12 de maio 2024
Quem vem e atravessa o rio, junto à Serra do Pilar, vê um velho casario que se estende até ao mar.", Porto Sentido, Carlos Tê
É na Sé do Porto que o Caminho começa. O primeiro passo é carimbar a Credencial do Peregrino. Não nos esqueçamos de que, para obter a Compostela, temos de a carimbar duas vezes por dia. Apesar de ser muito cedo, como convém, há alguma movimentação de peregrinos. A manhã está cinzenta e a humidade chega a confundir-se com chuviscos miudinhos. Não faz frio nem vento. Não fora aquela 'espécie de chuva' e estariam reunidas as condições ideais para caminhar. As vozes que nos rodeiam são quase todas estrangeiras. Curiosamente, quase todos aqueles peregrinos são alemães, por sinal não muito comunicativos e com a postura rígida e tensa de quem se prepara para uma competição. Confesso que esta primeira impressão não foi a melhor, sobretudo quando comparada com o ambiente de simpatia e de boa disposição do início do primeiro Caminho que fizeramos, dois anos antes, a partir de Valença do Minho, este, sim, muito percorrido por portugueses.
Descemos até à zona da Ribeira pelas "ruelas e calçadas" e apreciando o "velho casario" que inspiraram o Porto Sentido imortalizado pela voz de Rui Veloso. Está bonito o Porto, àquela hora tranquila de domingo, envolto por uma claridade fosca e despido de pessoas e de carros. Não tardará muito a ser tomado pelo movimento buliçoso tão típico daquela zona da cidade. Por agora, vamos olhando e desfrutando daquelas imagens únicas. No trajeto da Sé à Ribeira, contornamos a Igreja do Convento dos Grilos, ou de São Lourenço, nome oficial, a qual encerra uma curiosidade histórica relacionada com o 'azar dos Távoras'. É que a sua fachada ostenta o único exemplar físico relacionado com esta família quase exterminada pelo Marquês de Pombal, no âmbito do Processo dos Távoras. A sanha vingativa do Marquês foi tal que determinou, ainda, que se proibisse aquele apelido em Portugal e que os seus brasões fossem picados e destruídos. Escapou o brasão aqui referido, por ter sido tapado com reboco, tendo sido recuperado para a fachada da igreja, em homenagem a quem maioritariamente financiou a sua construção, Frei Luís Álvares de Távora, bailio de Leça. Ainda na descida, merece destaque o minúsculo Largo da Pena Ventosa, por adotar a toponímia do morro em que se enconta e que foi o núcleo fundacional da cidade do Porto. As idiossincrasias desta zona da cidade e das suas gentes encontram-se muito bem espelhadas no romance de Rui Couceiro, Morro da Pena Ventosa, editado em junho de 2024.
Seguimos pela marginal ribeirinha, acompanhando o Douro em direção à sua foz, passando por Massarelos e pelo majestoso edifício da Alfândega, e deixamo-nos envolver pela calma das suas águas, livres, àquela hora, do vaivém dos barcos turísticos. Este trajeto, talvez por ser percorrido a pé e sem pressas, permite-nos 'degustar' cada pormenor do caminho. Na Cantareira, por exemplo, o pequeno farol de São Miguel-O-Anjo, também conhecido por Torre, é, aparentemente, uma construção pouco relevante. No entanto, é o primeiro edifício renascentista datado em Portugal (1527) e considerado um dos mais antigos da Europa. Na altura, no entanto, não passava de uma torre de pedra, no alto da qual eram acendidas fogueiras para aviso à navegação.
Mais à frente, deixadas para trás as águas do Douro e abraçadas as do Atlântico, após o Forte de S. João Baptista, fortaleza costeira do século XVI, deixamo-nos seduzir pelo charme da Foz do Douro e prestamos a devida atenção ao seu maior trunfo, e um dos ex libris da Invicta, a Pérgola da Foz, construída em 1930, no âmbito de um projeto de melhoramento e embelezamento da Avenida do Brasil. Que varanda magnífica sobre o Atlântico! Logo de seguida, após o molhe, na Avenida de Montevideu, é o Homem do Leme que se impõe. Está ali desde 1938 e até deu o seu nome à praia, em frente à qual se encontra. Trata-se, naturalmente, de uma homenagem aos pescadores e é da autoria do escultor Américo Gomes. Já agora, o original, em gesso, foi feito em 1934 para a Exposição Colonial Portuguesa e foi doado ao Museu Marítimo de Ílhavo. Avançamos até ao Forte de São Francisco Xavier, mais conhecido por Castelo do Queijo. E não, não tem nada que ver com queijos, mas antes com o facto de ter sido erigido sobre uma rocha que, pelo seu formato, era designada como Pedra do Queijo. Terá sido construído em 1661, segundo o desenho do engenheiro militar francês Miguel de l'Ècole, e faz parte de um conjunto de fortalezas de defesa marítima. Há muitas ao longo de toda a costa portuguesa, o que é compreensível, pois com tanta exposição ao mar e com todos os perigos que, na época, por ali podiam chegar, todos os cuidados eram poucos.
O Porto começa a ficar para trás, não sem que tenhamos deixado de espreitar o amplo e magnífico espaço que é o Parque da Cidade, para dar lugar ao concelho de Matosinhos. Sabemos que estamos a chegar a Matosinhos quando avistamos uma enorme anémona pairando sobre uma rotunda. She Changes, mas mais conhecida como Anémona, assim se chama esse enorme elemento escultórico, da autoria da estadunidense Janet Echelman. Nada menos do que uma gigantesca rede vermelha e branca, suportada por três grandes postes metálicos, e suspensa num anel com 42 metros de diâmetro. E sim, 'ela muda', ou melhor, vai-se movendo ao sabor do vento. Mais do que um tributo à cidade, de forte tradição piscatória, esta rede de grandes dimensões é, desde 2004, a imagem de marca de Matosinhos. Infelizmente, tem sido alvo de alguns atos de vandalismo, pelo que está prestes a ser requalificada.
Ao longe, um arrojado (e enrolado) edifício branco destaca-se no horizonte. É o moderno Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões, inaugurado em 2015 e desenhado pelo arquiteto Luís Pedro Silva. Ora, as grandes obras têm sempre grandes números associados e esta não é exceção. Se a sua estrutura em espiral não for suficiente para nos encher o olho, talvez não fiquemos indiferentes aos 18 500 metros cúbicos de betão utilizados na sua construção, ou ao milhão de azulejos que a Vista Alegre fabricou para a revestir. É obra!
... são (os titans) como tentáculos que avançam sobre o mar (…) unhas de uma tenaz de granito para comprimirem entre si um retalho do Oceano, amansando-o, submetendo-o, domesticando-o, com a vontade invencível do génio humano.", Oliveira Martins, 1885 (Historiador)
E já que estamos em maré de coisas grandes, até porque não há duas sem três, que dizer do colossal guindaste que recorta o horizonte, mesmo ali junto ao Porto de Leixões já na foz do rio Leça? Tão colossal que dá pelo nome de Titan. Um dos guindastes utilizados, entre 1885 e 1895, durante a edificação dos molhes para a construção do Porto de Leixões, na época, o maior porto artificial do país, sobre um conjunto de rochedos (ou leixões) situados nas águas do mar.
Aquele porto terá sido a maior obra de engenharia realizada em Portugal no século XIX. Basta pensar que a construção daqueles paredões obrigou a que ali se depositassem inúmeros blocos graníticos, alguns a rondar as 50 toneladas! Uma luta titânica entre homem e mar, um mar pedregoso, furioso e feroz que tudo fez para não se deixar 'domar'. Domaram-no os 'titans', colossos de 420 toneladas de ferro, alimentadas a vapor, com 69 metros de comprimento e capacidade para se erguerem a 17 de altura. Memória de uma época industrial áurea, e com tanta história para contar, o Titan de Leixóes que, em 2012, ficou parcialmente destruído devido a uma explosão, foi recuperado e está aberto a visitas. Quem sabe, um dia...
Um impressionante conjunto escultórico, no areal da praia, composto por cinco figuras em pose de grande aflição, chama a nossa atenção. Trata-se de uma homenagem aos pescadores de Matosinhos, vítimas da maior tragédia marítima ocorrida naquela costa, corria o mês de dezembro de 1947. Os números são impressionantes e deixaram aquela comunidade em estado de choque: quatro traineiras naufragados, 152 pescadores mortos, 6 sobreviventes, 71 viúvas e 152 órfãos. A obra chama-se Tragédia do Mar, foi esculpida pelo artista José João de Brito, baseada numa tela do pintor matosinhense Mestre Augusto Gomes, e representa o desespero das viúvas e dos órfãos da tragédia.
Mais à frente, outra evidência de fé, devoção e religiosidade, tão enraizadas nesta zona do país, e grande referência para a cidade e para a comunidade piscatória, o Zimbório do Senhor do Padrão, também conhecido como Senhor do Espinheiro ou Senhor da Areia. Foi ali que, segundo a lenda, apareceu a imagem do Bom Jesus de Bouças, mais tarde conhecida por Senhor de Matosinhos. Até ao início do século XX, o zimbório estava isolado em pleno areal da praia do Espinheiro, destacando-se a quilómetros de distância. Não é hoje o caso. Continua, no entanto, a ser local de romaria no dia 1 de novembro, mais uma vez, em homenagem aos pescadores mortos no mar. Junto ao monumento, uma pequena construção foi construída no local onde, miraculosamente, em 1733, apareceu uma fonte de água doce.
Chegamos a Leça da Palmeira, atravessando a Ponte Móvel de Leixões, também chamada de Ponte Móvel de Leça, que levanta para dar passagem a navios de maior porte. Caminhamos, agora, a norte do Forte de Leça, o de Nossa Senhora das Neves, pela Avenida Marginal, também ela uma obra de arte, ou não tivesse requalificada e 'desenhada' pelo lápis de um dos mais conceituados e premiados arquitetos portugueses dos séculos XX e XXI, Álvaro Siza Vieira, também ele um matosinhense de gema. É aliás, também, nesta avenida que se podem apreciar outras duas obras emblemáticas da sua autoria, as Piscina das Marés e, mais à frente, a Casa de Chá da Boa Nova.
Comecemos pela Avenida Marginal de Leça, datada de 2005. Ampla, clean, sóbria, elegante, sem elementos disruptivos. Afinal, era esse o resultado pretendido pelo arquiteto. Valorizar os percursos pedonais e rodoviários, sem interferir com as caraterísticas naturais e paisagísticas, integrando o mais discretamente possível a infra-estrutura petrolífera que liga o porto de Leixões à refinaria ali existente. Ambicioso, convenhamos. Esteticamente, o objetivo foi conseguido. Já funcionalmente..., como qualquer obra de autor que se preze, não faltaram as proverbiais polémicas. Que não tem bancos para se descansar e apreciar o mar, que não tem sombras, que não tem parques infantis, que não tem bebedouros para quem ali vai correr ou andar de bicicleta... cada um terá o seu descontentamento que, como é sabido, os há para todos os gostos. Acontece que a obra tem direitos de autor e o autor criou-a assim. Mas que é bonita, lá isso é. E respira-se Siza Vieira por todo o lado!
A Piscina de Marés (1966), construída sobre as rochas da praia, é outra das suas obras aqui presentes. Outra em que o meio é absolutamente respeitado, como é apanágio do arquiteto, e em que beleza natural não é beliscada pela intervenção humana. É Monumento Nacional desde 2011 e o único edifício português incluído no livro Cem Edifícios do Século XX, publicação de referência da arquitetura mundial do século XX, que reúne vários vencedores do Prémio Pritzker, entre eles Siza Vieira.
Mais à frente, voltaremos a encontrar-nos com o arquiteto, mas antes, temos encontro marcado com o artista plástico Pedro Cabrita Reis, ou melhor, com a sua obra A Linha do Mar, inaugurada em 2019 e posicionada junto ao farol da Boa Nova. Mais uma fonte de grande polémica, pois então. Cinco conjuntos de vigas de ferro, pintadas originalmente em branco, estendidas ao longo de 40 metros. Cada conjunto é constituído por vigas de diferentes tamanhos posicionadas verticalmente sobre uma base horizontal, pretendendo representar "uma nova perspectiva sobre a linha de horizonte do mar" e "sugerindo diversas interpretações através da forma e geometria e da sua sobreposição com o oceano". Isto nas palavras do autor, que a criou para ser um lugar onde as pessoas se possam sentar, conviver e apreciar a proximidade com o mar. Parece que a população de Leça, de um modo geral, não foi sensível à estética da obra, e grande parte das interpretações não foram ao encontro da do autor. A escultura tem sido alvo de vandalizações e restaurações sucessivas. Vá lá 'a gente' entender os artistas.
Estamos em frente ao Farol da Boa Nova que, com os seus 46 metros de altura e 225 degraus, é o segundo mais alto de Portugal (o mais alto é o da Barra de Aveiro). Desde 1926, está naquele lugar a tornar segura uma zona costeira considerada a mais perigosa do país. O nome por que é designada diz tudo: Costa Negra.
Ainda mais à frente, outra obra do grande mestre da arquitetura portuguesa. A Casa de Chá da Boa Nova, ex libris da cidade, implantada sobre os rochedos sobranceiros àquele mar furioso, a apenas dois metros da água. Monumento Nacional desde 2011, o edifício nasceu da criatividade de um jovem Siza Vieira recém-formado, em 1956, e nos primórdios da sua longa carreira, quando o projeto lhe foi entregue por Fernando Távora, arquiteto para quem trabalhava na altura. Nada se consegue sem muito esforço e trabalho, é certo, mas há patamares a que só alguns conseguem aceder. É que fazer uma primeira obra que atravessa os tempos sem perder contemporaneidade não é para todos!
Os artistas das letras também não são esquecidos na marginal de Leça. Junto ao farol, a escultura António Nobre e as Musas, da autoria de Salvador Barata Feyo, presta homenagem a este importante poeta português, nascido na Foz do Douro, mas que passava o verão em Leça da Palmeira. A evocar a sua memória e a sua saudade desses tempos de infância e juventude está, desde a década de 1940, uma placa de mármore afixada numa rocha, no mar, junto à capela da Boa Nova, onde constam os primeiros quatro versos do soneto Lá na Praia da Boa Nova.
Na praia lá da Boa Nova, um dia, / Edifiquei (foi esse o grande mal) / Alto Castelo, o que é a fantasia, / Todo de lápis-lazúli e coral!", António Nobre
Bom Caminho! Good Journey! Guten Weg! Buen Camiño! Bon Chemin! Buon Cammino!
Deixamos para trás os extensos areais de Leça e de Matosinhos e entramos em zona de passadiço, em cujo início uma placa nos deseja "Bom Caminho!". Em várias línguas, como várias são as nacionalidades dos peregrinos. Estranhamente, continuamos a não encontrar portugueses. Nem parece que estamos em Portugal. O alemão continua a prevalecer. A paisagem é agora bastante diferente, marcada pelos rochedos e por um mar mais agressivo. É o início da Costa Negra, palco de tantas desgraças... É, no entanto, uma costa famosa pela excelente qualidade do seu peixe e do seu marisco. Por esse motivo, ali se estabeleceram comunidades de pesca tradicional, por onde iremos passar no nosso Caminho. Notas dominantes por estas paragens são as crenças e devoções populares, visíveis na proliferação de capelas e igrejas, mas também nas inúmeras homenagens a todos os que, ao longo dos anos, perderam a vida a tentar ganhá-la naquele mar que tem tanto de belo como de horrível. O caráter daquelas gentes é indelevelmente moldado pelo mar e isso sente-se quando atravessamos aquelas localidades.
Passamos pelo local onde, em 16 de janeiro de 1913, nos rochedos denominados 'lanhos', encalhou o grande paquete inglês Veronese. Proveniente de Liverpool e com destino ao Brasil, Venezuela e Argentina, não conseguiu fazer frente ao violento temporal, tendo morrido 31 dos seus 221 passageiros. Como curiosidade, as operações de salvamento, extremamente dificultadas pela violência do mar, foram filmadas pela Invicta Filmes e deram origem a um dos maiores êxitos internacionais do cinema mudo português. E esta?
Ao passar pelo 'Aterro' (incluindo a Praia do Aterro), ficamos a conhecer a origem de tal nome. Situado a norte da Boa Nova, foi ali que se depôs, entre 1932 e 1940, o imenso volume de terras proveniente das dragagens e escavações da foz e estuário do rio Leça, após a construção da Doca nº 1 do Porto de Leixões. Ao regularizar a acidentada marginal entre a Boa Nova e o Cabo do Mundo (logo a seguir ao Aterro e também com uma praia lindíssima) o aterro permitiu construir uma grande marginal que prolongou para norte a zona balnear de Leça da Palmeira.
Segue-se um contínuo de praias incríveis, ladeadas por uma magnífica paisagem dunar sustida pelo recurso a estruturas de madeira e protegidas pela existência de passadiços. O resultado tem sido o ressurgimento de vegetação e a consequente preservação das dunas. Passamos pela praia do Paraíso, pela da Memória, com o seu obelisco... Aqui, fazemos nova paragem. É que o Obelisco da Memória evoca o local onde, em 8 de julho de 1832, desembarcaram D. Pedro IV e 7500 homens do exército liberal, marcando o final do regime absolutista em Portugal. Que memória boa! Curiosamente, este desembarque ficou conhecido como o 'desembarque do Mindelo', localidade pertencente a Vila do Conde. Porquê? Consta que as condições de mar na praia do Mindelo não permitiram que a operação se concretizasse e tivesse de ser deslocada para a ´hoje denominada praia da Memória.
A praia da Memória é um dos raros locais entre Leixões e Vila do Conde com condições excelentes para fundear navios e para desembarques. Consta, até, que terá sido usada por piratas no decurso das suas atividades de pilhagem. Talvez por isso tivesse sido, outrora, conhecida como Praia dos Ladrões. Por isso ou por outra atividade pouco nobre que se registava na nossa costa: a montagem de falsos faróis para atrair embarcações, fazendo-as naufragar e pilhando-as... enfim, memórias menos boas.
Foquemo-nos nas coisas boas. Por exemplo, a extensão de passadiços que, de Leça da Palmeira para norte, contornam a nossa orla costeira fornecendo àquelas populações um sem número de percursos pedestres e painéis informativos sobre as espécies de flora e fauna presentes naquelas dunas. Dunas, por sinal, em franca recuperação da sua biodiversidade caraterística, graças, sobretudo, àqueles passadiços.
E eis que chegamos ao local onde, no fundo do mar, jaz um submarino alemão da II Guerra Mundial, o U1277, depois de a sua tripulação ter simulado uma avaria, afundando-o, no dia 3 de junho de 1945, sensivelmente um mês após a capitulação da Alemanha. Tudo para não cairem na mão dos Aliados e para não terem de regressar ao seu porto de origem, então tomado pelos soviéticos. Os tripulantes renderam-se no posto da Polícia Marítima de Angeiras e posteriormente foram entregues aos ingleses. Quem diria que os nossos mares foram palco de tanta ação quase cinematográfica?
Na chegada a Angeiras Sul, localidade piscatória na freguesia de Lavra, deparamo-nos com uma das casas de mar de Angeiras, agora transformada numa espécie de museu, testemunho das atividades agromarítimas que, até meados do século XX, marcaram a identidadede de Lavra. Pertenciam às grandes casas agrícolas e era onde os 'moços do mar' guardavam os barcos e os utensílios para a faina e para a apanha do sargaço e do 'pilado' (caranguejo pequeno), usados como fertilizante dos campos. Na verdade, as atividades de pesca e de agricultura complementavam-se, devido ao seu caráter sazonal. A apanha do sargaço foi, durante séculos, uma atividade muito relevante e popular na região, até porque, por decisão real, era um produto livre de qualquer imposto. Atualmente, continua a ser praticada, destinando-se às indústrias farmacêutica e de cosmética.
E não é que os romanos também por aqui andaram a 'espalhar magia', que é como quem diz, a deixar marcas do seu conhecimento? Pois é, dispersos ao longo de 600 metros pela Praia de Angeiras, há seis núcleos de tanques para a salga de peixe e produção de outros tipos de conserva, como o garum. Trinta e dois exemplares escavados nos afloramentos rochosos durante os séculos III-IV d. C., de formato retangular e de profundidades diversas. Também ali existem pequenas salinas para a extração do sal, necessário para a salmoura dos tanques.
Angeiras, localidade piscatória na freguesia de Lavra, é o nosso primeiro lugar de pernoita. Ainda na areia da praia, percebe-se que a pesca continua a ser o sustento de muitas daquelas pessoas. Penetramos no interessante e pitoresco núcleo onde se armazenam as ferramentas daquele ofício, como barcos, redes e outros artefactos. Um contínuo de casas do mar dá um colorido pictórico ao ambiente. Cruzamo-nos com alguns pescadores que reparam e tecem as suas redes. Estamos em território de gentes do mar e é com o maior respeito e consideração que os observamos, tentando não os importunar. A vida deles não é, decerto, tão colorida quanto as imagens que ali observamos, e cada saída para o mar pode não ter volta.
Estava completa a jornada. Tranquila, suave e muito rica em apontamentos sobre momentos da nossa história, desde o tempo dos romanos, com desembarques de reis, naufrágios e afundamentos de submarinos da II Guerra; desde a época das obras titânicas até às manifestações artísticas mais contemporâneas. Tudo isto, embalados pelo som das ondas do mar e rodeados por paisagens de fazer perder o fôlego. Afinal, o Caminho também se faz de aprendizagens!
Bela jornada! Mas porque amanhã há mais Caminho, importa retemperar forças. E que melhor do que um bom jantar, em que um belo cabrito no forno fez as honras da mesa!