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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

06.01.25

Etapa 6 / 15- De Vila Praia de Âncora a A Guarda | 18 Km


Emília Matoso Sousa
17 de maio 2024
 
A jornada de hoje é a última em território português. Cerca de uma dúzia de quilómetros até Caminha, uma pequena travessia de barco, e chegaremos a Espanha. Enfim, um pequeno passeio!
 
Antes de seguir viagem, damos uma volta pela vila. Visitamos a capela de Nossa Sra. da Boa Bonança, cuja bonita fachada se encontra copiosamente florida, o que lhe confere um aspeto muito festivo. É esta Santa que os ancorenses homenageiam na romaria com o mesmo nome e que tem como ponto alto uma imponente procissão no mar em que participam dezenas de embarcações devidamente engalanadas. Tradições de vilas piscatórias... Muito bonita está também toda a praça central, repleta de flores e a ostentar uma exposição de bonecos feitos pelas crianças dos infantários. O colorido da praça contrasta com a tonalidade sombria do dia ainda chuvoso. 

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Despedimo-nos de Vila Praia de Âncora e dirigimo-nos à marginal,  passando pelo portinho piscatório e pelo Forte de Âncora, ou da Lagarteira, outro dos que nos protegiam da ameaça espanhola. Perto do forte, paramos para apreciar um interessante monumento escultórico que traduz uma homenagem do povo de Vila Praia de Âncora "aos seus pescadores e às suas famílias, às penas no mar e às esperas em terra, às lágrimas de dor e ao pão trazido a cada regresso". O seu autor é de Viana do Castelo e chama-se Mário Rocha.

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A partir daqui, pela Ecovia do Atlântico, uma via para "caminhar e respirar", e com o mar sempre mesmo ali ao lado, retomamos o Caminho. Já na zona de Moledo do Minho, uma capela, isolada e situada em plena orla marítima, convida a uma paragem. Trata-se da Capela de Sto. Isidoro, anterior ao séc. XVII, com grande significado histórico e religioso por ter acolhido uma das confrarias mais importantes da região, a Confraria de Santo Isidoro. No exterior, a capela está protegida por um alpendre para abrigo de peregrinos. Ao longe, o monte de Sta. Trega diz-nos que a Galiza já está próxima. Passamos, agora, pela praia de Moledo que, enquadrada pela Mata Nacional do Camarido e com vista para o Forte da Ínsua, tem uma localização verdadeiramente privilegiada. É uma pena que seja tão ventosa...
 

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Sobre o Forte da Ínsua o mínimo que se pode dizer é que é surpreendente. Aliás, é considerado um ícone na zona norte do país, particularmente do Litoral Norte. Isto, porque, contra tudo o que tomaríamos por razoável, está construído sobre uma minúscula ilha rochosa (a Ínsua), praticamente sem elevação, junto à foz do rio Minho, e com apenas 200 metros de comprimento. Mas parece que, antes do forte, já alguém ali tinha construído um mosteiro, supostamente franciscano, cujas ruínas ainda lá estão. Já o forte, remonta ao contexto da Guerra da Restauração (1640-1668) e, como já sabemos, defendia-nos dos "perigosos" espanhóis. Aliás, marca o início da linha defensiva da costa atlântica. Pertence à freguesia de Moledo, situando-se a cerca de 500 metros da praia.  

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Fletimos um pouco para o interior e penetramos na Mata do Camarido, um magnífico pinhal que liga Moledo à foz do Minho, por curiosidade, mandado plantar por D. Dinis. E, assim, chegamos às portas de Caminha, onde somos recebidos pelas águas calmas do maravilhoso rio Minho que, daí a pouco, iremos atravessar. Com um percurso de 310 quilómetros, o Minho, que nasce na serra da Meira, na província de Lugo, é o maior rio da Galiza. É já no seu curso final que delimita a fronteira com Portugal, algo que ficou decidido em 1864 com o Tratado de Limites. 

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Caminha é uma vila encantadora, que já conhecíamos, e que merece visita mais prolongada do que a que o nosso tempo permitia. Ainda assim, deambulámos um pouco pelo seu miolo histórico, que é onde se situa  parte considerável do património turístico da vila, e revisitámos alguns dos seus recantos mais emblemáticos. Desde logo, a sua praça principal, a do Conselheiro Silva Torres; a Torre do Relógio e a Porta Medieval; os Paços do Concelho; a Casa Pita, casa nobre do século XVII (hoje, alojamento turístico); a Igreja da Misericórdia, cuja construção inicial remonta ao século XVI e em cujo interior se encontra a imagem de Santa Rita de Cássia, padroeira da vila; ou o renascentista Chafariz do Terreiro, contruído no século XVI pelo mestre João Lopes o Velho e considerado um dos chafarizes mais importantes do Alto Minho. Ali perto, tentámos, também, visitar a igreja matriz, de Nossa Sra. da Assunção ou dos Anjos, começada a construir no século XV, Monumento Nacional desde 1910, e verdadeiro ex-libris de Caminha, mas estava fechada. Ainda assim, deu para ver um curioso pormenor do seu exterior. Uma gárgula exageradamente grotesca, representando uma figura humana exibindo, ostensivamente e numa posição provocatória, o "rabo-ao-léu". São as chamadas gárgulas impúdicas, típicas da arquitetura gótica e que, em Portugal, podem ser vistas, por exemplo, nas sés da Guarda ou de Braga. Desta se diz que traduz uma "certa" saudação à vizinha Espanha. Diz-se... Mas nós acreditamos que não.

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Depois de um lanchinho tomado numa das esplanadas da praça, estava completa a jornada em território nacional. Sem uma ponte, em Caminha, a assegurar a ligação entre as duas margens, a forma mais rápida de atravessar o rio é de barco, o que introduz uma cambiante curiosa neste Caminho Jacobeu. A travessia do rio Minho é breve, não demora mais do que dez ou quinze minutos e, atualmente, é assegurada por pequenos barcos ou táxi-barcos que funcionam num regime 'mais ou menos' profissional. 

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Nem sempre foi assim, no entanto, já que a ligação a A Pasaxe, na margem espanhola, era assegurada pelo ferry Santa Rita de Cássia, inoperacional desde 2021, por assoreamento do rio, sem que os dois países acordem uma solução. Há esperanças de que a recentemente aprovada criação da eurocidade da Foz do Minho, envolvendo os municípios de Caminha, A Guarda e O Rosal, potencie esta obra de desassoreamento. Enquanto isso, o Santa Rita de Cássia, pousado nas areias junto ao atracadouro de Caminha, aguarda por dias melhores.
 

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Eurocidades são aglomerações urbanas transfronteiriças, que visam promover a cooperação em áreas transversais no âmbito da cultura, turismo, comércio, educação, entre outras, sem prejuízo das estruturas política e administrativa de cada município. A eurocidade Foz do Minho será a quarta entre Alto Minho e a Galiza, juntando-se às já existentes entre Valença e Tui, Monção e Salvaterra do Miño e Vila Nova de Cerveira e Tomiño. 
 
Impunha-se, pois, encontrar 'taxista fluvial', coisa alcançada em menos de um minuto. Mal nos aproximámos do cais, fomos abordados por um solícito 'taxista', que apenas nos pediu que o deixássemos terminar o 'almocinho'. 
 
Uma travesssia com algumas peripécias. 
A travessia foi um pouco surreal. Desde a subida para o barco feita com recurso a caixas de refrigerante, disfarçadas de degraus, aos coletes apenas pousados sobre as mochilas, para não termos de as tirar, desequilibrando o barco... até ao momento em que, por escassez de combustível, o depósito foi reabastecido com o barco em andamento com a dúvida de que o que estava no jerrican pudesse ser água (como, alegadamente, já uma vez acontecera)... enfim, foram quinze minutos muito 'animados', sem que nenhum dos ocupantes perdesse a calma. Afinal, todos sabíamos nadar.

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E chegámos a Espanha.
Chegamos a A Pasaxe, Camposancos, situada na encosta sul do Monte Sta. Tegra, e dirigimo-nos para A Guarda, no outro lado do monte. O Caminho mais tradicional contorna o monte pelo interior, mas nós optámos por seguir, primeiro, à beira-rio, e depois, à beira-mar. Este percurso é mais longo, porém mais plano, e pareceu-nos valer a pena.

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O Monte de Sta. Tegra, no sopé do qual se situa A Guarda, tem 341 metros de altitude e é um dos lugares mais conhecidos da Galiza, sendo um magnífico miradouro natural para a espetacular desembocadura do rio Minho, mas também para o mar e para a zona envolvente fronteiriça. É ali que se situa um dos maiores castros galegos, o que faz dele um importante sítio arqueológico, que lhe valeu a classificação como Monumento Histórico Artístico Nacional, em 1931, bem como de Bem de Interesse Cultural. O castro terá sido habitado entre os séculos I a.C. e I d.C. A visita ficará para outra altura. 
 
A paisagem da Guerra da Restauração
Por agora, concentremo-nos nas vistas que se nos vão oferecendo ali em baixo. Para já, um apontamento de História, motivado pela vista para o Forte da Ínsua, ali retratada como a Paisagem da Guerra da Restauração Portuguesa (1640-1668). Depois de termos passado por tantos fortes construídos para nos precavermos contra os espanhóis, eis que nos é explicado o motivo que originou tamanhas precauções. Não é nada que não tenhamos aprendido nos tempos de escola, mas nunca é demais relembrar. O que é que levou a este conflito entre dois povos irmãos? Foi Portugal ter-se rebelado contra o domínio exercido pela monarquia hispânica (dinastia filipina 1580-1640) para recuperar o trono para um rei luso. O resultado foram 28 anos de escaramuças e batalhas em toda a raia, o que levou ao reforço de linhas de defesa em ambas as margens, cujo legado é uma paisagem fortificada única desde a foz do rio até Melgaço. Afinal, sempre havia razões para temermos os nuestros hermanos... 

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Piñeiral Castrexo, um bosque pintado pelos celtas
Antes da praia fluvial do Moiño, chegamos ao Puntal onde, num pinhal muito sui generis, somos 'desafiados' por um original 'jogo' que combina natureza, arte e história. Trata-se da obra Piñeiral Castrexo, do artista autodidata redondelano, mas radicado em A Guarda, Xosé Cabaleiro. À uma primeira vista, trata-se de uns simples desenhos brancos, sem aparente significado, grafitados nos troncos de algumas árvores. Só depois percebemos que, olhando-os sob as perspetivas corretas, os desenhos de vários troncos combinam-se para formar símbolos. No total, são oito os símbolos, fracionados e espalhados por meia centena de pinheiros, cada um deles explicado num painel informativo. 

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Mas que símbolos são estes e qual o objetivo do artista? São símbolos celtas que reproduzem os petrogrifos (gravações feitas em pedras) encontrados em várias pedras do Monte de Sta. Tegra, datados de cerca de 2000 anos antes da ocupação do castro.  
 
O objetivo desta 'obra' é sensibilizar o povo galego para a importância de não esquecer as suas raízes, neste caso, a cultura celta, trazendo para a rua aquilo que geralmente está fechado nos museus. Mas não se pense que a natureza sai beliscada deste exercício, já que, com o passar do tempo, o graffiti vai-se apagando. A memória coletiva, essa sairá, certamente, reforçada.
 
Uma difícil tarefa entre o mar e a terra
O Caminho continua, sempre sobre passadiço, e a paisagem vai-nos mostrando evidências da influência do rio e do mar na vida daquelas gentes desde tempos remotos. São as pesqueiras, recintos semicirculares em pedra usadas como armadilhas para os peixes, são as salineiras... As salinas do Seixal, por exemplo, remontam à primeira metade do século I d. C., tendo sido abandonadas no século IV d. C.. Pensa-se que na costa galega existiria um importante centro de produção de sal que abasteceria as fábricas de salga que se espalhavam ao longo de todo o litoral. 

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Por tudo o que vamos vendo, e nos é explicado nos diferentes painéis informativos, o mar era a grande fonte de sustento das famílias galegas. Algumas delas tinham cetárias (tanques em pedra posicionados no mar, mas acessíveis por terra, expostos à forte ondulação da zona), onde armazenavam lagostas e lavagantes durante todo o ano. Dá para perceber o quão perigoso seria fazer a sua manutenção.  

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E chegamos a A Guarda, município situado na província de Pontevedra. Empoleirada sobre o Atlântico, e com o rio Minho e Sta. Tegra por companhia, a vila é uma das mais tradicionais localidades piscatórias da Galiza. Percebe-se, pela dimensão do seu porto, mesmo na entrada da vila, e pelo número de embarcações atracadas, que a pesca é ali uma atividade pujante. Esta é uma zona particularmente pitoresca, com as típicas casas dos pescadores, estreitas, com vários andares e muito coloridas. Vista a alguma distância, A Guarda parece um presépio! Devido à exposição da sua localização, foi conquistada por vários povos ao longo da história, inclusive por portugueses que, em 1665, no contexto da Guerra da Restauração, a tomaram e mantiveram durante três anos. Afinal, os espanhóis também tinham motivos para temer os portugueses.

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A Festa das Letras Galegas
Sendo dia de semana, estranhámos que todos os estabelecimentos comerciais estivessem encerrados. Esclareceram-nos, então, que era dia feriado na Comunidade Autónoma da Galiza, por se celebrar o Dia das Letras Galegas (17 de maio), por sinal, o seu feriado mais importante. Pessoalmente, acho extraordinário que um povo celebre, de forma tão vibrante, o seu orgulho pela sua língua. A comemoração teve início em 1963, ano do centenário da primeira edição da obra Cantares Gallegos, de Rosalía de Castro, um dos principais nomes da cultura galega e fundadora da literatura galega moderna. Este livro marca a revitalização da língua galega como meio de expressão social e cultural dentro da comunidade. Todos os anos há um homenageado diferente, escolhido entre autores já falecidos que se notabilizaram pelo uso literário e defesa do galego. Este ano, a homenagem coube a Luísa Villalta Gómez, escritora, tradutora, filóloga e violinista galega, que se notabilizou em áreas como poesia, teatro, ficção e ensaio.

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A grande Festa da Lagosta
A Guarda é famosa pelo seu marisco. E num lugar onde o marisco é o protagonista, a lagosta é a rainha da festa. Ora, no que toca a festas, os espanhóis não deixam os seus créditos em mãos alheias e por isso, todos os anos, em julho, durante três dias, há comida e diversão com fartura para todos em homenagem a este magnífico crustáceo tão típica na zona. Para começar, no porto, é servido um almoço que inclui meia lagosta, vinho de Rosal e roscón de yema para sobremesa. Abrilhantado por bandas e charangas locais, pois então. Mas não é só de lagosta que se faz a festa. Ao longo do evento, são cerca de vinte os pratos de marisco que os guardenses podem degustar, o que faz dele um dos mais importantes eventos gastronómicos da Galiza. 

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Um Ferrán Adriá avant la lettre
Converter em obras de arte aquilo que o mar ou a terra nos dá, é um dom que não está ao alcance de qualquer um. E, se é verdade que as estrelas Michellin só surgiram em 1926, também não é mentira que, já antes, havia cozinheiros de primeira. É o caso do galego Manuel Puga e Parga, mais conhecido por 'Picadillo' que, em 1905, na sua obra La Cocina Práctica, se posicionava à frente do seu tempo, apostando numa cozinha revolucionária e assente em misturas pouco comuns.
 
E por falar em comida... não será necessário dizer que, chegada a hora do jantar, a grande dificuldade foi escolher um dos muitos restaurantes disponíveis naquela pitoresca marginal. Em boa verdade, não há ementa que não esteja repleta de sugestões de peixe e, sobretudo, de marisco. Apreciadores que somos dos petiscos galegos, não resistimos às belas vieiras nem aos estaladiços chipirones fritos. Com pimentos de Padrón, evidentemente! 

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