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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

27.11.23

PR1 NLS Percurso dos Moinhos do Castelo


Emília Matoso Sousa
5 de abril 2022
 
9 Km | Circular | 330 m desnível acumulado | Fácil/Moderado
Localização |  Senhorim, freguesia do município de Nelas, distrito de Viseu
 
Situa-se no município de Nelas esta freguesia beirã que, entre 1140 e 1855, foi vila e sede de concelho. O percurso de hoje leva-nos a explorar as margens dos rios Castelo e Videira que por ali correm. Fica, desde já, deslindado que o nome do trilho não se deve a um castelo, que ali não existe, mas antes ao nome de um rio. A rotunda que nos recebe à entrada de Terras de Senhorim ostenta um enorme cacho de uvas, numa alusão clara a que estamos numa zona vinhateira. Encontrando-nos na região demarcada do Dão não seria de esperar outra coisa. 

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É junto à Casa dos Senas o ponto de partida. Um interessante e bonito solar do século XVII, todo em pedra, reconstruído em 2009 para albergar o espaço museológico Centro de Interpretação das Terras de Senhorim.

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Daqui, partimos rumo aos campos. As marcas de ruralidade da zona são bem visíveis. Passamos por algumas hortas, caminhos agrícolas e vinhas. Um cão em pose de alerta diz-nos que há por ali um rebanho. Recomenda a prudência, nestas circunstâncias, que nos certifiquemos da presença do pastor, sob pena de não sermos muito bem recebidos. Um pouco à frente, vislumbramos o rebanho e o pastor. Podemos seguir tranquilamente.

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Entramos novamente na localidade e passamos pela igreja matriz, que não visitamos por estar encerrada, e onde apreciamos a arquitetura local. Senhorim (não confundir com Canas de Senhorim, também do concelho de Nelas) é uma localidade com alguns encantos. Passamos por um moinho, um dos que vão ilustrar a nossa jornada, situado no rio Videira, afluente do Castelo, que atravessamos sobre umas bonitas poldras. Será por isso que se chama Moinho das Poldras? 

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Continuamos por caminhos entre muros antigos de pedra e, a determinada altura, apercebemo-nos de que temos um companheiro de quatro patas pelo qual tinhamos passado junto a uma casa na localidade. Tentamos fazê-lo regressar 'a casa', mas ele é persistente. Acompanha-nos ainda durante mais de um quilómetro até que, assustado com o barulho de uma serra elétrica, volta para trás. Este é, aliás, um barulho muito presente nestas paragens nesta altura do ano, já que no verão, o manuseamento de equipamentos elétricos é proibido, pelo perigo que os mesmos representam para os incêndios. Mas há que preparar lenha para o inverno e há que limpar as florestas, por isso, nada melhor do que a primavera para o fazer.

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Chegamos, agora, a uma secção do caminho particularmente pedregosa, mas bonita, em que enormes blocos e lajes de granito ocupam todo o espaço. É sobre essas lajes que, com todo o cuidado, caminhamos, pois o terreno é inclinado e escorregadio. Em fundo e ao longe, as casinhas da localidade proporcionam uma vista muito bonita. Passamos por um primeiro núcleo de ruínas de moinhos e continuamos a andar. Um pouco adiante, começamos a perceber, pelo barulho bem audível de águas correntes, que a um nível inferior àquele em que nos encontramos vai o rio Castelo. Com mil cuidados, contornamos aquelas rochas e aproximamo-nos até o conseguirmos ver. Ao rio e aos moinhos. 

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Água mole em pedra dura...
Que imagem linda! Um conjunto muito pictórico de moinhos na margem do rio que, neste troço, corre sobre um fundo de pedra. Pedra que, ano após ano, se deixou moldar pela irrequietude destas águas com caraterísticas de rio de montanha. O resultado são umas fantásticas marmitas de gigante. Muito 'leigamente' falando, as marmitas são cavidades de forma mais ou menos cilíndrica existentes nos leitos de alguns rios, resultantes da erosão das águas e dos seixos que elas transportam. Lá diz o ditado que "água mole em pedra dura tanto bate até que fura", e neste caso é mesmo verdade. E é um fenómeno muito interessante de observar, já que a água, ao passar pelas marmitas, faz uns remoinhos com um efeito visual curioso.
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Levar a água ao moinho...
A observação deste complexo de moinhos de rodízio, e de todo o cenário que eles compõem, é, sem dúvida, o ponto alto deste percurso. As imagens levam-nos até ao tempo em que eles eram fundamentais para a subsistência daquela população. Era neles que se moía o milho, o centeio e outros cereais com que se fazia a farinha para o pão. Além disso, são testemunhos da arte e engenho do homem no seu aproveitamento dos recursos que o meio lhe disponibiliza. Neste caso, um aproveitamento pacífico e não poluente, uma vez que a água era utilizada como força motriz, apenas fazendo girar os rodízios que faziam rodar as mós, seguindo depois o seu rumo. Eram tempos de tecnologias não poluentes... até porque ainda não havia eletricidade. 
Como curiosidade, devido às suas caraterísticas de rio de montanha, a força das águas do Castelo 'alimentou' vários moinhos, mais precisamente 16, dos 49 de todo o concelho.  
 
Outra curiosidade prende-se com a propriedade destas estruturas. É que os avultados custos de construção destes moinhos eram, geralmente, partilhados por vários proprietários, a que se chamava herdeiros, que os usavam depois em regime de alternância previamente combinado entre todos. Os custos aplicavam-se não apenas ao moinho, mas também ao conjunto de estruturas necessárias ao seu funcionamento como, por exemplo, açudes para armazenar água e levadas para a transportar. 
 
Passamos, de seguida, pela Mini-Hídrica de Senhorim, uma pequena central a fio de água, que aproveita, também, a força corrente do rio Castelo para produzir eletricidade.  

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Afastamo-nos do rio, avançando por caminhos antigos, ladeados por muros de pedra, atravessando uma zona arborizada, ora subindo, ora descendo. Fletimos, novamente, em direção ao rio, o que implica uma íngreme descida, por umas escadinhas de granito extremanente estreitas, irregulares, muito inclinadas e sem proteção lateral, junto ao muro de pedra de uma propriedade. Vários lances de escadinhas... quase a pique. É nestas situações que os bastões se revelam preciosos. No fim da descida, espera-nos um recanto verdadeiramente idílico formado pelo leito do rio e pela sua lindíssima galeria ripícola. Sobre o rio, o baloiço "SoRio Castelo" convida a uma 'voltinha'. E nós aceitamos o convite. Muito agradável! São estes 'tesouros' que fazem valer todo o esforço que estes caminhos de pedra exigem. Por uma pequena ponte suspensa, de madeira, atravessamos para a outra margem e iniciamos o regresso que, bem o sabíamos, implicaria uma subida rasgadinha, tendo em conta o que tínhamos descido. Só não sabíamos que seria tão acidentada. Literalmente, tivemos de vencer uma quantidade, que nos pareceu infindável, de enormes blocos de granito amontoados uns nos outros. Não foi fácil! 

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Antes do final da jornada, passamos ainda por um núcleo de ruínas de moinhos e entramos na localidade, novamente atravessando as poldras do moinho com o mesmo nome.

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Uma senhora de 'provecta' idade limpava os arbustos e ervas daninhas do terreno envolvente com uma roçadora. Mete conversa connosco e explica que no fim de semana seguinte vai haver festa. Para comemorar o Dia Nacional dos Moinhos, a Junta de Freguesia local promove, anualmente, uma visita guiada aos ditos, durante a qual se vai pôr em prática o ciclo do pão. Num dos moinhos vão moer a farinha, vão amassá-la, fazer os pães e cozê-los. A melhor parte fica guardada para o final, em que todos se juntam à volta da mesa para degustar a 'obra', bem como outras especialidades locais. A 'coisa' prometia, mas nós, apesar do simpático convite da senhora para participar, com grande pena, não pudémos comparecer. Ficará para outra oportunidade. 

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21.11.23

PR3 GVA | Rota do Penedo dos Mouros | Gouveia


Emília Matoso Sousa
4 de abril 2022
16 Km | Circular | 286 m desnível acumulado | Fácil
Localização | Arcozelo da Serra, freguesia do concelho de Gouveia, distrito da Guarda
 
É na freguesia de Arcozelo da Serra, no vale da ribeira do Boco, que se desenvolve a rota do Penedo dos Mouros. Uma freguesia onde a agricultura predomina e onde ainda sobrevivem alguns rebanhos que insistem em dar o seu contributo para que a arte do queijo da Serra se mantenha. 
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Atravessar estas aldeias, percorrer as suas ruas e passear nos campos envolventes é, por si só, muito agradável. Mas a experiência torna-se mais enriquecedora quando, a par dos edificados, menos ou mais interessantes,  destas localidades, somos presenteados com pedaços de História ou, simplesmente, com manifestações naturais surpreendentes. No caso deste trilho, o destaque vai, claramente, para o Penedo dos Mouros, um sítio de importância histórico-geológica, ou seja, uma estação arqueológica que é um conjunto monumental de penedos e afloramentos de granito que apresenta vestígios de algumas estruturas datáveis de dois períodos distintos, do Neolítico Antigo, e da Alta Idade Média (séculos IX e X). Estamos num concelho em que a Serra da Estrela é presença constante no nosso campo de visão e, por isso, o granito abunda por ali. A saída da localidade leva-nos, imediatamente, a terrenos rurais. Terrenos que se vão tornando mais 'agrestes' á medida que vamos subindo. A vegetação começa a ser mais rasteira, deixando à vista o material de que aquelas terras são feitas. Rocha. Granito. Ao longe, o amontoado de pequenas casinhas indica que já subimos bastante. 

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Chegamos ao Penedo dos Mouros. Localizado a uma altitude de 436 metros, este sítio terá sido um importante abrigo neolítico associado à transumância, mas também poderá ter sido uma estrutura defensiva, sendo visíveis marcas de recuperação medieval, bem como uma sepultura antropomórfica no topo de um dos afloramentos. Em boa verdade, há, alegadamente, todo um conjunto de marcas que passam, na sua maioria, despercebidas a olhares leigos como o meu. Degraus, sulcos, entalhes, pias, e algumas gravuras fazem parte das descobertas feitas durante as escavações realizadas por volta do ano 2000. Com base nesses e noutros achados, é possível conjeturar, de forma mais ou menos aproximada, quem ali vivia e qual o seu modo de vida. Gosto de imaginar os arqueólogos, quais brigadas da polícia científica, em busca de evidências de outras vidas. E não é que aqueles pedregulhos têm sempre histórias fascinantes para contar?  

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Aquele imenso conjunto de penedos graníticos impressiona pela sua dimensão e leva-nos a pensar nos muitos milhares ou milhões de anos que são necessários para a natureza os esculpir. Perdemos ali algum tempo, por um lado, a maravilhar-nos com aquele espetáculo visual, obra dos caprichos da natureza, por outro, à procura de vestígios do passado, os tais entalhes e as tais gravuras... Com um pouco de boa vontade, lá encontrámos uns 'risquinhos suspeitos', mas não mais do que isso. Cada qual é para o que nasce e nós, pelo visto, não nascemos para arqueólogos. Mas que é um lugar que convida a demorar, lá isso é. Este é, sem dúvida, o ponto alto do trilho, mas ainda há mais para ver. 

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Por exemplo, vale a pena fazer uma visita às 'instalações' do restaurante local, o Ponte dos Cavaleiros, que tem a particularidade de estar implantado num antigo lagar de azeite, por sinal, muito bem recuperado. Um forno comunitário apetrechado com as respetivas ferramentas de trabalho também faz parte do 'complexo', o qual inclui, ainda, uma queijaria de onde continuam a sair os belos queijos da Serra. Um pequeno passadiço, sobre um curso de água e uma cascata, contorna todo o espaço e faz daquele conjunto um local muito pitoresco. 

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Através de uma bonita paisagem rural, continuamos a caminhar, até atingirmos a localidade, cujas caraterísticas são as que se esperam de uma típica aldeia beirã, e onde os habitantes se dedicam, em grande parte, a atividades agrícolas. Entre o seu casario, chamou-nos a atenção uma pequena capela, a de Santo António, de traços estranhamente modernos para aquele contexto. Um apontamento bastante curioso! 

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Entre os campos de cultivo, onde sobressaem os vinhedos e os olivais, e zonas florestais, vamos avançando. Uma imagem da Senhora de Fátima marca presença 'nas alturas', sendo visível de alguns pontos do trajeto, por se encontrar no topo de um enorme penedo. Trata-se, na verdade, de uma espécie de santuário dedicado à Nossa Senhora. A religiosidade é uma presença constante nas terras beirãs.
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Este foi mais um trilho que nos permitiu viajar a tempos longínquos da nossa História e que proporcionou mais alguns elementos que nos ajudam a entender o mundo em que vivemos. Com um pouco de imaginação à mistura, claro!
08.11.23

Etapa 8: West Highland Way | De Kinlochleven a Fort William (24 Km)


Emília Matoso Sousa
Última etapa! Vai ser longa, o calor continua a não dar tréguas, mas a proximidade da 'meta' dá-nos um ânimo especial. É só mais um 'bocadinho'...
Hoje, o pequeno-almoço (o meu) foi porridge. Ele há lá coisa mais escocesa do que um bom e velho porridge? Parece que é muito alimentício e isso é o que se pretende quando pela frente há 24 quilómetros de chão, sem restaurantes ou outros sinais de civilização.
 
À saída de Kinlochleven, espera-nos uma subida íngreme, pedregosa e interminável.

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É preciso sofrer para se aceder às melhores vistas, vamos dizendo mentalmente, como que a pedir desculpa ao corpo pelos esforços a que o sujeitamos. Não é verdade que é depois da tempestade que melhor se saboreia a bonança? E de metáfora em metáfora, chegamos ao topo. As vistas são, de facto, soberbas. Primeiro, o corredor azul do Loch Leven encabeçado pela vila que deixáramos para trás. Depois, as montanhas grandiosas e os vales, no meio dos quais há um caminho que seguimos e que nos proporciona uma caminhada bastante confortável.

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A vastidão da paisagem naquela secção do caminho é avassaladora e a fina linha ligeiramente ondulada que vislumbramos no horizonte, sobre a qual caminhamos, dá-nos a medida do que ainda temos pela frente. Que não é pouco, diga-se!

etapa821.jpgetapa810.jpgetapa808.jpgNo meio daquele imenso nada, uma casa em ruínas destaca-se e é o centro da atenção de todos os que por ali vão passando. Deve haver poucos edifícios tão fotografados como  aquele. Custa acreditar que um dia alguém tenha construído ali uma casa. Voltará algum dia a ter vida?  

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O calor, esse nosso inimigo, continua a incomodar-nos e a obrigar-nos a constantes paragens junto aos vários cursos de água por onde vamos passando. Aproveitamos para nos refrescar e para molhar os chapéus, única forma de prolongar a sensação de alguma frescura. Há quem ali reabasteça os cantis de água. Infelizmente, não temos filtros nos nossos cantis, pelo que não arriscamos beber aquela água tão tentadoramente fresca e límpida. Que tortura! Mentalmente, anotamos a necessidade de adquirir esse importante acessório para caminhadas futuras.

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Um brasileiro, com quem nos cruzamos neste trajeto, aproveita para falar connosco em português. Depois de tantos dias a pensar e a falar em inglês, sabe bem ouvir a língua materna. Diz-nos ele e concordamos nós. Tal como nós, e como a maioria dos caminhantes, tinha-se preparado para tempo mais fresco, não para o calor. Ainda assim, a boa disposição era o seu maior trunfo e, por isso, sempre que passava por um curso de água ou por uma "cascatchinha", saltava lá para dentro. O pior era que, sendo esta a última etapa, já estava a antecipar as saudades que ia ter dos dias de caminhada. Como nós o entendemos! Quem faz caminhada conhece bem o sentimento de vazio dos dias que se seguem a estas 'aventuras'.
 
Um amontoado de pedras (um cairn) assinala a Batalha de Inverlochy (1645). Inverlochy é uma localidade situada a norte de Fort William, famosa por fazer parte do Great Glen Way, outro famoso trilho pedestre e para ciclismo, que liga Fort William a Inverness.

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Os apreciadores de história poderão encontrar ali perto as ruínas de um castelo do século XIII, junto ao qual aconteceram duas batalhas, uma em 1431 e outra em 1645. Há quem jure, a pés juntos, que os espíritos dos soldados que ali morreram, ainda por ali vagueiam... Que las hay, las hay, por isso, pessoas mais susceptíveis deverão pensar duas vezes antes de lá ir. Não confundir este castelo com o luxuosíssimo Inverlochy Castle Hotel, este do século XIX, e que, com as suas cinco estrelas e rodeado de uma paisagem linda de morrer, faz mais do que jus aos encantos desta Escócia idílica e maravilhosa. Desta vez, não visitámos... ficará para uma próxima oportunidade. 
 
Mas voltemos ao caminho e ao marco que recorda a Batalha de Inverlochy. Uma batalha que acontece em 2 de fevereiro de 1645 e que resulta da perseguição dos Campbells pelos MacDonals. Consta que, pela calada da madrugada, Montrose com os Highlanders, e Alasdair Maccolla com os seus irlandeses, todos apoiantes dos MacDonalds, atacaram e destruíram o exército dos Campbells. O local da batalha fica a uma milha a norte de Fort William, perto das ruínas do antigo Castelo de Inverlochy. Reza a lenda que os MacDonalds assinalaram o local onde interromperam a perseguição dos Campbells em fuga com uma grande pedra conhecida como 'Clach nan Caimbeulach' (Pedra de Campbells). Com o tempo, essa pedra foi sendo substituída por um monte de pedras. Segundo a tradição, os MacDonalds (ou simpatizantes de Montrose) deveriam adicionar uma pedra ao passarem ali, enquanto os Campbells (ou simpatizantes de Argyll) deveriam tirar uma. 
 
Seguimos viagem, passando, agora, por uma área de floresta, onde alguns caminhantes aproveitam para descansar. É por esta altura que começamos a avistar a montanha mais alta do Reino Unido e Ilhas Britânicas, a Ben Nevis que, com os seus 1345 metros de altitude, faz as delícias de alpinistas e praticantes de escalada.

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É procurada anualmente por muitos milhares de turistas, a maior parte dos quais a trepa usando a Pony Track, ficando as falésias de 700 metros de altura da vertente norte para os 'pro'. Entre os escoceses, ela é simplesmente 'the Ben'. Há tratamentos que são reservados só a amigos, essa é que é essa. Há quem coroe a realização do West Highland Way com uma subida ao topo da Ben Nevis, empreitada que deverá ocupar mais um dia. Cruzámo-nos com alguns. Quanto a nós, desta vez (?), prescindimos desse feito. 

Com Ben Nevis a ganhar cada vez mais volume no nosso horizonte, vamo-nos aproximando do final do caminho. Mais uma descida e entramos em Fort William. Uma descida que se revela um pouco monótona e cansativa, devido, sobretudo, ao piso, todo ele coberto de uma gravilha grosseira e desconfortável. 

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Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.", Antoine de Saint-Exupéry in O Principezinho
O final do caminho é assinalado duas vezes. A primeira, junto a uma rotunda fora do centro da cidade, ao lado ao Ben Nevis Highland Centre.

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Este era o final original, entretanto substituído (ou complementado) por outro em pleno centro, na Gordon Square, junto à estátua de bronze de homenagem ao caminheiro desconhecido, acrescentando uma milha ao WHW.

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As comemorações são devidamente 'patrocinadas' por um bar que tem a peculiaridade de, em tempos, ter sido uma igreja e, posteriormente, uma oficina de automóveis. Na verdade, continua a ser um autêntico 'templo', mais vocacionado para apaziguar o corpo do que o espírito, é certo, mas ainda assim um templo. À nossa espera estavam alguns dos nossos companheiros de estrada, que nos receberam com o maior aplauso. Que momento inesquecível! A seguir, em mesa partilhada e em confraternização com os nossos compagnons de route, foi comer, beber e festejar, pois quem traz 154 quilómetros nos pés merece isso e muito mais. O objetivo foi cumprido com sucesso. E como estamos em terras de Sua Magestade... o Rei morreu, viva o Rei!, que é como quem diz, "este já está, que venha o próximo!"  

A vontade de celebrar era tal que, desta vez, nem passámos pelo B&B para nos refrescar. A vontade de celebrar e a pouca (ou nenhuma) vontade de ainda fazer a longa e íngreme subida até à zona alta de Fort William, onde iríamos pernoitar. Por sinal, um B&B com um jardim e uma vista incríveis. A experiência de B&B na Escócia é quase sempre um valor seguro, pelo extremo conforto e pela qualidade do serviço que disponibilizam. Menção especial para os pequenos-almoços, os famosos Scottish breakfasts, que têm tudo o que os English breakfasts têm, com o acréscimo de black pudding e haggis. Haggis, essa instituição gastronómica escocesa que, de duas uma, ou se adora ou se detesta. Nós adoramos, sobretudo (se bem que não ao pequeno-almoço), quando regados com um dram de um bom single malt Scotch whisky, de preferência, bem trufado. 

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Na verdade, nesta zona da Escócia nem há muitos hotéis e muito menos os de grandes cadeias. Por enquanto! O B&B proporciona um convívio muito próximo com os outros hóspedes e isso é muito agradável. No de Fort William, conhecemos um casal de alemães que, curiosa e surpreendentemente, falavam português, pois o senhor, nos idos anos 80, tinha trabalhado em Moçambique numa empresa portuguesa. Claro que aproveitou para falar connosco no nosso idioma, pondo em prática os seus conhecimentos, ainda bem vivos, da língua de Camões. Moral da história: devemos ter sempre muito cuidado com o que dizemos, mesmo quando não há portugueses por perto! Just in case...
 
Sobre Fort William.
É a segunda maior cidade das Terras Altas, sendo Inverness a primeira e também a capital. Uma e outra são de pequena dimensão, se comparadas com Glasgow ou Edimburgo, mas ambas merecem uma visita, especialmente por quem aprecia atividades ligadas à natureza. Fort William, cujo número de habitantes não vai muito além dos 10 mil, é um importante centro turístico e muito procurado nas férias pelos escoceses, devido à proximidade de Ben Nevis, a montanha mais alta do Reino Unido e Ilhas Britânicas, e por ser 'banhada' pelo Loch Linnhe. Ou seja, para os amantes de escalada, da caminhada, do ciclismo e dos desportos náuticos. É aqui que termina o West Highland Way. Ou que começa... para quem o faz em sentido contrário. Mas há mais...
 
Vai um pulinho até Hogwarts?
A estação de Caminhos de Ferro desta cidade de província está associada a uma atração mundial que é o Jacobite Steam Train, também conhecido como Hogwarts Express, ou comboio do Harry Potter, para os menos conhecedores da personagem da saga de J. K. Rowling. É impressionante a quantidade imensa de pessoas, de todas as idades e proveniências, que, diariamente, embarcam neste mítico comboio rumo a Malaig, numa viagem de ida e volta que dura aproximadamente duas horas para cada lado. É considerada uma das viagens de comboio mais cénicas do mundo, com o plus de passar sobre o viaduto que se vê no filme, o de Glenfinnan. Há, ainda, quem espere pela passagem do comboio nas imediações do viaduto apenas para fotografar o momento em que o mais famoso comboio a vapor do mundo por ali passa.

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Não sei se é das viagens mais cénicas do mundo, mas posso afiançar que, olhando pela janela, as paisagens que desfilam pela nossa visão são pura magia. Sim, no day after, em vez de subir ao topo da Ben Nevis, optámos por embarcar neste comboio de outras eras (com bilhete comprado com meses de antecedência), acreditando que um pouco de fantasia dá um colorido diferente à vida. Além disso, esta era uma viagem que estava na nossa to do list desde a nossa primeira viagem à Escócia. 

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