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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

21.11.24

De volta ao Caminho


Emília Matoso Sousa
Quando o viajante se sentou na areia e disse 'Não há mais que ver' sabia que não era assim.", José Saramago in Viagem a Portugal
 

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Quando, em 2022, concretizando um sonho de muitos anos, com o meu marido e companheiro de andanças, percorri um dos Caminhos de Santiago, estava longe de pensar que aquele seria apenas o primeiro. E se, nessa altura, os 120 quilómetros que teria de percorrer a pé me pareciam um objetivo quase inatingível, a verdade é que no final me sentia preparada para percorrer 120 e muito mais. O Caminho tem tanto de físico como de mental e ultrapassar os obstáculos do terreno pode ser tão difícil como conseguir a força anímica necessária para combater a inércia que, por vezes, toma conta de nós, quase nos impedindo de avançar. No Caminho nem tudo é fácil, nem tudo é bonito, nem tudo é bom. Como na vida. E esta é uma frase mais do que batida, daquelas de que não gosto, mas que mais bem descreve uma empreitada desta natureza. Cada dia é uma incógnita e, de manhã, quando acordamos, apenas sabemos que temos de calcorrear cerca de 20 quilómetros até ao próximo local de pernoita. Faça chuva ou faça sol. Mas por mais duro que o caminho possa ser, e por mais que nos perguntemos o que é que fazemos 'ali', há sempre uma força interior que nos impele, que nos empurra e nos dá o ânimo necessário para continuar. E esse é, para mim, o grande ensinamento do Caminho. Superação, superação e superação. Mas também paciência, resiliência, disciplina, foco, e fé nas nossas capacidades. Não menos importante, e este é um exercício nem sempre fácil, é a disponibilidade para nos libertar de tudo o que é supérfluo e a 'coragem' para, durante 8, 10, 15 ou mais dias, conseguir compactar dentro de uma mochila (quase) tudo aquilo de que precisamos para viver. Posto isto, cada etapa concluída é um sucesso e cada vitória tem um sabor especial. A sensação de missão cumprida é tão avassaladora e reconfortante, e a experiência é de tal forma enriquecedora e transformadora que, em 2022, ainda antes do final do Caminho, já sabia que haveria de voltar. E voltei. Em maio de 2024. Convicta de que este é, de facto, um Caminho que não acaba nunca!
 
Desta vez, e porque a primeira experiência - Um dia, hei de fazer o Caminho! -  soube a pouco, decidimos aumentar a quilometragem, partindo da Sé do Porto. Para variar um pouco o tipo de contexto, optámos pelo Caminho Português da Costa, complementando-o, já na Galiza, com a Variante Espiritual, assim evitando a repetição de etapas. No total, caminhámos cerca de 330 quilómetros, distribuídos por 15 etapas, entre 12 e 27 de maio, tendo feito uma paragem de um dia em Vigo. Tal como em 2022, chegámos ao fim sem maleitas e prontos para o próximo. Não sabemos quando, nem qual, mas queremos muito fazer outro Caminho.
 
Deixo uma nota sobre o percurso que fizemos a partir da Sé. Em boa verdade, o Caminho da Costa original só chegava à beira-mar uns bons quilómetros a norte do Porto. Acontece que, com o passar do tempo, as localidades vão-se alterando e interferindo com estes trajetos, tornando-os pouco agradáveis e até pouco seguros. É o caso da zona industrial da Maia que, atualmente, muitos peregrinos evitam. Foi o que fizemos, optando por seguir sempre pelo litoral.
 
Sobre o Caminho da Costa o mínimo que posso dizer é que superou, em muito, as nossas expetativas. Desde logo, porque segue quase ininterruptamente junto ao litoral, oferecendo-nos o imenso mar como pano de fundo (pensavamos que havia mais desvios para o interior). "Tanto mar", como escreveu Chico Buarque, e percebe-se porquê. São quilómetros e quilómetros e quilómetros de costa de uma beleza que não cabe dentro de descrição alguma. Surpreendentemente, entre o Porto e Caminha, com exceção da etapa entre Fão e Viana do Castelo, todo o caminho é feito sobre passadiços ou passeios marítimos, logo, plano, suave e com um grau de dificuldade nulo quando comparado com o 'sobe e desce' do Central Português, que segue pelo interior. 
 
É, no entanto, um caminho potencialmente mais exposto ao Sol e à intempérie. Os dois melhores períodos para o fazer, e isto é válido para os outros caminhos que atravessam Portugal e Espanha, são a primavera e o outono, para evitar condições climatéricas mais extremas. Devemos, no entanto, preparar-nos para a chuva, algo bastante usual, especialmente na Galiza. Escolhemos o mês de maio, pois em junho as probabilidades de fazer calor são já muitas e, bem o sabemos, o calor é o pior inimigo dos caminheiros. Apesar de nos ter contemplado com vários dias de chuva, o São Pedro, ainda assim, quis ser nosso amigo e poupou-nos às inclementes nortadas, tão frequentes por aquelas paragens. 'Apesar dos pesares', antes uma chuvinha do que uma ventania a impedir-nos de caminhar. A melhor atitude perante uma adversidade é relativizá-la, e este é outro dos ensinamentos do Caminho.  Nas próximas semanas irei publicar as 15 etapas de mais esta aventura.

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