West Highland Way: Etapa 1 | De Milngavie a Drymen (19 Km)
“(...) um sonho do que se poderia ver se a janela abrisse, que nunca é o que se vê quando se abre a janela.”, Alberto Caeiro
Mull Guy e Drimmen. É assim que se pronunciam as localidades de partida e de chegada desta etapa e ai de quem ouse fazê-lo de forma diferente. Os escoceses não perdoam, fazendo até questão de não perceber!! Portanto, quem quer garantir que chega a bom porto, tem de treinar a pronúncia. É em Milngavie a partida oficial, junto ao obelisco no centro da localidade. É aí o quilómetro zero, uma vez que o caminho é feito de sul para norte. A vila fica a sensivelmente 10 km do centro de Glasgow, a maior cidade da Escócia, sendo, portanto, um subúrbio e vila dormitório, já que é para aquela cidade que se vai trabalhar e estudar todos os dias. É servida por caminho de ferro, o que permite acesso rápido e fácil a Glasgow, portanto, foi de comboio que chegámos a Milngavie, vindos de Glasgow, onde tínhamos pernoitado, após viagem de autocarro a partir do aeroporto de Edimburgo.
![]()
Junto ao obelisco há um supermercado, onde se pode comprar o passaporte oficial, bem como alguns mantimentos para o dia ou outra compra de última hora. O caminho leva-nos por zonas quase despovoadas, havendo pouquíssimas lojas ao longo de todo o percurso! Particular atenção para o abastecimento de água! A pouca distância que separa esta pequena vila da maior cidade escocesa faria supor uma vila confusa e repleta de edifícios próprios de subúrbio. Nada mais errado. Trata-se de uma vila pacata e cheia de charme, de ambiente rural, rodeada de belíssimas zonas verdes, onde nos cruzamos com os locais a passearem os seus cães ou a fazerem o seu jogging ou caminhada matinal. Também nos cruzamos com muitas crianças a brincarem ou, surpreendentemente, a irem para a escola… sozinhas! Crianças de escola primária.
![]()
Está na hora de começar. São 9h30, o tempo está bom, não há sinais de chuva, o céu está ligeiramente nublado. Ótimo para caminhar. Saímos pelo caminho Local Clyde Coastal Path que passa nos limites do Mugdock Country Park, uma zona verde espetacular com cerca de 16 quilómetros de extensão, cobrindo uma área de 260 hectares. Que local extraordinário para descontrair e apaziguar os nossos espíritos ainda um pouco ‘alvoroçados’ pelo entusiasmo do arranque para esta grande aventura. Foram vários meses de preparação, é natural que haja algum 'nervoso miudinho'.
A arte no caminho.
É comum, nestes grandes trilhos, encontrar elementos simbólicos, sejam homenagens, mensagens, ou apontamentos de arte. Logo no início, encontramos dois projetos artísticos escultóricos: Home, de Alex Allan, e Scholars Rocks, de Rachel Mimiec, ambos de 2019. O primeiro, um conjunto de pequenas casas, inspiradas nas antigas cottages vernaculares de Milngavie, que em tempos terão sido habitações ou locais de trabalho. Algumas até ostentam o nome do trabalhador e respetiva indústria. Já as peças de Rachel Mimiec são inspiradas em artefactos cerâmicos da zona. Ambos os trabalhos funcionam como indicadores do caminho.
![]()
![]()
À nossa volta tudo é verde e tranquilo. Vamos passando por pequenos lagos e cursos de água e vamos apreciando a rica variedade de árvores, arbustos e flores. Os rododendros, infelizmente uma planta muito invasora, enchem-nos a vista de cor. Chegamos à Carbeth Hutters Comunity, que configura uma iniciativa muito curiosa com origem já no século XX, nas primeiras décadas. Desde logo, porque surgiu da boa vontade do proprietário daquelas terras, Allen Barnes-Graham, ao permitir que os ciclistas do Clarion ali acampassem e fizessem o seu encontro anual. Os campistas acabaram por construir uma estrutura permanente de madeira para entretenimento e para guardarem as tendas. Chegaram a estabelecer-se lá 40 acampamentos, entre sufragistas, grupos religiosos e outras organizações. Foi ali que muitos jovens, que mais tarde se notabilizariam no mundo da política, da educação, ou da escalada, encontraram inspiração. Foi também naquele chão que nasceram clubes de montanhismo famosos, como o Creagh Dhu, Lomond, e Ptarmingan, e que foram lançadas as sementes para os parques nacionais na Escócia, ou que se prepararam homens para irem para Espanha combater o fascismo no final dos anos 30. Em 1918, depois da 1ª Grande Guerra Mundial, foi permitido que as pessoas de Glasgow e do Clydebank ali construíssem cabanas, para poderem escapar à poluição do vale do Clyde. Em 1941, mais cabanas foram construídas para realojar famílias, no seguimento do Clyde Blitz (raides aéreos conduzidos pela Lufftwaffe no Clydebank). Na década de 1950, Carbeth viveu o seu primeiro auge, com 250 cabanas, um salão de chá, lojas, etc. A propriedade foi comprada em 2013 pela comunidade e conta atualmente com 177 cabanas. Os visitantes são bem-vindos. São estas curiosidades que vão tecendo o caminho e fazendo dele algo mais do que uma sucessão de paisagens bonitas.
![]()
![]()
Vamo-nos cruzando com outros caminhantes, nem todos a fazer o WHW, pois há muitos percursos pedestres na Escócia. Um pequeno conjunto de carros estacionados no meio de nenhures é sinal de que dali parte um qualquer trilho. Num país predominantemente verde e com tantas paisagens idílicas, é compreensível que tantas pessoas se entreguem a atividades de ar livre. O John Muir Way é um desses caminhos que se cruzam com o nosso.
![]()
![]()
![]()
![]()
![]()
Vislumbramos, ao longe, uma destilaria. A chaminé, a fazer lembrar um pequeno pagode, não deixa margem para dúvidas. Glengoyne. Highland Single Malt Scotch Whisky. Whisky, água da vida para os escoceses. Também faz parte do caminho, pois então, misturando-se o edifício com a paisagem e fazendo pendant com a colina que lhe dá o nome, Dumgoyne, em pano de fundo. Fazemos um pequeno desvio e vamos visitá-la. Aproveitamos para reabastecer os cantis, ir ao WC, trincar um snack e descansar um pouquito. Ah, e para um breve convívio com outros caminhantes. Algumas caras já começam a ser familiares. Iremos todos juntos até ao final? Ainda é cedo para saber.
![]()
Pouca terra, pouca terra…
Seguimos viagem e, um pouco mais à frente, o Beech Tree Café promete comidinhas e bebidinhas reconfortantes. Uma estátua homenageia Ecky Johnstone, que percorreu o WHW 12 vezes. É obra! Um simpático caminhante fez questão de nos tirar uma foto.
![]()
![]()
Estamos, segundo um painel informativo, sobre um terreno onde, em tempos, houve uma linha férrea, que levava as pessoas para trabalhar em Glasgow, mas que demorava “anos” a lá chegar. É também ali que estão enterradas as tubagens que, diariamente, levam 18 milhões de baldes de água do Loch Lomond, ali muito perto, para abastecimento da Escócia Central.
Pouco depois, deparamo-nos com uma honesty box, algo que ainda é possível encontrar nas zonas rurais e pouco populosas da Escócia. Assentam nos princípios da confiança e honestidade, disponibilizando variadíssimos produtos, ficando o pagamento e respetivo troco a cargo do ‘cliente’, sem qualquer controlo. Esta estava instalada numa antiga cabina telefónica e continha snacks e bebidas. Aparentemente, ninguém rouba e ninguém deixa de pagar. É impressionante! Encontrámos várias durante o caminho.
![]()
![]()
Estamos em plena zona rural, um letreiro pede aos donos de cães que os passeiem pela trela, pois podem aparecer galinhas. Quem diria que estamos tão perto de Glasgow? A estrada é ladeada por dois ‘muros’ de flores silvestres. Parecem jardins. Tudo porque os municípios são incentivados a manter ao máximo a vegetação autóctone como forma de garantir refúgio e alimento a abelhas e outros polinizadores. A Humanidade agradece!
![]()
![]()
![]()
Bem-vindos a Drymen (pronunciado Drimmen).
Os escoceses são amigos do ambiente, em particular nas zonas rurais e mais remotas (sítios a que eu, carinhosamente, chamo ‘berças’), e gostam de manter as suas vilas impecáveis. E não são de cruzar os braços, à espera que alguém resolva os seus problemas. Por isso, se o dono de um cão não teve cuidado, o devido ralhete não se faz esperar… e não é feito com falinhas mansas.
![]()
![]()
A primeira etapa está a chegar ao fim, fazemos um desvio de 800 metros, e chegamos a Drymen que, segundo um cartaz no centro da vila, se pronuncia Drimmen. Amigos, amigos, pronúncias à parte, que eles não gostam de confusões. Drymen é uma vila pacata, mas muito procurada, pois é a porta de entrada para o East Loch Lomond (ai, o Loch Lomond). Já no final do século XVIII era um importante ponto de paragem para os almocreves das Terras Altas. Atualmente, é um centro turístico (embora não pareça), frequentado por quem procura atividades ligadas ao loch, mas também aos diferentes caminhos que ali se cruzam. O WHW, que contorna a vila, o Rob Roy Way, que parte dali e vai até Pitlochry, e o John Muir Trail ou a National Road 7, que por ali passam.
Feito o check in no hotel e tomado o reconfortante duche, lá fomos ter com o jantar, cautelosamente reservado algumas semanas antes, na Clachan Inn, cuja antiguidade remonta a 1734. Sem reserva, teríamos ficado sem jantar, tendo em conta a enchente de pessoas…
![]()
![]()
![]()
![]()
Nota breve: Nestas zonas da Escócia, convém acautelar as refeições antecipadamente, pois a oferta é escassa e as alternativas aos poucos restaurantes são quase inexistentes.
A estalagem tem dois espaços distintos, pub e restaurante. O pub fervilha de gente, a maioria, locais. Todos falam com todos. É uma animação. O jantar, de ementa tipicamente escocesa, com destaque para os famosos haggis, não estava nada mau.
Primeira etapa, done! Temperatura agradável durante todo o dia, ausência de chuva, piso confortável e sem subidas ou descidas dignas desses nomes. Paisagens bonitas, desde o primeiro quilómetro e a superar bastante as expectativas que tínhamos relativamente a esta específica etapa. Consideremo-la uma espécie de aquecimento para o que se seguirá.
Profissionais da caminhada…
Guardo algumas notas finais para falar das pessoas, parte muito importante de qualquer caminhada de longo curso. Não há multidões, mas cruzamo-nos constantemente com outros caminhantes. Pessoas de todas as idades e a dar sinais evidentes de que são habitués da caminhada. Verdadeiros profissionais do exercício! Maioritariamente ingleses e escoceses, mas também alguns americanos, franceses, australianos, brasileiros, espanhóis… uma família de portugueses. Pessoas sozinhas, pais com filhos, mães com filhas, famílias inteiras, pessoas com cães. Raros ciclistas. Crianças, zero.
![]()
Hello, Portugal!
Do conjunto de emblemas cosidos nas nossas mochilas que, por sinal, fizeram o maior sucesso, houve um que denunciou a nossa nacionalidade: a nossa bandeira. Pretexto para irmos trocando algumas palavras sobre o nosso país, que poucos tinham visitado e que adorariam visitar. De repente, há todo um sentimento de orgulho que toma conta de nós cada vez que dizemos “We are from Portugal”. A palavra Portugal abriu-nos, de facto, as portas da hospitalidade e da simpatia junto de todos aqueles com quem interagimos. O mais exuberante de todos era um senhor escocês, super divertido e bem humorado, cujo nome, mais tarde, soubemos ser Graig, que nos cumprimentava com um sonoro “Hello, Portugal!”, sempre que nos encontrava. Acompanhado pelo filho, esta era a segunda vez que se fazia ao caminho, depois de uma primeira tentativa fracassada em 2022. Pelo que nos contou, faltaram-lhe as pernas ao fim de três etapas.