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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

08.11.23

Etapa 8: West Highland Way | De Kinlochleven a Fort William (24 Km)


Emília Matoso Sousa
Última etapa! Vai ser longa, o calor continua a não dar tréguas, mas a proximidade da 'meta' dá-nos um ânimo especial. É só mais um 'bocadinho'...
Hoje, o pequeno-almoço (o meu) foi porridge. Ele há lá coisa mais escocesa do que um bom e velho porridge? Parece que é muito alimentício e isso é o que se pretende quando pela frente há 24 quilómetros de chão, sem restaurantes ou outros sinais de civilização.
 
À saída de Kinlochleven, espera-nos uma subida íngreme, pedregosa e interminável.

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É preciso sofrer para se aceder às melhores vistas, vamos dizendo mentalmente, como que a pedir desculpa ao corpo pelos esforços a que o sujeitamos. Não é verdade que é depois da tempestade que melhor se saboreia a bonança? E de metáfora em metáfora, chegamos ao topo. As vistas são, de facto, soberbas. Primeiro, o corredor azul do Loch Leven encabeçado pela vila que deixáramos para trás. Depois, as montanhas grandiosas e os vales, no meio dos quais há um caminho que seguimos e que nos proporciona uma caminhada bastante confortável.

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A vastidão da paisagem naquela secção do caminho é avassaladora e a fina linha ligeiramente ondulada que vislumbramos no horizonte, sobre a qual caminhamos, dá-nos a medida do que ainda temos pela frente. Que não é pouco, diga-se!

etapa821.jpgetapa810.jpgetapa808.jpgNo meio daquele imenso nada, uma casa em ruínas destaca-se e é o centro da atenção de todos os que por ali vão passando. Deve haver poucos edifícios tão fotografados como  aquele. Custa acreditar que um dia alguém tenha construído ali uma casa. Voltará algum dia a ter vida?  

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O calor, esse nosso inimigo, continua a incomodar-nos e a obrigar-nos a constantes paragens junto aos vários cursos de água por onde vamos passando. Aproveitamos para nos refrescar e para molhar os chapéus, única forma de prolongar a sensação de alguma frescura. Há quem ali reabasteça os cantis de água. Infelizmente, não temos filtros nos nossos cantis, pelo que não arriscamos beber aquela água tão tentadoramente fresca e límpida. Que tortura! Mentalmente, anotamos a necessidade de adquirir esse importante acessório para caminhadas futuras.

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Um brasileiro, com quem nos cruzamos neste trajeto, aproveita para falar connosco em português. Depois de tantos dias a pensar e a falar em inglês, sabe bem ouvir a língua materna. Diz-nos ele e concordamos nós. Tal como nós, e como a maioria dos caminhantes, tinha-se preparado para tempo mais fresco, não para o calor. Ainda assim, a boa disposição era o seu maior trunfo e, por isso, sempre que passava por um curso de água ou por uma "cascatchinha", saltava lá para dentro. O pior era que, sendo esta a última etapa, já estava a antecipar as saudades que ia ter dos dias de caminhada. Como nós o entendemos! Quem faz caminhada conhece bem o sentimento de vazio dos dias que se seguem a estas 'aventuras'.
 
Um amontoado de pedras (um cairn) assinala a Batalha de Inverlochy (1645). Inverlochy é uma localidade situada a norte de Fort William, famosa por fazer parte do Great Glen Way, outro famoso trilho pedestre e para ciclismo, que liga Fort William a Inverness.

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Os apreciadores de história poderão encontrar ali perto as ruínas de um castelo do século XIII, junto ao qual aconteceram duas batalhas, uma em 1431 e outra em 1645. Há quem jure, a pés juntos, que os espíritos dos soldados que ali morreram, ainda por ali vagueiam... Que las hay, las hay, por isso, pessoas mais susceptíveis deverão pensar duas vezes antes de lá ir. Não confundir este castelo com o luxuosíssimo Inverlochy Castle Hotel, este do século XIX, e que, com as suas cinco estrelas e rodeado de uma paisagem linda de morrer, faz mais do que jus aos encantos desta Escócia idílica e maravilhosa. Desta vez, não visitámos... ficará para uma próxima oportunidade. 
 
Mas voltemos ao caminho e ao marco que recorda a Batalha de Inverlochy. Uma batalha que acontece em 2 de fevereiro de 1645 e que resulta da perseguição dos Campbells pelos MacDonals. Consta que, pela calada da madrugada, Montrose com os Highlanders, e Alasdair Maccolla com os seus irlandeses, todos apoiantes dos MacDonalds, atacaram e destruíram o exército dos Campbells. O local da batalha fica a uma milha a norte de Fort William, perto das ruínas do antigo Castelo de Inverlochy. Reza a lenda que os MacDonalds assinalaram o local onde interromperam a perseguição dos Campbells em fuga com uma grande pedra conhecida como 'Clach nan Caimbeulach' (Pedra de Campbells). Com o tempo, essa pedra foi sendo substituída por um monte de pedras. Segundo a tradição, os MacDonalds (ou simpatizantes de Montrose) deveriam adicionar uma pedra ao passarem ali, enquanto os Campbells (ou simpatizantes de Argyll) deveriam tirar uma. 
 
Seguimos viagem, passando, agora, por uma área de floresta, onde alguns caminhantes aproveitam para descansar. É por esta altura que começamos a avistar a montanha mais alta do Reino Unido e Ilhas Britânicas, a Ben Nevis que, com os seus 1345 metros de altitude, faz as delícias de alpinistas e praticantes de escalada.

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É procurada anualmente por muitos milhares de turistas, a maior parte dos quais a trepa usando a Pony Track, ficando as falésias de 700 metros de altura da vertente norte para os 'pro'. Entre os escoceses, ela é simplesmente 'the Ben'. Há tratamentos que são reservados só a amigos, essa é que é essa. Há quem coroe a realização do West Highland Way com uma subida ao topo da Ben Nevis, empreitada que deverá ocupar mais um dia. Cruzámo-nos com alguns. Quanto a nós, desta vez (?), prescindimos desse feito. 

Com Ben Nevis a ganhar cada vez mais volume no nosso horizonte, vamo-nos aproximando do final do caminho. Mais uma descida e entramos em Fort William. Uma descida que se revela um pouco monótona e cansativa, devido, sobretudo, ao piso, todo ele coberto de uma gravilha grosseira e desconfortável. 

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Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.", Antoine de Saint-Exupéry in O Principezinho
O final do caminho é assinalado duas vezes. A primeira, junto a uma rotunda fora do centro da cidade, ao lado ao Ben Nevis Highland Centre.

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Este era o final original, entretanto substituído (ou complementado) por outro em pleno centro, na Gordon Square, junto à estátua de bronze de homenagem ao caminheiro desconhecido, acrescentando uma milha ao WHW.

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As comemorações são devidamente 'patrocinadas' por um bar que tem a peculiaridade de, em tempos, ter sido uma igreja e, posteriormente, uma oficina de automóveis. Na verdade, continua a ser um autêntico 'templo', mais vocacionado para apaziguar o corpo do que o espírito, é certo, mas ainda assim um templo. À nossa espera estavam alguns dos nossos companheiros de estrada, que nos receberam com o maior aplauso. Que momento inesquecível! A seguir, em mesa partilhada e em confraternização com os nossos compagnons de route, foi comer, beber e festejar, pois quem traz 154 quilómetros nos pés merece isso e muito mais. O objetivo foi cumprido com sucesso. E como estamos em terras de Sua Magestade... o Rei morreu, viva o Rei!, que é como quem diz, "este já está, que venha o próximo!"  

A vontade de celebrar era tal que, desta vez, nem passámos pelo B&B para nos refrescar. A vontade de celebrar e a pouca (ou nenhuma) vontade de ainda fazer a longa e íngreme subida até à zona alta de Fort William, onde iríamos pernoitar. Por sinal, um B&B com um jardim e uma vista incríveis. A experiência de B&B na Escócia é quase sempre um valor seguro, pelo extremo conforto e pela qualidade do serviço que disponibilizam. Menção especial para os pequenos-almoços, os famosos Scottish breakfasts, que têm tudo o que os English breakfasts têm, com o acréscimo de black pudding e haggis. Haggis, essa instituição gastronómica escocesa que, de duas uma, ou se adora ou se detesta. Nós adoramos, sobretudo (se bem que não ao pequeno-almoço), quando regados com um dram de um bom single malt Scotch whisky, de preferência, bem trufado. 

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Na verdade, nesta zona da Escócia nem há muitos hotéis e muito menos os de grandes cadeias. Por enquanto! O B&B proporciona um convívio muito próximo com os outros hóspedes e isso é muito agradável. No de Fort William, conhecemos um casal de alemães que, curiosa e surpreendentemente, falavam português, pois o senhor, nos idos anos 80, tinha trabalhado em Moçambique numa empresa portuguesa. Claro que aproveitou para falar connosco no nosso idioma, pondo em prática os seus conhecimentos, ainda bem vivos, da língua de Camões. Moral da história: devemos ter sempre muito cuidado com o que dizemos, mesmo quando não há portugueses por perto! Just in case...
 
Sobre Fort William.
É a segunda maior cidade das Terras Altas, sendo Inverness a primeira e também a capital. Uma e outra são de pequena dimensão, se comparadas com Glasgow ou Edimburgo, mas ambas merecem uma visita, especialmente por quem aprecia atividades ligadas à natureza. Fort William, cujo número de habitantes não vai muito além dos 10 mil, é um importante centro turístico e muito procurado nas férias pelos escoceses, devido à proximidade de Ben Nevis, a montanha mais alta do Reino Unido e Ilhas Britânicas, e por ser 'banhada' pelo Loch Linnhe. Ou seja, para os amantes de escalada, da caminhada, do ciclismo e dos desportos náuticos. É aqui que termina o West Highland Way. Ou que começa... para quem o faz em sentido contrário. Mas há mais...
 
Vai um pulinho até Hogwarts?
A estação de Caminhos de Ferro desta cidade de província está associada a uma atração mundial que é o Jacobite Steam Train, também conhecido como Hogwarts Express, ou comboio do Harry Potter, para os menos conhecedores da personagem da saga de J. K. Rowling. É impressionante a quantidade imensa de pessoas, de todas as idades e proveniências, que, diariamente, embarcam neste mítico comboio rumo a Malaig, numa viagem de ida e volta que dura aproximadamente duas horas para cada lado. É considerada uma das viagens de comboio mais cénicas do mundo, com o plus de passar sobre o viaduto que se vê no filme, o de Glenfinnan. Há, ainda, quem espere pela passagem do comboio nas imediações do viaduto apenas para fotografar o momento em que o mais famoso comboio a vapor do mundo por ali passa.

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Não sei se é das viagens mais cénicas do mundo, mas posso afiançar que, olhando pela janela, as paisagens que desfilam pela nossa visão são pura magia. Sim, no day after, em vez de subir ao topo da Ben Nevis, optámos por embarcar neste comboio de outras eras (com bilhete comprado com meses de antecedência), acreditando que um pouco de fantasia dá um colorido diferente à vida. Além disso, esta era uma viagem que estava na nossa to do list desde a nossa primeira viagem à Escócia. 

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