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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

25.09.23

West Highland Way: Etapa 3 | De Rowardennan a Inverarnan (22,5 Km)


Emília Matoso Sousa
On the bonnie, bonnie banks o'Loch Lomond", Canção Tradicional Escocesa
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O refrão faz parte de uma canção tradicional escocesa, cuja letra remete, justamente, para o Loch Lomond, que hoje nos vai acompanhar ao longo de toda a jornada. Sabemos que vai ser uma etapa com alguns trajetos complicados, mas não desconfiamos que vai ser, de longe, a etapa mais difícil de todo o caminho.

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Iniciamos o dia particularmente motivados. Vamos andar nas margens do loch e isso é garantia de paisagens que nos vão maravilhar. Depois de uma voltinha 'turística' pela zona, iniciamos a nossa marcha. Sabemos que, sensivelmente, dois quilómetros depois, há uma bifurcação: ou seguimos à beira do lago, ou optamos por um caminho mais afastado e menos acidentado, sendo este o oficial segundo os guias que consultámos. Mas a sinalética indica a beira do loch e por aí seguimos. Quanto nos viríamos a arrepender! Pedras e pedregulhos, menos ou mais amontoados, trilhos estreitos e ziguezagueantes atravessados pelas salientes raízes seculares das árvores que ladeiam a margem do lago... De facto, o cenário é muito bonito, e a margem, que por vezes se transforma em pequenas praias, fornece-nos imagens dignas de filme.

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As árvores e as suas caprichosas raízes, grossas e  elaboradas numa espécie de tricô estendido debaixo dos nossos pés, nem parecem reais. É preciso muito cuidado para não tropeçar! Aqueles obstáculos de pedra pareciam não ter fim. Um quilómetro, dois quilómetros, três, quatro... sempre que havia um pequeno trilho de terra batida, fazíamos uma festa. Já faltaria pouco? Cinco quilómetros, seis... Chegamos ao Inversnaid Hotel, por sinal bastante charmoso, situado numa pequena comunidade rural com o mesmo nome. Uma estrutura hoteleira absolutamente improvável num sítio no meio de nada, algo muito comum na Escócia. Para alguns, é local de pernoita, para outros, apenas uma breve paragem ténica. Os caminheiros são bem-vindos, sendo-lhes proporcionadas facilidades de acesso ao bar e casas de banho. 

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O destaque aqui vai para uma queda de água bastante refrescante e para um porto de onde parte um pequeno ferry para Inveruglas, na outra margem. Inversnaid é particularmente interessante para os amantes da natureza por se inserir na reserva natural da Great Trossachs Forest e da RSPB Scotland (Royal Society for the Protection of Birds). É também aqui que o Great Trossachs Path se junta ao West Highland Way. 

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O Great Trossachs Path situa-se em pleno coração do Loch Lomond e é um trilho de longa distância (48 km) que faz parte da rede de grandes trilhos da Escócia, podendo interligar-se entre eles num nunca acabar de contactos privilegiados com paisagens naturais deslumbrantes.
 
Seguimos viagem, após uns minutos de descanso na aprazível esplanada do hotel, convencidos de que o pior já tinha passado e de que a partir daqui, o caminho seria mais suave. Mas não. Piorou e de que maneira! Na verdade, o troço que tínhamos pela frente, entre Inversnaid e Inverarnan, viria a revelar-se o mais difícil de todo o WHW!

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Um Robin dos Bosques escocês
A Escócia é um país com um imaginário rico em histórias fantásticas. Quem nunca ouviu falar do famoso Ness, o monstro que habita o lago com o mesmo nome? Nessie, para os amigos... Mas também há heróis, uns mais reais do que os outros, mas todos protagonistas de momentos de glória e aventuras épicas reveladores da bravura dos escoceses. Ora, é neste caminho pedregoso,  pouco depois do Inversnaid Hotel, que se situa o suposto esconderijo de Robert Roy MacGregor, mais conhecido por Rob Roy, do clã MacGregor, um rebelde jacobita escocês nascido em 1671. De acordo com a lenda ter-se-á tornado um salteador muito popular que, qual Robin dos Bosques, roubava aos ricos para dar aos pobres. Um herói, portanto, ainda que fora da lei. Claro que só se tornou fora de lei depois de, após ter lutado, e sido derrotado, ao lado dos jacobitas pela restituição do reino aos Stuarts, lhe terem expropriado as terras.

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O esconderijo, conhecido como Rob Roy's Cave, por onde temos a honra de passar, é uma espécie de gruta formada por blocos rochosos, e não poderia ficar situada em local mais inóspito e inacessível. Precisamente neste local, onde há um declive de rochas particularmente agressivo, cruzamo-nos com uma senhora que vem em sentido contrário a quem perguntamos se ainda há muitos pedregulhos para ultrapassar... e que nos responde que, até ao final da etapa, ia ser quase sempre assim ou pior. Great!

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De facto, foram mais seis ou sete quilómetros diabólicos, até nos afastarmos das margens do lago em direção ao interior. O caminho torna-se menos pedregoso, mas nem por isso muito mais suave. O piso é desconfortável e tem bastante subida. 

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Uma pequena placa indica que ali perto se pode apanhar um ferry, o Ardlui Ferry. Indica também que, na outra margem, há um hotel com o mesmo nome, bem como uma loja, um camping, uma lavandaria e duches. Um excelente local para pernoitar, certamente. De ferry ou de cais é que não havia sinal. Além da estranheza perante a existência de um barco num local onde só passam os caminheiros do WHW. Mas na Escócia profunda tudo é possível. Posteriormente, deslindámos o mistério. O barco faz o transfer de clientes de e para o hotel e é chamado através de um peculiar sistema em que o hóspede faz subir uma bola vermelha para o topo de um mastro, como se içasse uma bandeira. E esta? 

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Passamos por um bothy, onde alguns caminheiros já nossos conhecidos já se instalaram para passar a noite. Bothies são pequenas e simples casas de pedra que servem de abrigo a quem passa. Originalmente, eram usados por trabalhadores do campo ou outros, atualmente podem ser usados por qualquer pessoa. Estão sempre de porta aberta e são gratuitos, apenas oferecendo as comodidades mais rudimentares. Existem vários espalhados pela Escócia, invariavelmente, em sítios inóspitos, sendo geridos pela Mountain Bothies Association e a sua utilização obedece a um conjunto de regras de conduta, que todos cumprem.

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Para compensar todo o desespero causado pela dificuldade do caminho, que entretanto estava a consumir muito mais tempo do que o previsto, as vistas e toda a envolvente nunca deixaram de nos encantar. Há que manter o pensamento positivo pensando no privilégio que é podermos fazer parte daquela paisagem única. 

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Por esta altura, já quase perdemos a esperança de chegar ao alojamento a tempo de jantar. A única hipótese que teríamos de jantar! Paciência! Algo que esta atividade nos ensina é que por mais que seja posto à prova, o ser humano tem uma capacidade quase infinita de se adaptar. E aquilo que num momento é essencial, rapidamente passa a secundário ou mesmo a dispensável. Naquele momento o importante era chegar (inteiros) ao nosso destino, onde nos esperava um duche e uma cama para um descanso reparador.
      
Começamos, finalmente, a descer para Inverarnan. O parque de campismo Beinglas Farm, por onde passamos, indica que estamos prestes a chegar. Do Beinglas Camping o mínimo que se pode dizer é que é uma instituição do caminho. Principescamente situado perto do Loch Lomond, na base do Ben Glas, é muito popular junto dos caminheiros, pois oferece um conjunto muito completo de estruturas de apoio - WC, duches, facilidades para cozinhar, restaurante, café, pub e uma loja. Tudo isto, rodeado por um cenário idílico: montanhas, loch, zonas verdes... um spot mítico para quem faz o caminho e um local de pernoita muito frequentado. 

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Nós optámos por ficar na Drover's Inn, uma estalagem (adoramos as estalagens escocesas) que conta mais de três séculos. É obra! Com o devido, e merecido orgulho, fazem gáudio em publicitar que o seu pub foi eleito Scottish Pub of the Year em 1705... A qualidade que vem de longe, não duvidamos. Por fim, mas não menos importante, é o alojamento supostamente mais assombrado na Grã-Bretanha, fama que a própria estalagem faz questão de publicitar. Além disso, o edifício é lindo e mantém a traça original. Dito isto, e com a um belo jantarinho escocês já na nossa mira (sim, contrariando os nossos receios, ainda encontrámos a cozinha aberta), todo o nosso cansaço e eventual pessimismo ficou pelo caminho e já só pensavamos na etapa seguinte.  

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De estalagem em estalagem.
Existem, por todo o Reino Unido, muitas estalagens (inns) muito antigas. Cheias de histórias acerca de hóspedes menos ou mais famosos, são sobreviventes de um tempo em que as pequenas deslocações, mesmo as mais curtas, reclamavam que se pernoitasse fora. Muitos desses alojamentos situam-se em zonas rurais, literalmente, no meio de nenhures, sendo instalações modestas, já que a sua finalidade não era turística. A Drover’s Inn recebe o seu nome, precisamente, por albergar drovers, aqueles que, noutros tempos, transportavam o gado de terra em terra, neste caso, das highlands para as lowlands. Era uma vida dura. Por dia, percorriam apenas cerca de 10 milhas, o mínimo que evitasse que os animais perdessem peso e, por conseguinte, valor de mercado. Qual 007, tinham permissão para usar pistolas e punhais para proteger o gado de eventuais salteadores. Conheciam as terras como as palmas das suas mãos, sabiam quais as estradas mais fáceis para atravessar as montanhas, onde estavam os melhores pastos e quais os melhores sítios para pernoitar. Muitas vezes, dormiam sob as estrelas… embrulhados nos seus xadrezes. Andarão alguns ainda a vaguear pela Drover’s Inn? Nós não encontrámos nenhum.