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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

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"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

23.10.23

West Highland Way: Etapa 6 | De Inveroran a Kingshouse (16 Km)


Emília Matoso Sousa
Rumo ao coração das Terras Altas.
A etapa de hoje vai ser curta e vai-nos permitir descansar e recuperar algumas energias. Além disso, vai levar-nos a uma zona da Escócia já nossa conhecida e de que muito gostamos, a zona de Glencoe.

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O entusiasmo é grande. Deixamos Inveroran e, não fora o insuportável calor húmido, a potenciar 'ataques' de midges aqui e ali, e esta teria sido uma jornada tranquilinha e muito contemplativa. Paisagem verde, imensa, coroada por perfis montanhosos a perder de vista e muitos cursos de água. Hoje, vamos atravessar o Rannoch Moor, de que falarei mais adiante, e que já tínhamos avistado, ao longe, no trajeto entre Bridge of Orchy e Inveroran. É este o tipo de paisagem que aprecio particularmente. Remota, quase intocada pelo homem. Somos nós e a natureza!

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Deixamos o Inveroran Hotel, onde pernoitáramos e, não mais do que uma centena de metros depois, despedimo-nos da civilização ao passar por uma bonita lodge que disponibiliza uma sempre bem-vinda honesty box com bebidas frescas. Quase de imediato, entramos na Drove Road to Glencoe, uma Telford's Parlamentary Road construída, em 1803, sob a responsabilidade de Thomas Telford (1757-1834), um engenheiro civil escocês que se notabilizou como construtor de estradas, pontes e canais. Enquanto estrada pública principal, a estrada sobre a qual caminhamos manteve-se até 1933, sendo ainda usada para acesso a propriedades e, claro, para o West Highland way.

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Os cenários que vamos atravessando são incríveis de tão bonitos! Mais uma vez, sentimo-nos incapazes de descrever o que nos rodeia, pois não há palavras que abarquem tamanha magnitude, tamanho dramatismo... nem as fotografias lhe fazem jus. E entre contemplações e introspeções percorremos cerca de 15 quilómetros de pura paisagem em bruto até chegarmos ao alojamento. 

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O local de pernoita natural para esta jornada seria no Kingshouse Hotel, um hotel situado, literalmente, no meio de nenhures ou, melhor dizendo, no meio de uma paisagem absolutamente esmagadora. Não sei se se pode chamar àquele sítio uma localidade - Kingshouse - uma vez que se resume ao hotel, o qual possui também um conjunto de lodges para complementar a resposta em termos de alojamento. Um hotel muito catita, cheio de charme e cheio de história, tendo o edifício primitivo sido construído no início da década de 1750, como abrigo para viajantes, pertencendo ao Lorde Breadalbane, um poderoso do clã Campbell, que deixou que o mesmo se deteriorasse bastante.

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Não esqueçamos que estamos em pleno coração das Terras Altas, onde o rigor do clima não dá tréguas, particularmente nas estações mais frias. À luz dos padrões atuais, é difícil imaginar as condições em que os viajantes daquela época se deslocavam! Ainda hoje, olhando para aquele edifício solitário e remoto, entretanto muito bem recuperado, nos questionamos acerca da sua sustentabilidade. Uma coisa é certa, durante boa parte do ano é ocupado pelos frequentadores do West Highland Way, sendo difícil conseguir 'vaga' para lá ficar, apesar de não ser nada barato. A Escócia das Terras Altas está repleta destas pérolas escondidas, requintadas e improváveis!
Para a noite de hoje, optámos por uma solução mais em conta e adequada ao espírito de aventura, um micro lodge na estância de desportos de montanha de Glencoe: Glencoe Mountain Resort, dois quilómetros antes de Kingshouse.
 

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Uma experiência que superou as nossas expectativas, receosos que estavamos da utilização de balneários e casas de banho comunitários. Saliento, a este respeito, o estado de impecável limpeza de ambos os espaços, bem como a disponibilização de zonas próprias para lavagem e secagem de roupas e loiças. Bastante recomendável!  
 
O 'bichinho' da Escócia.
Terá sido na zona de Glencoe que, na nossa primeira viagem às Scottish Highlands, fomos picados pelo 'bichinho' da Escócia, picada essa que nos tem feito voltar e que teima em exercer o seu feitiço. Corria o ano de 2014 e percorríamos a A82 (de carro), uma das principais estradas norte-sul, que liga Glasgow a Inverness, capital das Highlands, via Fort William, a sua segunda maior cidade e importante centro turístico. Ora, a A82 tem secções verdadeiramente cénicas, designadamente o trajeto entre Tyndrum e Glencoe, através do Rannoch Moor, de que falarei noutra publicação. Amazing, como dizem os próprios escoceses, com muita razão, acrescento eu. Este é, aliás, um percurso que os turistas adoram e percebe-se porquê. (In)felizmente, há cada vez mais turistas a adorá-lo, dando origem a indesejáveis aglomerados de pessoas em zonas de miradouro... A A82 passa ainda por pontos de atração como o Loch Lomond, Ballaculish Bridge, Ben Nevis, Commando Memorial, Loch Ness, ou Urquhart Castle. Em busca da melhor descrição para aquela visão das montanhas de Glencoe apenas encontro uma palavra: avassaladora! A primeira vez que a percorremos, parámos tantas vezes para contemplar a paisagem, que chegámos atrasados ao nosso destino. Acontece frequentemente nas estradas escocesas demorar várias horas a completar distâncias de poucas dezenas de quilómetros.
 
Paisagens cinematográficas.
Parecem paisagens de filme e são paisagens de filme. Aliás, de vários filmes! Monty Python and the Holy Grail, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, e Skyfall são apenas alguns dos mais famosos que escolheram os cenários de Glencoe para as suas produções cinematográficas. Lembram-se daquela icónica cena em que o agente secreto mais famoso do mundo surge, junto do seu Aston Martin, ao lado de M (Judi Dench), a contemplar uma paisagem de cortar a respiração? Pois... É aqui mesmo, na zona de Glencoe. Estamos, nada mais e nada menos, do que numa das zonas mais cénicas e deslumbrantes da Escócia.

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Não há bela sem senão.
A par desta beleza e dramatismo paisagístico, Glencoe foi, também, o palco de um dos mais infames episódios da História deste país. O Massacre de Glencoe, do qual resultou a morte, à traição, de 38 elementos do clã MacDonald por autoridades britânicas de conluio com os Campbells, numa fatídica madrugada de fevereiro de 1692. Tudo porque os MacDonalds se recusaram a jurar lealdade ao rei William III, por apoiarem a causa jacobita contra o domínio inglês. Isto, apesar de os MacDonalds terem 'aquartelado' em sua casa os Campbells, oferecendo-lhes cama e mesa, numa época em que a hospitalidade era um valor basilar naquelas bandas. Não se faz!
A verdade é que os escoceses, além das constantes 'zaragatas' e rivalidades entre clãs, carregam um passado muito marcado por guerras em prol da sua independência e, desde o século XIII, muitos foram os confrontos entre os reinos da Escócia e da Inglaterra. Não é por acaso que ingleses e escoceses não são os melhores amigos...
 
Rannoch Moor: Natureza em estado puro.
Rannoch Moor é como o mundo seria se não houvesse humanos. É o que dizem alguns estudiosos. Isto porque este lugar maravilhoso é um dos últimos redutos realmente selvagens, não apenas na Escócia, mas também na Europa. Trata-se de uma vasta extensão de cerca de 50 milhas quadradas (130 km2) de charnecas pantanosas, turfeiras, lagos, rios, riachos e afloramentos rochosos. Um ambiente extremamente desafiante, mas, ainda assim capaz de suportar interessantes e até raras variedades de flora e fauna. Não é por acaso que recebe a designação de Local de Interesse Científico Especial (SSSI) e  de Área Especial de Conservação. Tudo isto cercado impressionantes montanhas... É de deixar qualquer um sem palavras. Breathless!
 
A área é atravessada pela A82, para gáudio dos automobilistas, e por uma linha férrea, construída com muita dificuldade devido às turfeiras, de tal forma que os seus trilhos estão assentes sobre um colchão de raízes de árvores, galhos e milhares de toneladas de terra e cinzas...

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Como curiosidade, a estação ferroviária que serve a zona (Corrour) é a mais alta do Reino Unido uma das mais remotas, estando a 10 milhas (16 km) da via pública mais próxima. A bem da verdade se diga que todo este solo permanentemente alagado e pejado de raízes torna impossível qualquer tipo de aproveitamento para utilização humana. O resultado é este espetáculo de paisagem em bruto.
 
Rannoch Moor também é atravessado de sul para norte pelo West Highland Way, travessia que os caminhantes fazem com um olhar absolutamente rendido àquela explosão de Natureza. 

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 Não havendo muito para fazer, a não ser evitar aumentar a coleção de picadelas de midge, a 'deita' foi cedo, após um tradicional fish and chips degustado no café/restaurante de apoio ao resort de montanha.