05.12.24
Etapa 3 / 15 - De Póvoa de Varzim a Fão | 25 Km
Emília Matoso Sousa
14 de maio 2024
Mais do que destas casas e destas ruas, sou das dunas de Fão.", Eugénio de Andrade, in Com o Ernesto nas Dunas de Fão
Hoje, vamos 'inaugurar' um novo distrito, o de Braga, já em território minhoto, com pernoita em Fão, no concelho de Esposende.
Saímos de Póvoa de Varzim e dirigimo-nos à marginal sempre com o mar por companhia, aqui, sob a forma de extensas e ininterruptas praias. Amanheceu sem chuva, mas com um céu carregado de nuvens a conferir-lhe um dramatismo bastante fotogénico. Passamos em A Ver-O-Mar, outrora um bairro piscatório e agrícola, hoje, uma zona urbana da cidade poveira e a mais densa e populosa freguesia do concelho, como o confirma o contínuo de prédios modernos de vários andares.
Mar, muito mar, praias e dunas. É este o cenário que nos vai ladeando. Caminhamos novamente sobre passadiço e, mais uma vez, apreciamos a diversidade da vegetação dunar. Cada pedaço daquela paisagem parece uma tela. Na Aguçadoura, quase na praia e junto ao passadiço, um velho moinho de vento, a pedir para ser recuperado, faz as delícias dos peregrinos, tal a sua fotogenia. É também na Aguçadoura que passamos por um albergue de peregrinos.
Segue-se o Campo de Golf da Estela, cuja vista deslumbrante para o Atlântico dificilmente será superada. Imagino que deverá ser um privilégio praticar desporto neste cenário. Por falar em privilégio, o campo de golfe tomou para si a frente de mar, obrigando o Caminho a contorná-lo pelo interior.
Passamos, assim, por campos agrícolas, prova de que a pesca não é a única atividade por estas bandas. Aqui e ali, pequenas homenagens deixadas pelos peregrinos lembram-nos de que aquela é uma rota de peregrinação. Em comparação com o Caminho Central Português, este é muito menos percorrido, pelo menos nesta altura do ano (maio). E os poucos peregrinos com quem nos cruzamos não são portugueses. São alemães, como atrás referi, mas também estadunidenses, canadianos, britânicos e alguns orientais. Percebe-se, pelo ritmo que imprimem à caminhada, que são praticantes habituais desta atividade. O que é espantoso é que muitas destas pessoas, algumas de idades bastante avançadas, atravessam meio mundo apenas para fazer trilhos e caminhadas. Isto foi-nos dito por aqueles com quem fomos falando, mas também percebido pelas etiquetas coladas nas suas mochilas.
Estamos a chegar à Apúlia, estância balnear muito procurada pelos habitantes de cidades circundantes, e o destino ideal para praticantes de desportos náuticos que dependem do vento (que ali há com fartura), como o surf ou o kitesurf. Apúlia sempre foi terra de mar. Pudera! Com o Atlântico ali à disposição, outra coisa não seria de esperar. A par da pesca e da extração de sal, a exploração do sargaço era, ali, uma atividade muito relevante. A estátua ao sargaceiro, em frente à igreja de Nossa Senhora da Guia (esta, tal como a de Caxinas, em forma de barco), ilustra bem essa realidade. Sargaço que era usado como fertilizante, sendo a agricultura outra das práticas da zona.
Cada terra com seu uso.
Quando nos encontramos numa zona quase feita de mar e dunas, não nos ocorre de imediato que a agricultura possa ter grande expressão. Ou seja, tendemos a menosprezar a capacidade que o homem tem de medir forças com o meio, dele retirando quase tudo o que precisa para garantir a sua subsistência. E se o meio lhe dá areia, então é aí que terá de cultivar. Por isso, em algumas freguesias dos concelhos de Esposende, a que a Apúlia pertence, mas também da Póvoa, desenvolveu-se uma 'técnica' de cultivo que é única, em Portugal e no mundo. São os tradicionais campos em forma de masseira (espécie de tabuleiros usados antigamente para amassar o pão), que mais não são do que covas largas e retangulares escavadas nos solos arenosos das dunas, regados com água doce e fertilizados com o sargaço. Este formato garantia, também, que as culturas fossem poupadas à famosa e inclemente nortada.
Estamos, agora, em pleno Parque Natural do Litoral Norte, que percorre toda a costa atlântica desde a Apúlia até à foz do rio Neiva, no concelho de Esposende, ao longo de 18 quilómetros, quase sempre em passadiço. A classificação de toda esta orla costeira como Área Protegida mais não pretende do que resguardá-la de agressões, como a construção desordenada, ou da extração descontrolada das areias dunares, tão prejudiciais aos ecossistemas tantas vezes raros e fundamentais para o equilíbrio ambiental. Além disso, são dezoito quilómetros de uma paisagem natural belíssima que não apetece deixar para trás. Mas a pedra de toque da Apúlia é, sem dúvida, o conjunto dos seus cinco pitorescos moinhos de vento que, perfilados sobre o cordão dunar, sobranceiros ao mar, fazem as delícias de peregrinos e caminheiros. Hoje, desativados e usados como habitações de veraneio, são meros testemunhos de uma indústria de moagem de outros tempos que usava a força do muito vento vindo daquele imenso oceano.
Recuperadas e transformadas em habitações, supostamente de férias, estão também as arrecadações de pedra de Marinhas, logo depois da Apúlia. Outrora, usadas para guardar apetrechos da pesca e da agricultura, a sua localização privilegiada é bastante convidativa.
A par do espetacular cordão de praias e dunas, esta é uma zona particularmente rica no que à vegetaçação diz respeito, com algumas especificidades decorrentes dos solos húmidos resultantes das depressões dunares ali existentes. Um verdadeiro "oásis de biodiversidade" proporcionado pelos matagais e pinhais que ali se estabeleceram.
Uma placa com a inscrição Pacha transporta-nos, momentaneamente, para a louca década de 1990, em que a megadiscoteca Pacha estava na 'berra'. Situada em pleno pinhal de Ofir, e com o mar ali mesmo à mão, era local de romaria para quem, de norte a sul, mas especialmente, no Norte, procurava diversão noturna. Atualmente, está encerrada e abandonada à espera de melhores dias.
À medida que avançamos, vislumbrarmos, ao longe, um elemento perturbador daquela paisagem idílica. São as torres da praia de Ofir, construídas no início da década de 1970, quando as questões ambientais ainda eram matéria de somenos. Ainda assim, esta construção nunca foi pacífica sendo, até hoje, alvo de grande controvérsia. E não é para menos. É que aquelas torres, que de estético nada têm, estão implementadas em cima das dunas e perigosamente expostas à erosão costeira.
Fizemos um pequeno desvio para as ver mais de perto. E, já que estávamos ali, e o 'passeio' estava a saber bem, decidimos dar um pulinho ao "santuário do Cávado", um recurso de grande relevância ecológica e um espaço muito agradável para caminhar. Lodaçais, sapais e bancos de areia, habitats perfeitos para espécies botânicas e faunísticas diversas, observáveis nos vários equipamentos disponibilizados para os praticantes de bird watching é o que ali se pode encontrar.
E foi pelos passadiços da margem do Cávado que chegámos a Fão, onde íamos passar a noite. Terra, também, de vocação marítima, destacando-se as atividades de extração de sal e pesca, de mar e de rio, e com pergaminhos nas áreas de construção e reparação naval, pelo menos até ao primeiro quartel do século XX, altura em que os seus estaleiros entraram em declínio.
À chegada, passamos por um antigo bar com um exterior muito castiço. Ficámos a saber que se trata do Bar do Fôjo, quase um ícone de Fão, fundado em 1974 pela próprias mãos de por um pescador da região conhecido por várias alcunhas, como “pirata”, “lambreta”, “pescador”, “capitão” ou Sérgio do Fôjo. Após a sua morte, em 2019, o bar encerrou, tendo os familiares recebido, recentemente, ordem de demolição do mesmo, com a justificação de que este ocupava, indevida e abusivamente, uma parcela do domínio público hídrico. A notícia não foi bem recebida e, após algumas demarches, a demolição foi suspensa por ordem do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga. Até ver... afinal a antiguidade ainda é um posto!
Um dos aspetos a que damos particular importância nestes caminhos prende-se com a alimentação. Sempre que possível, fazemos questão de experimentar a riqueza e variedade gastronómicas típicas das regiões que vamos atravessando e raramente passamos ao lado de uma determinada 'especialidade'. Hoje, contrariamente aos nossos hábitos, optámos por privilegiar o almoço em vez do jantar. Em boa verdade, não foi bem uma opção, mas antes uma manifestação de fraqueza e incapacidade de resistir à tentação do excelente peixe dos restaurantes da Apúlia. E em boa hora o fizemos, pois fomos surpreendidos por uma raia grelhada de comer e chorar por mais.
Reservámos, no entanto, o maior pecado para o final do dia: as clarinhas de Fão, da pastelaria Fãozense. Um doce conventual português, feito de massa fina e estaladiça, em forma de meia-lua, recheado com fios de doce de gila envolvidos em gemas de ovo e polvilhado com açúcar em pó. Não é verdade que a gastronomia também é cultura? A única coisa que me ocorre dizer sobre tal iguaria é que ir a Fão e não comer uma clarinha é mais grave do que ir a Roma e não ver o Papa!