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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

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"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

30.10.23

Etapa 7: West Highland Way | De Kingshouse a Kinlochleven (14,5 Km)


Emília Matoso Sousa
A etapa de hoje, a penúltima, não é longa, mas vai pôr à prova a nossa resistência na subida da Devil's Staircase, outro dos pontos altos do WHW. O nome faz temer o pior, se bem que a maior parte dos relatos que lemos ou ouvimos são bastante tranquilizadores.

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Foquemo-nos, por agora, na paisagem única que nos rodeia na saída de Kingshouse. À nossa frente, uma impressionante montanha ganha cada vez mais forma. Nada menos do que a imponente Buachaille Etive Mor, um dos Munros mais famosos da Escócia. The Great Herdsman of Etive ou o Grande Pastor de Etive, em português.

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Ali está ele, imponente, sentado na entrada do imenso vale Glen Etive, à esquerda, o tal que serviu de cenário ao Skyfall, e com o Glen Coe à direita. Nas nossas anteriores visitas às Terras Altas, já nos tínhamos deleitado com esta paisagem, nunca imaginando que um dia haveríamos de a percorrer a pé, quase nos sentindo parte daquele magnífico cenário. Uma coisa é apreciar a paisagem de longe, coisa diferente é estar inserido nessa mesma paisagem. Que sensação!!!!

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The Devil's Staircase.
Avançamos quase até ao sopé da montanha sobre uma antiga estrada militar que ligava Stirling a Fort William, construída por volta de 1750. Ao longo destre trajeto, o WHW ladeia a  já nossa conhecida A82 e constatamos que, desde a primeira vez que ali passámos, o trânsito de viaturas aumentou bastante, fruto do aumento do fluxo de turistas.

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Viramos à direita, de novo deixando para trás quasquer marcas de 'civilização' , para começar a subir as demoníacas 'escadas'.
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Em boa verdade, não se trata efetivamente de escadas, mas antes de um terreno extremanente inclinado e ziguezagueante, por vezes com pedras que parecem degraus... Tão inclinado que, olhando de baixo para o topo, as pessoas que já lá chegaram, parecem formigas.     

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Consta que foi batizada pelos soldados que, durante a construção da estrada militar, tinham de subir e descer a encosta, transportando pedras e equipamentos. Enfim, não deve ter sido fácil. Outra teoria afirma que o nome surgiu 150 depois, durante a construção do reservatório Blackwater, em que muitos dos militares envolvidos na obra perderam a vida ao aventurarem-se a percorrer tal caminho. 

E nós lá vamos subindo, parando de vez em quando para recuperar o fôlego. E também para admirar a paisagem, cuja beleza atinge, aqui, mais um ponto alto. Rannoch Moor ficou para trás, mas as montanhas começam a mostrar-se em toda a sua imponência. E quanto mais subimos, mais elas se mostram, organizadas em cordilheiras que, de tão perfeitas, parecem imagens de cinema. No horizonte, destaca-se o perfil das Marmones. A Escócia selvagem, a Escócia cénica, a Escócia dramática, tal como é tantas vezes descrita nos guiões turísticos, está ali à nossa frente! Que espetáculo!!

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Não sei se pela magnitude da paisagem, que nos esmaga a cada metro que subimos, a verdade é que, quando menos esperamos, atingimos o topo, que está assinalado por um pequeno cairn (um amontoado de pedras utilizado para homenagear algo ou alguém). Tinha razão quem dizia que a subida não é tão difícil assim! Estamos a 550 metros de altitude, o ponto de maior altitude do West Highland Way.

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Tão pouca altitude para tantas, tantas subidas acumuladas! Mais uma vez comprovamos que a mais difícil das subidas nos presenteia sempre com as melhores paisagens. É tão certo como uma lei da física! E todas aquelas expressões menos 'poéticas' que vamos proferindo durante a subida, imediatamente são substituídas por expressões como "que espetáculo!", "que maravilha!", "mais bonito é impossível" ou, se pensarmos em inglês, que é o que vimos fazendo por estes dias, "oh, dear!", "oh, God!", não esquecendo o típico "amazing!!!". E, como corolário de tudo isto, não poderia faltar o inevitável "afinal, até nem custou muito!", e, orgulho dos orgulhos, "we did it!". Portanto, sentemo-nos por alguns momentos, lanchemos qualquer coisita, e apreciemos o que de melhor a Mãe Natureza tem para nos oferecer. Afinal, é para isso que ali estamos. Uauuuuu!!!! Que vistas!!!!!!!

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A segunda lei da física iríamos comprová-la no troço final desta secção do caminho. É que depois de uma grande subida, segue-se uma grande descida. Esta máxima também nunca falha! Neste caso, foi uma longa e serpenteante descida através daquela fantástica charneca. Descer pode tornar-se, também, penoso, dependendo da inclinação, do tipo de piso e, no limite, dos joelhos do caminhante.

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No final da descida, espera-nos Kinlochleven, uma vila muito pitoresca situada num dos topos do Loch Leven, um lago de mar que, ali, chega bem ao interior. Um conjunto de painéis informativos dá-nos conta do ciclo de vida do salmão, o que significa que é um peixe abundante ali no rio Leven. Da mesma forma, somos alertados de que não devemos alimentar... os veados. Esperamos encontrar alguns! 

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Kinlochleven prosperou em 1926, graças à indústria da fundição, quando a British Aluminium Company aproveitou a força das águas das montanhas circundantes para fundir alumínio. Atualmente, é uma vila movimentada e ponto de paragem quase obrigatório no West Highland Way. Entre as suas pitorescas casinhas, destacam-se alguns edifícios que anteriormente faziam parte do processo de fundição e que foram reaproveitados para dois negócios: o Ice Factor, um enorme centro de escalada indoor, e a Cervejaria River Leven. 

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Para pernoitar, escolhemos um confortável B&B, uma das primeiras casas à entrada da vila, gerido por um simpático jovem casal, que nos recebeu com uns deliciosos biscoitos acabados de fazer. Isso e uma preciosa garrafa de água fresca. Nunca, na Escócia, ansiei tanto por água...

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Depois de um breve descanso, fomos 'explorar' a vila, até porque havia que assegurar mantimentos para o dia seguinte, uma caminhada de 24 quilómetros sem uma única loja ou cafetaria. Tivemos a sorte de nos cruzar com alguns veados que, donos e senhores das ruas, entravam e saíam nos jardins das casas com a maior descontração. Dá para perceber que convivem pacificamente com os moradores.

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O final do dia foi particularmente animado, com um belíssimo jantar escocês, num bar muito bem localizado, a que se seguiram uns divertidos momentos de confraternização com um grupo de caminhantes escoceses super bem-dispostos, de que fazia parte o nosso 'amigo' Craig. Cheers!!! Ou melhor, Slàinte!!! Na Escócia, sê escocês...

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23.10.23

West Highland Way: Etapa 6 | De Inveroran a Kingshouse (16 Km)


Emília Matoso Sousa
Rumo ao coração das Terras Altas.
A etapa de hoje vai ser curta e vai-nos permitir descansar e recuperar algumas energias. Além disso, vai levar-nos a uma zona da Escócia já nossa conhecida e de que muito gostamos, a zona de Glencoe.

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O entusiasmo é grande. Deixamos Inveroran e, não fora o insuportável calor húmido, a potenciar 'ataques' de midges aqui e ali, e esta teria sido uma jornada tranquilinha e muito contemplativa. Paisagem verde, imensa, coroada por perfis montanhosos a perder de vista e muitos cursos de água. Hoje, vamos atravessar o Rannoch Moor, de que falarei mais adiante, e que já tínhamos avistado, ao longe, no trajeto entre Bridge of Orchy e Inveroran. É este o tipo de paisagem que aprecio particularmente. Remota, quase intocada pelo homem. Somos nós e a natureza!

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Deixamos o Inveroran Hotel, onde pernoitáramos e, não mais do que uma centena de metros depois, despedimo-nos da civilização ao passar por uma bonita lodge que disponibiliza uma sempre bem-vinda honesty box com bebidas frescas. Quase de imediato, entramos na Drove Road to Glencoe, uma Telford's Parlamentary Road construída, em 1803, sob a responsabilidade de Thomas Telford (1757-1834), um engenheiro civil escocês que se notabilizou como construtor de estradas, pontes e canais. Enquanto estrada pública principal, a estrada sobre a qual caminhamos manteve-se até 1933, sendo ainda usada para acesso a propriedades e, claro, para o West Highland way.

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Os cenários que vamos atravessando são incríveis de tão bonitos! Mais uma vez, sentimo-nos incapazes de descrever o que nos rodeia, pois não há palavras que abarquem tamanha magnitude, tamanho dramatismo... nem as fotografias lhe fazem jus. E entre contemplações e introspeções percorremos cerca de 15 quilómetros de pura paisagem em bruto até chegarmos ao alojamento. 

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O local de pernoita natural para esta jornada seria no Kingshouse Hotel, um hotel situado, literalmente, no meio de nenhures ou, melhor dizendo, no meio de uma paisagem absolutamente esmagadora. Não sei se se pode chamar àquele sítio uma localidade - Kingshouse - uma vez que se resume ao hotel, o qual possui também um conjunto de lodges para complementar a resposta em termos de alojamento. Um hotel muito catita, cheio de charme e cheio de história, tendo o edifício primitivo sido construído no início da década de 1750, como abrigo para viajantes, pertencendo ao Lorde Breadalbane, um poderoso do clã Campbell, que deixou que o mesmo se deteriorasse bastante.

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Não esqueçamos que estamos em pleno coração das Terras Altas, onde o rigor do clima não dá tréguas, particularmente nas estações mais frias. À luz dos padrões atuais, é difícil imaginar as condições em que os viajantes daquela época se deslocavam! Ainda hoje, olhando para aquele edifício solitário e remoto, entretanto muito bem recuperado, nos questionamos acerca da sua sustentabilidade. Uma coisa é certa, durante boa parte do ano é ocupado pelos frequentadores do West Highland Way, sendo difícil conseguir 'vaga' para lá ficar, apesar de não ser nada barato. A Escócia das Terras Altas está repleta destas pérolas escondidas, requintadas e improváveis!
Para a noite de hoje, optámos por uma solução mais em conta e adequada ao espírito de aventura, um micro lodge na estância de desportos de montanha de Glencoe: Glencoe Mountain Resort, dois quilómetros antes de Kingshouse.
 

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Uma experiência que superou as nossas expectativas, receosos que estavamos da utilização de balneários e casas de banho comunitários. Saliento, a este respeito, o estado de impecável limpeza de ambos os espaços, bem como a disponibilização de zonas próprias para lavagem e secagem de roupas e loiças. Bastante recomendável!  
 
O 'bichinho' da Escócia.
Terá sido na zona de Glencoe que, na nossa primeira viagem às Scottish Highlands, fomos picados pelo 'bichinho' da Escócia, picada essa que nos tem feito voltar e que teima em exercer o seu feitiço. Corria o ano de 2014 e percorríamos a A82 (de carro), uma das principais estradas norte-sul, que liga Glasgow a Inverness, capital das Highlands, via Fort William, a sua segunda maior cidade e importante centro turístico. Ora, a A82 tem secções verdadeiramente cénicas, designadamente o trajeto entre Tyndrum e Glencoe, através do Rannoch Moor, de que falarei noutra publicação. Amazing, como dizem os próprios escoceses, com muita razão, acrescento eu. Este é, aliás, um percurso que os turistas adoram e percebe-se porquê. (In)felizmente, há cada vez mais turistas a adorá-lo, dando origem a indesejáveis aglomerados de pessoas em zonas de miradouro... A A82 passa ainda por pontos de atração como o Loch Lomond, Ballaculish Bridge, Ben Nevis, Commando Memorial, Loch Ness, ou Urquhart Castle. Em busca da melhor descrição para aquela visão das montanhas de Glencoe apenas encontro uma palavra: avassaladora! A primeira vez que a percorremos, parámos tantas vezes para contemplar a paisagem, que chegámos atrasados ao nosso destino. Acontece frequentemente nas estradas escocesas demorar várias horas a completar distâncias de poucas dezenas de quilómetros.
 
Paisagens cinematográficas.
Parecem paisagens de filme e são paisagens de filme. Aliás, de vários filmes! Monty Python and the Holy Grail, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, e Skyfall são apenas alguns dos mais famosos que escolheram os cenários de Glencoe para as suas produções cinematográficas. Lembram-se daquela icónica cena em que o agente secreto mais famoso do mundo surge, junto do seu Aston Martin, ao lado de M (Judi Dench), a contemplar uma paisagem de cortar a respiração? Pois... É aqui mesmo, na zona de Glencoe. Estamos, nada mais e nada menos, do que numa das zonas mais cénicas e deslumbrantes da Escócia.

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Não há bela sem senão.
A par desta beleza e dramatismo paisagístico, Glencoe foi, também, o palco de um dos mais infames episódios da História deste país. O Massacre de Glencoe, do qual resultou a morte, à traição, de 38 elementos do clã MacDonald por autoridades britânicas de conluio com os Campbells, numa fatídica madrugada de fevereiro de 1692. Tudo porque os MacDonalds se recusaram a jurar lealdade ao rei William III, por apoiarem a causa jacobita contra o domínio inglês. Isto, apesar de os MacDonalds terem 'aquartelado' em sua casa os Campbells, oferecendo-lhes cama e mesa, numa época em que a hospitalidade era um valor basilar naquelas bandas. Não se faz!
A verdade é que os escoceses, além das constantes 'zaragatas' e rivalidades entre clãs, carregam um passado muito marcado por guerras em prol da sua independência e, desde o século XIII, muitos foram os confrontos entre os reinos da Escócia e da Inglaterra. Não é por acaso que ingleses e escoceses não são os melhores amigos...
 
Rannoch Moor: Natureza em estado puro.
Rannoch Moor é como o mundo seria se não houvesse humanos. É o que dizem alguns estudiosos. Isto porque este lugar maravilhoso é um dos últimos redutos realmente selvagens, não apenas na Escócia, mas também na Europa. Trata-se de uma vasta extensão de cerca de 50 milhas quadradas (130 km2) de charnecas pantanosas, turfeiras, lagos, rios, riachos e afloramentos rochosos. Um ambiente extremamente desafiante, mas, ainda assim capaz de suportar interessantes e até raras variedades de flora e fauna. Não é por acaso que recebe a designação de Local de Interesse Científico Especial (SSSI) e  de Área Especial de Conservação. Tudo isto cercado impressionantes montanhas... É de deixar qualquer um sem palavras. Breathless!
 
A área é atravessada pela A82, para gáudio dos automobilistas, e por uma linha férrea, construída com muita dificuldade devido às turfeiras, de tal forma que os seus trilhos estão assentes sobre um colchão de raízes de árvores, galhos e milhares de toneladas de terra e cinzas...

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Como curiosidade, a estação ferroviária que serve a zona (Corrour) é a mais alta do Reino Unido uma das mais remotas, estando a 10 milhas (16 km) da via pública mais próxima. A bem da verdade se diga que todo este solo permanentemente alagado e pejado de raízes torna impossível qualquer tipo de aproveitamento para utilização humana. O resultado é este espetáculo de paisagem em bruto.
 
Rannoch Moor também é atravessado de sul para norte pelo West Highland Way, travessia que os caminhantes fazem com um olhar absolutamente rendido àquela explosão de Natureza. 

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 Não havendo muito para fazer, a não ser evitar aumentar a coleção de picadelas de midge, a 'deita' foi cedo, após um tradicional fish and chips degustado no café/restaurante de apoio ao resort de montanha.
13.10.23

West Highland Way: Etapa 5 | De Tyndrum a Inveroran ( 14,5 Km)


Emília Matoso Sousa

Wherever I wander, wherever I rove, The hills of the Highlands for ever I love.", Robert Burns

Partimos de Tyndrum bem cedinho e compramos alguns alimentos na Green Welly Stop. É a última oportunidade para o fazer durante 44 quilómetros, ou seja, nas duas etapas que se seguem. Saimos da localidade e seguimos por um trilho que é particularmente bonito, com a paisagem de montanha a dominar.

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A chuva da noite anterior aumentou os valores da humidade e, no início da nossa marcha, fomos atacados pelas midges. Uns irritantes mosquitos de tamanho mínimo que são um autêntico flagelo na Escócia. Apesar do seu diminuto tamanho, as suas picadas são bastante desagradáveis. A tal ponto, que a permanência no exterior é proibitiva ao final do dia. Desta vez, tivemos oportunidade de as enfrentar noutros horários. O repelente repele alguns, mas eles atacam em nuvem e acabam sempre por picar. Nesta altura, os meus braços e tornozelos estavam já cheios de marcas... Muitos caminhantes recorrem a chapéus com redes que protegem o rosto. Os que fazem campismo ao longo do WHW, e não são poucos, são as principais vítimas destas minúsculas e terríveis criaturas. As midges são, efetivamente, um grande problema das zonas mais rurais e remotas da Escócia!

Os vales e as montanhas estendem-se à nossa frente, deixando-nos extasiados. Mesmo! Em destaque, a visão imponente das encostas íngremes da Beinn Odhar e a pirâmide da Beinn Dorain que nos irão acompanhar até Bridge of Orchy, em cujo hotel uma paragem é bem-vinda, depois de cerca de dez quilómetros de caminhada.

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Em parte destes dez quilómetros, avistávamos a A82, pela qual, em anteriores idas à Escócia, já por várias vezes havíamos passado. Nessas passagens, ao vermos caminhantes com mochilas a percorrer aquele trajeto do WHW, sonhávamos que um dia o viessemos a fazer, não sabendo, então, que tal sonho haveria de ser concretizado. 

À chegada ao hotel de Bridge of Orchy, somos recebidos com umas calorosas palmas pelos nossos companheiros de 'estrada'. Nesta altura, já nos conhecemos. Tal como no Caminho de Santiago, há um espírito de comunidade que se vai cimentando a cada dia. O hotel, soberbamente localizado, é muito bonito e sentamo-nos no terraço a tomar bebidas frescas. Sabe-nos pela vida! Há quem termine aqui a jornada, nós seguimos viagem. Os quilómetros que ainda temos pela frente não são muitos, mas vão ser intensos, com uma longa subida e subsequente descida.

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Bridge of Orchy tem uma estação de caminho de ferro, cuja linha nos acompanhou desde o Glen Falloch (perto de Crianlarich e St Fillan), que por duas vezes atravessámos, por passagens inferiores, e que agora só voltaremos a encontrar em Fort William.

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Depois de Bridge of Orchy, passada a emblemática e antiquíssima ponte que dá nome à localidade, logo somos desviados da estrada para um estreito caminho florestal.

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Vamos subindo a encosta e, bem no topo, onde 'nasceu' um memorial feito de pedras, há uma espécie de miradouro que proporciona as melhores vistas para o Loch Tulla e para a Black Mount. E é precisamente na Black Mount Estate que se situa uma casa que pertenceu ao autor do nosso conhecido James Bond. Ian Flemming de sua graça.

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Para lá de Inveroran, que daqui se avista, é já possível ter um 'cheirinho' do remoto Rannoch Moor, do qual só falarei no relato da próxima etapa. Quando falamos de Inveroran, enquanto localidade, estamos a falar apenas de um hotel e de duas ou três casas, o que nas Terras Altas escocesas é o bastante para que haja uma localidade com nome e tudo.

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Na parte mais íngreme da descida que nos levará ao Inveroran Hotel, destino da etapa de hoje, cruzamo-nos com uma esforçadíssima ciclista que, solitária, vem fazendo o West Highland Way no sentido inverso (de norte para sul). A acentuada inclinação do terreno obriga-a a transportar a bicicleta às costas, pelo que, é com uma visível sensação de alívio que, para trocar algumas palavras connosco, a pousa no chão. O esforço daquela rapariga fez-me relativizar o meu, manifestamente menor. Durante todo o caminho, apenas encontrámos três ciclistas, o que demonstra bem a dureza de alguns trajetos.

No final da descida, chegamos ao alojamento. Um pequeno hotel cheio de charme e de um conforto que, para um tempo mais fresco, seria perfeito, mas que é pouco adequado à anormal temperatura quente que se fazia sentir. As casas escocesas estão preparadas para o frio, mas não para o calor. Ainda agora, quando penso nas belíssimas lãs, que tanto utilizam para decorar e 'vestir' os interiores, sinto-me a sufocar... Do exterior, também muito agradável, quase não pudemos usufruir, sob pena de sermos 'devorados' pelas midges.

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Portanto, depois do jantar, por sinal muito catita, tivemos de ir dormir. Em junho, na Escócia, onde se janta cedo, a luz do dia prolonga-se para lá das 23h. Por esse motivo, acabamos por nos deitar quase sempre ainda de dia...

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Este hotel encerra uma curiosidade dos tempos em que era uma modestíssima estalagem. É que William Wordsworth, um dos maiores poetas românticos ingleses, com a sua irmã, Dorothy, foram dos primeiros viajantes turísticos nestas inóspitas zonas. Corria o ano de 1803, as estalagens eram raras e muito simples e os companheiros de viagem eram transportadores de gado (drovers). Não havia Tripadvisor na altura, mas ainda assim, sendo escritor, Wordsworth não deixou de tornar pública a sua pouco abonatória opinião sobre o espaço. Dorothy, também ela autora, escreveu um comentário em que evocava a estalagem "ocupada por sete ou oito viajantes, provavelmente drovers, com igual número de cães, sentados num círculo completo à volta de uma fogueira de turfa (peat), cada um com um recipiente de madeira cheio de porridge, em cima dos joelhos." Felizmente, não havia Estrelas Michelin nem redes sociais, caso contrário o nosso charmoso hotelzinho não teria chegado ao século XXI. 

06.10.23

West Highland Way: Etapa 4 | De Inverarnan a Tyndrum ( 19,5 Km)


Emília Matoso Sousa
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa, Na cara dos meus sentidos [...]", Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa) in O Guardador de Rebanhos

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Depois da duríssima etapa do dia anterior, qualquer outra seria, com certeza, mais fácil. Foi, portanto, sob a aura de um grande otimismo que, cedo, nos fizemos ao caminho. O mais cedo possível, para fugirmos ao tremendo calor que viera para ficar. Se alguém nos tivesse avisado que iríamos ser contemplados com temperaturas de 28, 29 graus, durante dias seguidos, na Escócia, não acreditaríamos. Mais, se nos dissessem que não iríamos apanhar uma gota de chuva durante a caminhada, não daríamos qualquer crédito. No entanto, o calor foi um dos 'ingredientes' mais penosos de todo o caminho, com a agravante de ser extremamente húmido.

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Hoje, vamos entrar nas chamadas Terras Altas. Montanhas e verde a perder de vista. Tudo o que  nos vai  rodeando é verdadeiramente bonito e difícil de traduzir para palavras, como difíceis são de descrever quaisquer sensações visuais que nos estimulam todos os outros sentidos e nos fazem querer apenas contemplar.

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Contemplações que nos conduzem a exercícios de introspeção quase terapêuticos. É preciso experimentar para se entender esta experiência tão inquietante quanto apaziguadora. De repente, aquela paisagem e nós são uma e a mesma coisa...

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E é entre silêncio e verde, ultrapassada meia dúzia de quilómetros de suave aclive, que chegamos ao ponto que marca a exata metade do caminho, na junção de duas estradas naturais, uma das quais leva a Crianlarich, desde que se esteja a fim de percorrer um pequeno desvio. Há quem diga (pense) que o pior do caminho já passou...

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Será? Na verdade, ainda há algumas surpresas à nossa espera. De resto, é aqui que o Glen Falloch, um vale situado entre Crianlarich e o topo final do Loch Lomond, sobe e encontra os pastos amenos de Strathfillan. A localidade dispõe de alojamento e restauração, sendo muito procurada pelos caminheiros. Não fomos a Crianlarich, optámos por fazer uma breve paragem, pois a subida tinha sido longa. Imaginamos os drovers, noutras eras, a fazerem o desvio em busca de comidinha e hospedagem. Afinal, eram deles estes caminhos, únicas vias que permitiam o acesso 'fácil' através de montes e vales. Nesta altura, foram também construídas algumas estradas militares, para permitir uma melhor mobilidade aos viajantes.

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Não havia comboios e o transporte era feito em carruagens abertas e puxadas por cavalos. Foi também por estas estradas que soldados de casacos vermelhos marcharam para norte, a partir de Loch Lomond, pela bacia hidrográfica até Glen Falloch (onde nos encontramos), seguindo para Strathfillan, onde chegaram a outra estrada militar, que vai de Callender a Tyndrum. As estradas militares são muito usuais nas Highlands, algumas delas aproveitadas para o West Highland Way, tendo sido construídas numa época em que as preocupações das logísticas militares se sobrepunham aos interesses de mobilidade da população civil. Constituíram uma marca de afirmação do poder central inglês ante os propósitos independentistas dos escoceses e a sua implementação arrastou-se durante anos. Apesar de apenas num período menor as campanhas terem sido dirigidas por um tal General Wade, este, imerecidamente, ganhou méritos para além dos que, efetivamente, lhe eram devidos, uma vez que todas elas são apelidadas de General Wade Military Roads 

Nas florestas por onde vamos passando, há muitos avisos acerca de trabalhos a decorrer.

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Chegamos aos pastos de Strathfillan onde, pequenos pontos brancos saltam à vista. São ovelhinhas a pastar. Uma imagem tão comum nas Scottish Highlands! As Crianlarich Hills, as montanhas em fundo, são a melhor moldura para este quadro tão bucólico. Ben More (1174 m), Stob Binnein (1165 m) e Cruach Ardrain (1046 m) são os seus nomes. Desengane-se quem pensa que aquelas ovelhas andam por ali 'à toa'. Nada disso. Esta é a planície de inundação do rio Fillan, que atravessamos depois de cruzarmos uma estrada movimentada, usado para a agricultura durante séculos. Estamos a atravessar a Kirkton Farm. Os campos são usados para criação de ovelhas e outro gado, e para a silagem (erva fermentada) usada como alimento no inverno. As ovelhas, ali, são criadas de acordo com um conjunto de boas práticas ambientais com o objetivo de melhorar a viabilidade da agricultura de montanha, tendo sempre presente a preocupação com o bem-estar animal. Novas abordagens científicas são conjugadas com técnicas centenárias para ajudar os agricultores escoceses a selecionar as ovelhas com melhor crescimento, desempenho ao longo da vida, qualidade da carne e resiliência ao clima, tudo com o menor impacto ambiental possível. Tudo isto nos é explicado através de painéis informativos no local.

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Curiosidades.
Esta é uma das zonas mais húmidas da Grã-Bretanha, com chuvas anuais acima de 2,5 m (4 vezes mais do que Edimburgo!); em média chove 280 dias por ano; chuva, temperatura do ar e humidade relativa são medidas automaticamente na estação meteorológica aqui situada, sendo os dados enviados automaticamente de hora em hora para a sede em Exeter.  

Alguns apontamentos históricos de interesse obrigam a uma pequena paragem neste local, que deve o nome (Fillan) a um monge irlandês missionário que ali se instalou no século VII para difundir os ensinamentos cristãos. Como reconhecimento das suas ações, depois da sua morte, foi santificado.
 
Do século XIII, restam as ruínas de um Priorado Augustiniano dedicado a St Fillan, alegadamente fundado por Robert I, ou Robert de Bruce, como era popularmente conhecido, rei da Escócia de 1306 até à sua morte. Terá sido destruída em 1607. Há, ainda, um antigo cemitério, Kirkton, que é em forma de quadrado e ocupa um monte circular. Entre as pedras das sepulturas, que datam desde o século XVIII ao início do XX, há quatro que aparentam datar dos séculos VII ou VIII.

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Continuamos a caminhar, agora pela Auchtertyre Farm, e apreciamos agora as Tyndrum Hills. Beinn Dubhcraig (978 m), Ben Lui (1127 m), e Beinn Chuirn (880 m). As quintas de montanha, como as que aqui atravessamos, são imensas, sendo a maior parte do terreno usado para pastagem. Atravessar o vale, depois de tantas subidas e descidas, é relaxante. É o tipo de paisagem que associo à Escócia e que me enche as medidas. Verde a perder de vista, horizontes recortados por montanhas de contornos suaves e ovelhinhas brancas a pastar tranquilamente em campo aberto.
 

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Há, de facto, muitas ovelhas naquela região do país. Mais do que pessoas! É que a criação de ovelhas em larga escala tem sido o uso principal daquelas terras nos últimos dois séculos. Sem vedações, elas são donas e senhoras do espaço, sendo nós os intrusos. São uma verdadeira atração!
 
O nosso reino por um copo de água.
É mesmo verdade! Nada nos deixa tão vulneráveis como a incapacidade de satisfazer uma necessidade básica. Ter sede e não ter água é dramático. E nós, em plena vaga de calor, estavamos a ficar sem água, e não foi por falta de cantis... Valeu-nos a simpatia e hospitalidade de um campista, no Camping Wigwam, que atravessámos, que nos conduziu e nos facilitou o acesso a uma milagrosa torneira na área de apoio do parque. Os quatro quilómetros seguintes até Tyndrum foram saboreados com um novo estado de espírito.

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Novo painel informativo dá-nos conta de um interessante (e importante) projeto de restauração de campos de turfa (peat), material orgânico vegetal tradicionalmente utilizado na Escócia como carvão, mas com muitas outras utilizações... por exemplo, para aromatizar o whisky, como combustível nos fornos de secagem dos grãos maltados que serão utilizados na produção da 'água da vida'.  Num pub escocês, ao pedir-se um whisky a primeira pergunta que fazem é se é peated ou non peated. Já agora, como pessoalíssima nota, o malte peated preferido aqui em casa é o Laphroaig (pronunciar La-froyg), proveniente da ilha de Islay, cuja destilaria já visitámos.
 
Mas tudo o que a natureza nos dá tem de ser usado com parcimónia, sob pena de acabar. E a turfa existe, porque tem uma determinada missão. A bem do equilíbrio do ecossistema há, pois, que restaurar as turfeiras. Para quê? Evitar que sequem e libertem carbono na atmosfera; reduzir o impacto das cheias; melhorar a qualidade das águas, filtrando-a de partículas poluentes; melhorar a qualidade deste habitat que suporta plantas raras, aves e insetos.
 
Ver uma ideia crescer.
Acompanhamos, agora, o rio Fillan ao longo de um trajeto particularmente bonito, e com vegetação variada. Entramos na Floresta Comunitária de Tyndrum. Tal como o nome indica, pertence à comunidade, foi plantada pela comunidade. "Ficamos felizes por todos a poderem utilizar, apenas pedimos que a tratem com respeito, em particular, não provocando incêndios", pode ler-se numa placa informativa. Mais um projeto que diz muito sobre os escoceses, sempre prontos a, em conjunto, arregaçar mangas e meter mãos à obra. O objetivo foi ajudar a recriar a Grande Floresta da Caledónia que, em tempos, cobriu grande parte do país. Segundo os próprios dizem, "não plantámos apenas uma floresta, estamos a assistir ao crescimento de uma ideia". Que bom seria se todos pensassemos e agíssemos desta forma!
 
Por esses campos (de batalha) fora. Dalrigh ou place of the King.
Antes de Tyndrum, ainda passamos por Dalrigh, um lugar onde se deu uma batalha com esse mesmo nome, em que Robert the Bruce e os seus homens foram derrotados pelo exército do Clan MacDougall. Corria o verão de 1306. Dois anos depois, the Bruce reapareceu para se vingar, porque isto é mesmo assim, cá se fazem, cá se pagam, e derrotou o seu inimigo na Batalha de Pass of Brander. Olhando, agora, para aqueles terrenos tão bonitos e tranquilos, custa a crer que ali aconteceram tão sangrentas atividades!
 
The Lochan of the Lost Sword. 
Reza a lenda que, depois de ter sido derrotado em Dalrigh, Robert the Bruce e o seu exército terão lançado as suas armas para este lochan (pequeno lago). Dessas armas fazia parte a Claymore, a espada comprida de Robert the Bruce, a qual, dizem, jaz no fundo do lochan. E ali está o memorial em pedra com o desenho da dita espada, para que não restem 'dúvidas'. Porém, os factos contam-nos uma história diferente, afirmando que o lago onde isso aconteceu se situa a sul deste local. Em 2015, foram usados detetores de metal no lago, mas nada foi encontrado. As dúvidas mantêm-se, sobretudo acerca do motivo que levou à 'troca' entre lagos. Tinha de haver uma lenda na narrativa, essa é que é a razão. Guerras entre clãs e lendas... whatelse?
 
Passamos ainda por um parque de campismo repleto de escoceses a usufruir do calor excecional e, logo de seguida, chegamos a Tyndrum. Trata-se de uma vila que em tempos terá sido ponto de paragem obrigatório para os drovers nas suas deslocações pelas Highlands e que, atualmente, continua a sê-lo para caminheiros e automobilistas ou motards. A primeira paragem é na mítica The Green Welly Stop, uma espécie de centro comercial para quem nos dias anteriores apenas viu duas ou três microlojas... Ali, há de tudo, desde roupas e calçado desportivo, a víveres, cafetaria, sítios para comer, livros... toda a panóplia de produtos úteis a qualquer viajante. Se isto não é um centro comercial, não sei o que será, então. E ainda há uma estação de serviço, a última para quem se dirige às Terras Altas. Uma autêntica metrópole!

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 Mais uma vez, optámos por ficar numa estalagem - The Tyundrum Inn - e não nos arrependemos. Para nossa surpresa, um dos empregados era um simpático português (de Santarém), algo pouco comum por aquelas bandas. Há sempre um português desconhecido que nos espera seja onde for!

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 No final do dia, uma fugaz chuvada diluviana fez-nos acreditar que o calor iria amenizar um pouco, mas não. Apenas serviu para tornar a atmosfera ainda mais húmida e menos suportável. Até ao final do caminho, vezes houve em que bem desejaríamos  ser abençoados com uma refrescante chuvinha, mas tal não aconteceu. Isto num país em que seria suposto que, num único dia, tivessemos um cheirinho de todas as estações do ano... Enfim, as alterações climáticas são mesmo uma realidade! Com menos ou mais calor, diz-se, e bem, que quem corre por gosto, não cansa.