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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

06.10.23

West Highland Way: Etapa 4 | De Inverarnan a Tyndrum ( 19,5 Km)


Emília Matoso Sousa
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa, Na cara dos meus sentidos [...]", Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa) in O Guardador de Rebanhos

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Depois da duríssima etapa do dia anterior, qualquer outra seria, com certeza, mais fácil. Foi, portanto, sob a aura de um grande otimismo que, cedo, nos fizemos ao caminho. O mais cedo possível, para fugirmos ao tremendo calor que viera para ficar. Se alguém nos tivesse avisado que iríamos ser contemplados com temperaturas de 28, 29 graus, durante dias seguidos, na Escócia, não acreditaríamos. Mais, se nos dissessem que não iríamos apanhar uma gota de chuva durante a caminhada, não daríamos qualquer crédito. No entanto, o calor foi um dos 'ingredientes' mais penosos de todo o caminho, com a agravante de ser extremamente húmido.

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Hoje, vamos entrar nas chamadas Terras Altas. Montanhas e verde a perder de vista. Tudo o que  nos vai  rodeando é verdadeiramente bonito e difícil de traduzir para palavras, como difíceis são de descrever quaisquer sensações visuais que nos estimulam todos os outros sentidos e nos fazem querer apenas contemplar.

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Contemplações que nos conduzem a exercícios de introspeção quase terapêuticos. É preciso experimentar para se entender esta experiência tão inquietante quanto apaziguadora. De repente, aquela paisagem e nós são uma e a mesma coisa...

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E é entre silêncio e verde, ultrapassada meia dúzia de quilómetros de suave aclive, que chegamos ao ponto que marca a exata metade do caminho, na junção de duas estradas naturais, uma das quais leva a Crianlarich, desde que se esteja a fim de percorrer um pequeno desvio. Há quem diga (pense) que o pior do caminho já passou...

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Será? Na verdade, ainda há algumas surpresas à nossa espera. De resto, é aqui que o Glen Falloch, um vale situado entre Crianlarich e o topo final do Loch Lomond, sobe e encontra os pastos amenos de Strathfillan. A localidade dispõe de alojamento e restauração, sendo muito procurada pelos caminheiros. Não fomos a Crianlarich, optámos por fazer uma breve paragem, pois a subida tinha sido longa. Imaginamos os drovers, noutras eras, a fazerem o desvio em busca de comidinha e hospedagem. Afinal, eram deles estes caminhos, únicas vias que permitiam o acesso 'fácil' através de montes e vales. Nesta altura, foram também construídas algumas estradas militares, para permitir uma melhor mobilidade aos viajantes.

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Não havia comboios e o transporte era feito em carruagens abertas e puxadas por cavalos. Foi também por estas estradas que soldados de casacos vermelhos marcharam para norte, a partir de Loch Lomond, pela bacia hidrográfica até Glen Falloch (onde nos encontramos), seguindo para Strathfillan, onde chegaram a outra estrada militar, que vai de Callender a Tyndrum. As estradas militares são muito usuais nas Highlands, algumas delas aproveitadas para o West Highland Way, tendo sido construídas numa época em que as preocupações das logísticas militares se sobrepunham aos interesses de mobilidade da população civil. Constituíram uma marca de afirmação do poder central inglês ante os propósitos independentistas dos escoceses e a sua implementação arrastou-se durante anos. Apesar de apenas num período menor as campanhas terem sido dirigidas por um tal General Wade, este, imerecidamente, ganhou méritos para além dos que, efetivamente, lhe eram devidos, uma vez que todas elas são apelidadas de General Wade Military Roads 

Nas florestas por onde vamos passando, há muitos avisos acerca de trabalhos a decorrer.

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Chegamos aos pastos de Strathfillan onde, pequenos pontos brancos saltam à vista. São ovelhinhas a pastar. Uma imagem tão comum nas Scottish Highlands! As Crianlarich Hills, as montanhas em fundo, são a melhor moldura para este quadro tão bucólico. Ben More (1174 m), Stob Binnein (1165 m) e Cruach Ardrain (1046 m) são os seus nomes. Desengane-se quem pensa que aquelas ovelhas andam por ali 'à toa'. Nada disso. Esta é a planície de inundação do rio Fillan, que atravessamos depois de cruzarmos uma estrada movimentada, usado para a agricultura durante séculos. Estamos a atravessar a Kirkton Farm. Os campos são usados para criação de ovelhas e outro gado, e para a silagem (erva fermentada) usada como alimento no inverno. As ovelhas, ali, são criadas de acordo com um conjunto de boas práticas ambientais com o objetivo de melhorar a viabilidade da agricultura de montanha, tendo sempre presente a preocupação com o bem-estar animal. Novas abordagens científicas são conjugadas com técnicas centenárias para ajudar os agricultores escoceses a selecionar as ovelhas com melhor crescimento, desempenho ao longo da vida, qualidade da carne e resiliência ao clima, tudo com o menor impacto ambiental possível. Tudo isto nos é explicado através de painéis informativos no local.

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Curiosidades.
Esta é uma das zonas mais húmidas da Grã-Bretanha, com chuvas anuais acima de 2,5 m (4 vezes mais do que Edimburgo!); em média chove 280 dias por ano; chuva, temperatura do ar e humidade relativa são medidas automaticamente na estação meteorológica aqui situada, sendo os dados enviados automaticamente de hora em hora para a sede em Exeter.  

Alguns apontamentos históricos de interesse obrigam a uma pequena paragem neste local, que deve o nome (Fillan) a um monge irlandês missionário que ali se instalou no século VII para difundir os ensinamentos cristãos. Como reconhecimento das suas ações, depois da sua morte, foi santificado.
 
Do século XIII, restam as ruínas de um Priorado Augustiniano dedicado a St Fillan, alegadamente fundado por Robert I, ou Robert de Bruce, como era popularmente conhecido, rei da Escócia de 1306 até à sua morte. Terá sido destruída em 1607. Há, ainda, um antigo cemitério, Kirkton, que é em forma de quadrado e ocupa um monte circular. Entre as pedras das sepulturas, que datam desde o século XVIII ao início do XX, há quatro que aparentam datar dos séculos VII ou VIII.

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Continuamos a caminhar, agora pela Auchtertyre Farm, e apreciamos agora as Tyndrum Hills. Beinn Dubhcraig (978 m), Ben Lui (1127 m), e Beinn Chuirn (880 m). As quintas de montanha, como as que aqui atravessamos, são imensas, sendo a maior parte do terreno usado para pastagem. Atravessar o vale, depois de tantas subidas e descidas, é relaxante. É o tipo de paisagem que associo à Escócia e que me enche as medidas. Verde a perder de vista, horizontes recortados por montanhas de contornos suaves e ovelhinhas brancas a pastar tranquilamente em campo aberto.
 

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Há, de facto, muitas ovelhas naquela região do país. Mais do que pessoas! É que a criação de ovelhas em larga escala tem sido o uso principal daquelas terras nos últimos dois séculos. Sem vedações, elas são donas e senhoras do espaço, sendo nós os intrusos. São uma verdadeira atração!
 
O nosso reino por um copo de água.
É mesmo verdade! Nada nos deixa tão vulneráveis como a incapacidade de satisfazer uma necessidade básica. Ter sede e não ter água é dramático. E nós, em plena vaga de calor, estavamos a ficar sem água, e não foi por falta de cantis... Valeu-nos a simpatia e hospitalidade de um campista, no Camping Wigwam, que atravessámos, que nos conduziu e nos facilitou o acesso a uma milagrosa torneira na área de apoio do parque. Os quatro quilómetros seguintes até Tyndrum foram saboreados com um novo estado de espírito.

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Novo painel informativo dá-nos conta de um interessante (e importante) projeto de restauração de campos de turfa (peat), material orgânico vegetal tradicionalmente utilizado na Escócia como carvão, mas com muitas outras utilizações... por exemplo, para aromatizar o whisky, como combustível nos fornos de secagem dos grãos maltados que serão utilizados na produção da 'água da vida'.  Num pub escocês, ao pedir-se um whisky a primeira pergunta que fazem é se é peated ou non peated. Já agora, como pessoalíssima nota, o malte peated preferido aqui em casa é o Laphroaig (pronunciar La-froyg), proveniente da ilha de Islay, cuja destilaria já visitámos.
 
Mas tudo o que a natureza nos dá tem de ser usado com parcimónia, sob pena de acabar. E a turfa existe, porque tem uma determinada missão. A bem do equilíbrio do ecossistema há, pois, que restaurar as turfeiras. Para quê? Evitar que sequem e libertem carbono na atmosfera; reduzir o impacto das cheias; melhorar a qualidade das águas, filtrando-a de partículas poluentes; melhorar a qualidade deste habitat que suporta plantas raras, aves e insetos.
 
Ver uma ideia crescer.
Acompanhamos, agora, o rio Fillan ao longo de um trajeto particularmente bonito, e com vegetação variada. Entramos na Floresta Comunitária de Tyndrum. Tal como o nome indica, pertence à comunidade, foi plantada pela comunidade. "Ficamos felizes por todos a poderem utilizar, apenas pedimos que a tratem com respeito, em particular, não provocando incêndios", pode ler-se numa placa informativa. Mais um projeto que diz muito sobre os escoceses, sempre prontos a, em conjunto, arregaçar mangas e meter mãos à obra. O objetivo foi ajudar a recriar a Grande Floresta da Caledónia que, em tempos, cobriu grande parte do país. Segundo os próprios dizem, "não plantámos apenas uma floresta, estamos a assistir ao crescimento de uma ideia". Que bom seria se todos pensassemos e agíssemos desta forma!
 
Por esses campos (de batalha) fora. Dalrigh ou place of the King.
Antes de Tyndrum, ainda passamos por Dalrigh, um lugar onde se deu uma batalha com esse mesmo nome, em que Robert the Bruce e os seus homens foram derrotados pelo exército do Clan MacDougall. Corria o verão de 1306. Dois anos depois, the Bruce reapareceu para se vingar, porque isto é mesmo assim, cá se fazem, cá se pagam, e derrotou o seu inimigo na Batalha de Pass of Brander. Olhando, agora, para aqueles terrenos tão bonitos e tranquilos, custa a crer que ali aconteceram tão sangrentas atividades!
 
The Lochan of the Lost Sword. 
Reza a lenda que, depois de ter sido derrotado em Dalrigh, Robert the Bruce e o seu exército terão lançado as suas armas para este lochan (pequeno lago). Dessas armas fazia parte a Claymore, a espada comprida de Robert the Bruce, a qual, dizem, jaz no fundo do lochan. E ali está o memorial em pedra com o desenho da dita espada, para que não restem 'dúvidas'. Porém, os factos contam-nos uma história diferente, afirmando que o lago onde isso aconteceu se situa a sul deste local. Em 2015, foram usados detetores de metal no lago, mas nada foi encontrado. As dúvidas mantêm-se, sobretudo acerca do motivo que levou à 'troca' entre lagos. Tinha de haver uma lenda na narrativa, essa é que é a razão. Guerras entre clãs e lendas... whatelse?
 
Passamos ainda por um parque de campismo repleto de escoceses a usufruir do calor excecional e, logo de seguida, chegamos a Tyndrum. Trata-se de uma vila que em tempos terá sido ponto de paragem obrigatório para os drovers nas suas deslocações pelas Highlands e que, atualmente, continua a sê-lo para caminheiros e automobilistas ou motards. A primeira paragem é na mítica The Green Welly Stop, uma espécie de centro comercial para quem nos dias anteriores apenas viu duas ou três microlojas... Ali, há de tudo, desde roupas e calçado desportivo, a víveres, cafetaria, sítios para comer, livros... toda a panóplia de produtos úteis a qualquer viajante. Se isto não é um centro comercial, não sei o que será, então. E ainda há uma estação de serviço, a última para quem se dirige às Terras Altas. Uma autêntica metrópole!

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 Mais uma vez, optámos por ficar numa estalagem - The Tyundrum Inn - e não nos arrependemos. Para nossa surpresa, um dos empregados era um simpático português (de Santarém), algo pouco comum por aquelas bandas. Há sempre um português desconhecido que nos espera seja onde for!

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 No final do dia, uma fugaz chuvada diluviana fez-nos acreditar que o calor iria amenizar um pouco, mas não. Apenas serviu para tornar a atmosfera ainda mais húmida e menos suportável. Até ao final do caminho, vezes houve em que bem desejaríamos  ser abençoados com uma refrescante chuvinha, mas tal não aconteceu. Isto num país em que seria suposto que, num único dia, tivessemos um cheirinho de todas as estações do ano... Enfim, as alterações climáticas são mesmo uma realidade! Com menos ou mais calor, diz-se, e bem, que quem corre por gosto, não cansa.