desde logo, toda a espiritualidade que a envolve pela relevância que desempenha no mundo cristão, quase comparável a Roma ou a Jerusalém. Possuidora de uma monumentalidade considerável e encantadora, é em torno da Catedral e da Praza do Obradoiro que tudo se desenvolve. A partir daí, em cada esquina e em cada rua, há uma descoberta, seja uma nova praça, de que a de Quintana é um bom exemplo, seja um mosteiro, como o de San Martin Pinário, entre outros. Prova disso mesmo é o facto de a sua zona histórica ter sido declarada, em 1985, Património Cultural da Humanidade, pela UNESCO. Não é meu objetivo fazer um roteiro turístico da cidade, sob pena de ignorar algum ponto importante, e porque acredito que vale a pena ser percorrida sem qualquer tipo de ‘pressão’. Cada visitante deverá apreciá-la com os seus próprios ‘filtros’. Ainda assim, e por se tratar de um local ‘relativamente’ recente, além de ficar fora do casco velho da cidade, destaco um local que merece mesmo uma visita.
Monte Gaiás - Cidade da Cultura da Galiza
É no cimo do Monte Gaiás, fora do centro histórico da cidade da peregrinação, que se situa aquele que, pela sua dimensão, conceito e arrojo, é já considerado um novo ícone da Galiza - A Cidade da Cultura. Situada a poucos quilómetros do centro de Santiago de Compostela, a obra é visível a partir de alguns pontos da cidade, chamando a atenção pela estranheza e indefinição da sua forma quando vista a distância. É possível chegar-se lá de carro, mas os cerca de quatro quilómetros do percurso fazem-se sem dificuldade a pé. Afinal, o que são oito quilómetros (ida + volta) para quem já tinha caminhado tanto nos dias anteriores? A verdade é que caminhar é viciante...
Para os apreciadores de grandes projetos arquitetónicos, esta é, sem dúvida, uma visita imperdível. Habituados a associar Santiago de Compostela aos contornos e traços medievais das suas construções, aquilo que nos espera no cimo do monte está nos antípodas. Ou talvez não, de acordo com o racional do projeto. Considerada, para já, a obra do século XXI, as entidades galegas não pouparam esforços e entregaram o projeto à criatividade de um dos maiores teóricos da arquitetura do séc. XX. E também um dos mais controversos: Peter Eisenman. Ricardo Bofill, Daniel Libeskind, Rem Koolhaas, Dominique Perrault e Santiago Calatrava foram outros nomes a concurso. Sobre Peter Eisenman haveria muito para dizer, mas não será aqui. Muito resumidamente, importa saber que foi um dos precursores da arquitetura desconstrutivista, que é, grosso modo, caracterizada pela fragmentação, pelo não-linear, pelas formas não retilíneas, conferindo aos edifícios uma certa imprevisibilidade e aparência visual controladamente caótica. Adepto da utilização das tecnologias de última geração, os seus trabalhos tendem a transgredir as formas de organização tidas como tradicionais: formas geométricas que se cruzam entre planos e estruturas, formas distorcidas, aparente falta de harmonia, construções que parecem desafiar a gravidade e a estabilidade… O mix de ingredientes ideal para escandalizar alguns e deslumbrar outros.
Um megacomplexo cultural e de entretenimento
Nasceu com aspirações a ser um espaço de confluência e projeção internacional, que responda aos desafios da sociedade da informação e do conhecimento. Um espaço com um protagonismo idêntico a um Museu Guggenheim, uma Tate Modern Gallery, ou um Museu Pompidou. Tudo isto, potenciando e respeitando as tradições associadas à peregrinação e à hospitalidade do povo galego.
O objetivo era fazer algo contemporâneo, mas que respeitasse o passado e o presente. Eisenman, literalmente, reconstruiu o topo do Monte Gaiás e replicou nele a trama do próprio centro histórico da cidade do Apóstolo, inspirando-se no modelo da vieira, símbolo maior da tradição jacobeia. Tal como no centro histórico, também aqui tudo está organizado por ruas que confluem para uma grande praça. O espaço, ainda não totalmente concluído, acolherá um conjunto de serviços e atividades destinados à preservação do património e da memória, ao estudo, investigação, produção e difusão em campos tão diversos como as letras, a música, o teatro, a dança, o cinema, as artes visuais, entre outros. A par de vários edifícios para uso administrativo, o espaço contempla vários edifícios públicos, como o Museu da Galiza e Centro de Arte Internacional; Centro de Música e Artes Cénicas e Centro de Serviços; Biblioteca da Galiza e Arquivo da Galiza.
Por curiosidade, entrámos no edifício do Arquivo e Biblioteca da Galiza e ficámos deveras surpreendidos com a modernidade que se respira lá dentro. Apetece, de facto, trabalhar ali. Surpreendente e agradavelmente, estavam ali patentes três interessantes exposições, uma sobre mulheres galegas empreendedoras, outra sobre o escritor galego Florencio Delgado Gurriarán, outra, ainda, sobre escritoras e poetisas galegas. Quando biblioteca e arquivo se juntam num só espaço, podem fazer-se trabalhos de grande qualidade e bastante apelativos.
O Museu, por ser segunda-feira, estava encerrado. Ainda assim, convidaram-nos a entrar e a conhecer o espaço, e acabámos por ver a exposição Escenas do cambio: María Casares – Pedro Soler. Collioure 1989, uma homenagem à atriz galega María Casares, na comemoração do centenário do seu nascimento, com objetos e peças inéditas do recital por esta realizado na cidade francesa de Collioure em 1989, acompanhada pelo guitarrista de flamenco Pedro Soler. E porque há pormenores que nos marcam mais do que outros, entre os vários objetos pessoais e manuscritos expostos, houve duas fotografias que mereceram a minha atenção: uma da atriz tirada por Albert Camus, outra de Albert Camus tirada pela atriz. Supostamente, manteve com ele um relacionamento durante alguns anos…
A arte que acontece no exterior
Enquanto espaço multidisciplinar, todos os recantos daquela ‘cidade’, construída de betão, aço e vidro, nos presenteiam com instalações artísticas, temporárias ou permanentes, algumas com mensagens que nos convidam à reflexão, seja uma escultura composta por três enormes botas de peregrino abandonadas, feitas em granito negro, ferro fundido e betão, e que representam o Caminho como uma extensão dos nossos próprios passos (Zapatos no Camiño, de Francisco Leiro); seja uma pirâmide feita de espelhos, em que nos refletimos e nos encontramos, uma espécie de caixa de correio onde podemos deixar os nossos medos, que previamente escrevemos num papel (Deixa aqui os teus Medos, de Alicia Framis).
Dignas de nota, até pelo lugar de destaque na paisagem, são as Torres Hejduk. Desenhadas em 1992 pelo arquiteto com o mesmo nome (John Hejduk) para outro espaço da cidade, e recuperadas por Eisenman, numa homenagem póstuma ao amigo e colega. Duas estruturas de forma idêntica, mas revestidas de diferentes materiais (uma, de pedra, outra, de vidro), cujas imponentes silhuetas se recortam no céu como que a replicar as torres da Catedral que se vislumbram à distância.
Mas há mais: uma grande mancha verde que cobre o Monte e rodeia a Cidade da Cultura, batizado como Bosque da Galiza, e que foi plantado entre 2015 e 2020, contando com a participação voluntária de algumas centenas de galegos. São 34 hectares ocupados por mais de 12 mil árvores de espécies autóctones (carvalhos, freixos, pinheiros, faias…), riscados por trilhos que conduzem ao topo e que tornam a subida do Gaiás muito agradável, convidando à prática de atividades de ar livre. Já agora, é também do alto deste monte que se vislumbram as melhores vistas panorâmicas da zona histórica.
E um dia, o monte foi abaixo…
Como todas as obras de grande envergadura, particularmente as que desafiam os limites da criatividade, as que são disruptivas, esta não fugiu à regra e, desde o seu anúncio, foi alvo das maiores críticas, nem sempre positivas. Sobretudo, por ser um projeto megalómano e com um orçamento considerado excessivamente elevado, mas também pelo seu impacto ambiental. É que para a sua execução foi necessário nada menos do que destruir e reconstruir o monte.
Mas a Cidade da Cultura está lá e é a evidência de que a Galiza está de olhos postos no futuro e quer ter um lugar de destaque no panorama da cultura europeia (mundial?). Opiniões à parte, o espaço não deixa ninguém indiferente e, certamente, irá provar que, não fora a teimosia e a ousadia de alguns e muitas das grandes obras arquitetónicas de outras épocas nunca teriam saído do papel. Modernidade e tradição podem, e devem, coexistir, e isso é sinal de evolução. Visita mais do que obrigatória!