19 de maio 2024
Finalmente, um dia sem chuva e sem impermeáveis! Retomamos a estrada que ali nos trouxera no dia anterior e despedimo-nos de Mougás. A estrada é pouco movimentada, muito segura e com uma envolvente muito agradável, com o mar sempre ao nosso lado.
Perto do Cabo Silleiro, o Caminho oferece-nos duas alternativas: pelo interior, percorrendo uma longa subida até Baredo; ou continuar junto à costa, aproveitando as excelentes condições do piso e as vistas soberbas. Optámos pela segunda, trocando as vistas panorâmincas do cimo da subida pela brisa mais refrescante do Atlântico tão prazerosa naquele dia já um pouco quente.
Junto à rotunda do cabo, um pequeno miradouro, Mirador del Thalassa, aponta para as Ilhas Cíes, que já começavam a desenhar-se no nosso horizonte. Mas mais do que um ponto de observação, aquele miradouro presta homenagem ao Thalassa, um navio norueguês que ali naufragou em 1 de janeiro de 1948, tendo havido apenas um sobrevivente, deixando para os baionenses uma memória amarga dos desafios extremos que o mar representava naqueles tempos.
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Segue-se outra homenagem, desta vez a nove habitantes da região, ali executados em 15 de outubro de 1936, pelas forças franquistas, durante a Guerra Civil Espanhola. Trata-se de uma escultura, A Volta dos Nove, do artista Fernando Casas. Sem entrar em detalhes, durante cerca de 40 anos, período em que a Espanha esteve sob o regime de repressão franquista, todas as noites, naquele local, apareciam nove cruzes pintadas no chão, que eram apagadas no dia seguinte, assim se mantendo viva a memória do massacre. Os tempos mudaram e permitiram, então, que essa memória, efetivamente, não voltasse a ser apagada.
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Além de muito bonito, o trajeto de hoje estava a revelar-se muito rico de informação. Baiona já está perto, mas antes, sobre a marginal que percorremos, avistamos a Virxe da Roca, padroeira dos marinheiros e um dos monumentos mais emblemáticos do concelho, vigilante no topo do monte. Com 15 metros de altura, a estátua tem a especificidade de ser talhada em granito, sendo a cara e as mãos esculpidas em mármore. Além disso, ostenta uma coroa de porcelana. Outro pormenor interessante é que segura na sua mão direita um barco-miradouro, ao qual é possível aceder através de uma escada de pedra pelo seu interior, que é oco.
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No nosso campo de visão, já com a ria de Vigo pela frente, anunciando a chegada a Baiona, surge o Castelo Monterreal, ou Fortaleza de Monte do Boi, como também é conhecido. Uma fortaleza bimilenar, já que a sua primitiva ocupação terá sido um castro que remonta ao século II a. C. Naturalmente, sofreu várias transformações estruturais ao longo dos séculos, à medida que foi sendo tomada e ocupada por vários povos. Com aquela localização tão estratégica para a defesa do território, à entrada da ria, não admira que tivesse sido tão cobiçada. Já numa aceção mais adaptada à atualidade, a sua proximidade do centro histórico de Baiona e a vista espetacular para a praia da Ribeira, uma das mais bonitas e famosas da região, mais do que justificam que tenha sido requalificada para acolher um simpático Parador Nacional de Turismo. Já agora, no que toca à defesa da localidade dos ataques de navios piratas, consta que cumpriu bem a missão, inclusive contribuindo para a derrota de um dos mais famosos corsários da história, o inglês Francis Drake, em 1585. Em jeito de curiosidade, El Draque, como os espanhóis lhe chamavam, e a quem consideravam um vil pirata, ficou conhecido pela sua luta obstinada, ao serviço da coroa inglesa, contra Filipe II da Espanha, a ponto de, depois de muitas derrotas, ter sido responsável pela destruição da Invencível Armada Espanhola.![ramallosa17.jpg]()
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Um Novo Mundo com muita Pinta.E chegamos à medieval e encantadora Baiona. Para muitos peregrinos, final de etapa, para nós, apenas local de paragem. Entramos pelo seu bonito passeio marítimo, que celebra a ligação da vila à descoberta da América. Foi ali que, no dia 1 de março de 1493, a caravela Pinta chegou com a notícia, em primeira mão, do descobrimento do Novo Mundo por Cristóvão Colombo. Aos seus comandos, vinha o capitão Martín Alonso Pinzón, ali, devidamente homenageado com a estátua da praxe. O dia dessa importante 'chegada' é comemorado anualmente na Fiesta da Arribada, estando também presente no dia a dia de Baiona através do Monolito da Arribada, uma poderosa rocha de cinco metros de altura e vinte toneladas de peso erguida numa das praças mais movimentadas da vila. Também a caravela Pinta foi imortalizada numa réplica aportada no porto da vila, funcionando como museu.
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Baiona é uma cidade com muitos charmes, considerada uma das mais bonitas da área metropolitana de Vigo. Desde logo, pelo requintado contraste entre a sobriedade dos seus edifícios históricos e o colorido do seu animado porto náutico ou, ainda, pelos areais das suas apetecíveis praias, uma das quais ali mesmo em plena frente do centro urbano. Tem, de facto, uma localização privilegiada, à beira-ria, a de Vigo, a mais meridional das Rias Baixas galegas, que ali desenha uma graciosa baía e cuja navegabilidade e riqueza pesqueira muito contribuiram para o desenvolvimento da zona. Igualmente 'precioso' é o seu vasto património arquitetónico, classificado como Conjunto de Interesse Histórico-Artístico.
Um paraíso galego.
E já que estamos em maré de preciosidades, convém não esquecer as Ilhas Cíes, ali mesmo à mão de semear, acessíveis através de uma carreira regular de catamarãs, a partir de Vigo. Protegidas do oceano pela ria, e situando-se na sua entrada, as Cíes (Monteagudo ou Ilha Norde, Ilha Do Faro ou do Médio, e Ilha de São Martinho ou Sul) são a pérola do Parque Parque Nacional Marítimo-Terrestre das Ilhas Atlânticas, juntamente com as ilhas de Ons, Sálvora e Cortegada. Graças à sua riqueza, tanto de fauna como de flora, bem como à espetacularidade das suas paisagens de natureza em estado puro e praias de água cristalina e areia branca, estas ilhas constituem um património cultural e natural de exceção. Uma curiosidade: em 2007, o jornal britânico The Guardian considerou a praia de Rodas, na ilha de Monteagudo, a "praia mais formosa do mundo". Uma informação: o acesso a este paraíso é controlado, sendo necessária autorização, facilmente obtida, para lá entrar. Quanto a nós, desta vez, contentámo-nos em vê-las à distância... é que o tempo não dá para tudo.
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Depois de um delicioso almoço abrilhantado por mais uma especialidade da gastronomia galega (arroz de choco com sua tinta), num dos muitos restaurantes locais, deixámo-nos perder pelas ruas e ruelas do casco antigo da vila. Casas de pedra, igrejas seculares, cruzeiros, ruas e ruas de restaurantes e esplanadas a fervilhar de pessoas... Entrámos na capela de Santa Liberata, mártir baionesa e primeira mulher cristã crucificada no mundo, cuja imagem se destaca na fachada principal e também no interior, no retábulo, em que está rodeada pelas suas oito irmãs gémeas, também elas umas mártires.
Parte relevante do legado religioso baionense é, também, a capela da Misericórdia, um edifício do século XVII de construção simples, sóbria e robusta, que nos revelou um interior com alguns apontamentos interessantes, designadamente a imagem de Santa Isabel, rainha de Portugal que, pouco depois da morte do seu marido, o rei D. Dinis, fez uma peregrinação a Santiago de Compostela.
Por fim, visitámos a Colexiata de Santa Maria de Baiona, um belo e imponente exemplar românico construído no século XIII, com um bonito altar em talha dourada, que nos fez lembrar o estilo cistercense do mosteiro de Sta. Maria de Oia, que visitaramos na véspera.
E estava na hora de rumar a Ramallosa, localidade que antecede o nosso local de pernoita, a Playa América, já no concelho de Nigrán.
Vamos passando por sucessivas praias, até à foz do rio Miñor, uma das zonas húmidas mais importantes da Galiza e, portanto, de grande interesse ecológico devido às colónias de aves aquáticas que por ali abundam e que, com tempo, poderíamos tentar observar. Isto, a par da indiscutível beleza da paisagem.
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Entramos em Ramallosa pela sua ponte dita românica, mas de construção medieval, considerada uma das mais formosas que se conservam na comunidade galega. É muito bonita e tem a particularidade de, no meio, ter um cruzeiro com uma imagem de São Telmo, padroeiro dos navegantes. É, pois, conhecida como ponte de San Telmo e, além de estar associada a rituais de fecundidade, conserva uma tradição, ou lenda, segundo a qual as mulheres que não podiam ter filhos pediam ao primeiro homem que passasse pela ponte que lhes vertesse água do rio sobre o ventre. Se o homem aceitasse, seria o padrinho da criança.![ramallosa39.jpg]()
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Um apontamento de homenagem a Gonzalo Torrente Ballester, escritor galego de que ambos gostamos muito, faz-nos parar. Não sendo natural de Ramallosa, passava ali temporadas, daí a homenagem. Mas os apontamentos escultóricos não servem apenas para homenagear. Servem também para sensibilizar para causas. E que melhor causa do que a preservação do ambiente? Para isso, ali está a Balmi, uma baleia feita com plásticos e resíduos recolhidos nas costas galegas durante 2021, em nome da mudança rumo a um futuro mais responsável e sustentável. E assim chegamos ao nosso destino do dia, encantados com a magnífica Praia America, outra das, gentilmente, disponibilizadas pela ria de Vigo.