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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

12.01.25

Etapa 7 / 15 - De A Guarda (La Guardia) a Mougás | 20 Km


Emília Matoso Sousa
18 de maio 2024
 
Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. Ambos existem; cada um como é." , Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa) in "Poemas Inconjuntos" 

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Foi debaixo de muita chuva que nos despedimos de A Guarda. A não ser em circunstâncias excecionais, esperar que a chuva pare de cair está fora de questão. Primeiro, porque não sabemos quando e se irá parar, depois, com tantos quilómetros pela frente , não convém fazer qualquer tipo de ronha. Ainda assim, concedemo-nos a benesse de entrar numa loja, cuja estética e qualidade do recheio nos cativou. Fundada em 1902, apresenta-se como um, cada vez mais raro, exemplo de estabelecimento que soube envelhecer com classe, mantendo-se fiel ao seu aspeto original, mas apetrechando-se de produtos modernos, variados e de grande qualidade. Um regalo para os sentidos!

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E fizémo-nos ao caminho! Já perto da saída, o paredão do porto obriga a uma paragem. Trata-se de um colorido e enorme mural, com cerca de três mil metros quadrados, criado pelos artistas Nuria e Alberto Brandon em 2018, sob o nome de A Guarda Escrita nas Estrelas. Pintado de um azul, que chega a fundir-se com o mar, e salpicado de estrelas e de figuras representativas das três freguesias do concelho - A Guarda, Camposancos e Salcidos -, esta grande obra de arte urbana é uma das atrações desta vila piscatória. A lagosta, o peixe-espada, a garça-real, ou o cruzeiro são apenas alguns elementos ali representados. E nem as marcas dos pescadores são esquecidas. Curiosamente, foi a segunda vez neste Caminho (a primeira, em Póvoa de Varzim), que nos deparámos com este tipo de marcas usadas quase como códigos de comunicação personalizados e de que nunca tínhamos ouvido falar. Ou antes, tínhamos conhecimento das que os pedreiros deixavam nas igrejas e catedrais... As marcas dos pescadores eram linhas simples, fáceis de reproduzir com qualquer instrumento pontiagudo e facilmente interpretáveis, já que muitos não sabiam ler nem escrever, e serviam para identificar a propriedade de redes, remos ou bóias. Podiam ser estrelas, cruzes, arpões, peixes, espinhas de peixe, etc, e eram passadas de pais para filhos. Uma prática interessante, sem dúvida, e um  património ainda presente na memória coletiva dos guardenses, ainda que em risco de extinção. Urge, portanto, cultivá-lo e imortalizá-lo. 
 

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Junto ao paredão, há ainda um último ponto de algum interesse. Uma estranha fortaleza de forma circular que, atualmente, abriga o Museu do Mar Atalaia, tendo sido reconstruída em 1997 no local onde antes havia uma torre de vigia que, curiosamente, foi tomada pelos portugueses durante a Guerra da Restauração. Tempos complicados, aqueles, quer para portugueses, quer para espanhóis...

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Agora, sim, bye bye, A Guarda. Sempre junto à costa, e 'abençoados' por uma bela chuvada, seguimos viagem. Passamos por algumas praias muito bonitas e também por algumas relíquias que nos contam a dura história daqueles que, numa luta de vida e morte, tiraram sustento daquele mar, fonte de riqueza, mas também cruel e traiçoeiro. Exemplos disso são os tanques lagosteiros (cetárias), testemunhos da arte e engenho de outros tempos, parte relevante da história destas gentes e, por isso mesmo, preservadas para memória futura.

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Entretanto, a chuva intensificou-se de tal forma que fomos obrigados a procurar abrigo debaixo da cobertura de um lavadouro público. Por companhia tivemos um grupo de jovens portugueses, da zona de Barcelos, de onde tinham vindo, de propósito, para fazer uma caminhada junto à costa galega. Um excelente e divertido programa para um sábado, arruinado pelos humores de São Pedro. Quando os deixámos, ainda não tinham decidido se iriam, ou não, regressar a casa. A Galiza tem destas coisas, nunca se sabe quando é que o céu nos vai cair em cima. Quanto a nós, avançámos sem medos, até porque não tínhamos outra alternativa. 

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A verdade é que a paisagem, ainda que emoldurada por tons cinzentos, não perdeu os seus encantos. O mar tem esta capacidade de se transfigurar e acompanhar as nuances das cores do céu, mantendo a sua beleza ora ameaçadora, ora calmante, conforme os ditames das condições meteorológicas.

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Para tornar a 'coisa' mais empolgante, uma calçada, aparentemente romana, em subida, exigiu-nos um esforço suplementar, acompanhado de uma atenção redobrada, já que a chuva torna as pedras ainda mais escorregadias. Enfim, ossos do ofício. Quem corre por gosto não cansa, por isso, há que aguentar, não protestar e seguir em frente. Além disso, a compensação é-nos apresentada sob a forma de paisagens verdadeiramente deslumbrantes.

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Subimos, depois, em direção à estrada (PO-552), que percorremos durante umas centenas de metros, até entrar no concelho de O Rosal. Contrariamente ao que se possa pensar, os trajetos pelas bermas desta estrada não são desagradáveis. A estrada tem uma envolvente verdejante e bonita e, para a tornar mais segura, existem faixas próprias para peões, devidamente assinaladas e protegidas. O que é bom, pois a etapa de hoje obriga-nos a saltitar entre a costa (descendo) e o asfalto (subindo). Faz parte do Caminho. Ainda assim, todo o percurso é bastante bonito. E é neste sobe e desce que chegamos a Oia, cujo imponente mosteiro, o de Santa Maria la Real de Oia, começamos a vislumbrar à distância. A neblina que paira sobre ele, bem como sobre a localidade onde está inserido, dá ao conjunto um ar de mistério. Trata-se do um mosteiro medieval, de 1137, pertencente à ordem de Cister, um edifício magnífico com uma localização privilegiada, em frente e sobranceiro ao mar. Apesar de o mosteiro ser propriedade privada, a sua igreja é visitável. Estamos entusiasmados com a perspetiva desta visita. Este iria ser, esperávamos nós, o ponto alto do dia. Sempre que possível, gostamos de conhecer os mosteiros do Caminho, e este, o da Costa, tem muitos. Não é por acaso que também é conhecido como Caminho Monacal (relativo a mosteiro ou a convento; conventual).
 

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Oia é uma pequena vila muito pitoresca, com casinhas de pedra muito arrumadinhas nas suas ruelas que, molhadas pela chuva, adquirem um ar quase cinematográfico. De repente, parece que estamos num tempo que não é o nosso.

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Dirigimo-nos ao mosteiro e percebemos, pela movimentação em seu redor, que ali está a decorrer um qualquer evento festivo. Pelas fatiotas dos presentes, só pode ser, e é, um casamento. Felizmente, a cerimónia está já no fim, e nós, como outros peregrinos, entrámos na igreja, por sinal muito sóbria, mas bonita. Quem não estava de bons humores era a noiva, não sei se pelos peregrinos junto à igreja, se pela chuva, que teimava em cair, ou se por ambos. A verdade é que, com casamento ou sem ele, as igrejas são espaços de acesso público...
 

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Abandonamos Oia e seguimos, sempre ladeando a costa, até Mougás, onde vamos pernoitar. A restante etapa foi tranquila e sem motivos de maior para paragens. Mougás, onde iríamos pernoiar, revelou-se uma localidade sem grande história, a não ser as boas vistas para o mar e o simpático restaurante onde deglutimos um ainda mais simpático jantar. Peixe e marisco, que é o que de melhor se come na Galiza. Quanto ao que se bebe, depositemos essa responsabilidade no Albariño!

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O pós-jantar foi aproveitado para desfrutar da beira-mar, e para apreciar as vaquinhas e os cavalinhos que se deliciavam com as ervas dos pastos ali mesmo em cima daquele mar imenso... seria pasto salgado? Talvez. Uma coisa é certa, com refeições menos ou mais temperadas, aquela envolvente contribui, certamente, para que aquelas vacas, à semelhança do anúncio, sejam vacas felizes.

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