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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

10.07.23

PR5 OFR Rota das Poldras | Souto de Lafões


Emília Matoso Sousa
Data | 20 de Maio 2023
 
O percurso | 8,5 Km ( fizemos 14,49) | 475 m ganho elevação | Difícil 
Localidade | Souto de Lafões, localidade pertencente à União de Freguesias de Oliveira de Frades, Souto de Lafões e Sejães, concelho Oliveira de Frades, distrito de Viseu.
Pontos de interesse | Rio Vouga; Cascata do Varoso; Ponte de Cunhedo; Poço da Sertã; Ribeira de Varzielas; Poldras

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Um percurso dedicado a poldras tinha, desde logo, fortes probabilidades de figurar no meu top 10 de melhores trilhos. E não me enganei. Não tanto pelas poldras, mas pelas magníficas envolventes ribeirinhas do rio Vouga e da ribeira de Varzielas. Foi também o mais difícil que fizemos até hoje. Mas valeu cada centímetro das muitas subidas e descidas insanas! 
O início é junto à igreja de S. João Batista, em Souto de Lafões. Por caminhos rurais, vamos saindo do núcleo urbano. As poldras da igreja são as primeiras que temos de atravessar. Poldras dignas de 'catálogo' tal a sua perfeição. Vamos avançando, passando por algumas quintas e casas isoladas com as suas hortas e campos cultivados e pela Fonte dos Frades, que mais parece um tanque público. 

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Segue-se uma zona florestal, onde predominam castanheiros e carvalhos, com um piso particularmente bem forrado de folhas castanhas, o que torna o caminho muito bonito, além de confortável. A certa altura, a vegetação torna-se mais densa e verdejante, devido a uma levada, que vamos acompanhar durante um pequeno trajeto.20230520_095813.jpg20230520_100215.jpg20230520_100304.jpg20230520_105014.jpg

Mais à frente, uma cancela fechada significa que vamos atravessar propriedade privada. Acontece, por vezes. Simpaticamente, os donos informam-nos, através de um letreiro, que os "cães são meigos". E eram. Junto à cancela de saída, lá estavam eles à nossa espera com um ar muito bem-disposto.

20230520_105205.jpgHá ainda um apontamento engraçado nesta primeira parte do caminho. Uma pequena mota abrigada sob o telheiro de uma capelinha no meio de nenhures, com a chave inserida na ignição. E também com um capacete em cima. Seria uma mota comunitária? 

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Chegamos a uma estrada asfaltada, que atravessamos. Um conjunto de carros ali parados anuncia a existência de uma fonte e aproveitamos para recarregar os cantis. E, a partir de agora, termina a boa vida, já que os próximos trajetos vão exigir de nós concentração máxima, destreza física, e até alguma força. Para já, uma placa informativa manda-nos galgar o raile da estrada e 'mergulhar' por entre densa e alta vegetação pela ribanceira abaixo. "Desistir, nunca!" tem sido o nosso lema até agora e, portanto, lá penetramos naquela espécie de mato e "seja o que Deus quiser". Tentando (e conseguindo) não escorregar, chegamos perto do rio Vouga, onde é possível observar a foz do rio Varoso e a sua fantástica cascata. O leito verde escuro do Vouga, que ali corre sereno, faz um contraste bonito com a rocha e com a palete  de verdes da sua frondosa galeria ripícola. Tão frondosa que quase não deixa ver o rio.

20230520_111341.jpg20230520_111901.jpg20230520_112405.jpg20230520_113239.jpgEstamos em terreno pedregoso, irregular, muito inclinado e escorregadio. Continuamos a ladear o rio e a descida está a tornar-se demasiado técnica para o nosso gosto. Qualquer 'desatenção' pode significar uma queda perigosa. Uma escada de madeira ajuda-nos a transpor um declive mais acentuado. Instintivamente, em silêncio, vamos sustendo a respiração como se isso evitasse alguma escorregadela. No total, não percorremos mais do que 400 metros... que parecem quatro mil. Para ajudar à festa, galhos de silvas nascem de todos os lados para se agarrarem às nossas roupas e à nossa pele.  

Finalmente, chegamos à Ponte do Cunhedo,  reencontramdo a estrada que, alguns metros atrás, o atribulado atalho nos fizera abandonar. Uma ponte do século XVI sobre o rio Vouga, cuja construção veio permitir a ligação entre as duas margens, algo que antes era feito um pouco mais adiante, a vau ou sobre umas poldras altas e perigosas. Trata-se de uma ponte em granito com três arcos, bastante interessante, apesar de apresentar marcas de várias obras de recuperação. Naturalmente, há uma lenda associada. Consta que eram os frades do convento de São Cristóvão de Lafões quem mais utilizava as poldras. Ora, para tornar a travessia mais confortável, contruiram uma espécie de ponte de madeira sobre as poldras. Uma ponte frágil, que não resistiu a um temporal de inverno, tendo sido arrastada pelas águas do rio. Precisamente na altura em que por lá passava um frade missionário montado no seu burrito. E não é que ambos se salvaram, para grande espanto dos demais frades do convento (e nosso também)? Como? Não se sabe, pois o frade vinha a dormir e não deu por nada, pelo que o caso foi considerado milagre, atribuído ao mártir São Cristóvão que, em tempos, já demonstrara competências nestes 'terrenos', ao transportar o Menino Jesus nos ombros na passagem de um caudaloso rio. Assunto explicado e encerrado!

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Continuamos a ladear o Vouga, seguindo o Percurso Interpretativo do Cunhedo, que consiste num conjunto de painéis com informação relativa à fauna e flora da zona. Chegamos ao Porto de Areias, onde ainda são visíveis as poldras que, noutros tempos, eram usadas para chegar à povoação de Covelas. Foi aqui que encontrámos um pescador desportivo que nos queria presentear com uns belos barbos acabadinhos de pescar. Não tínhamos como levá-los, não pudemos aceitar.

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Foi também aqui que, devido a uma conjugação de 'falhas', tomámos um rumo errado, o que nos valeu um desvio de cerca de dois quilómetros. Ou seja, a placa indicativa da direção a seguir está colocada num desvio que não se apresenta pela nossa frente, exigindo que nos voltemos para trás para a descobrirmos; além disso, o desvio onde a placa se encontra estava quase tomado por vegetação; por último, seguimos a regra de que na ausência de placa, o caminho é em frente. Para quem é da zona, meia sinalização basta, para quem não é, as placas nunca são de mais. 

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Se esta ribeira falasse...
Íamos agora percorrer o vale da ribeira de Varzielas, onde iríamos poder ver o Poço da Sertã,  cascatas, poldras... tudo isto abrigado pela mais luxuriante vegetação. Na verdade, uma sucessão de recantos mágicos, cada um mais encantador do que o outro. De tão bonito, quase não dá para acreditar no que os nossos olhos veem. É como se de repente, qual Alice, tivessemos entrado no País das Maravilhas, onde não nos admiraríamos se encontrassemos algumas das estranhas criaturas de Carroll.

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É, provavelmente, o sítio mais bonito que nos foi proporcionado pelos percursos pedestres que temos feito. Em compensação, é o que apresenta o maior grau de dificuldade. A Lei das Compensações é terrível... O Poço da Sertã é incrível e a cascata é linda! De tal forma que até tem direito a um miradouro de madeira de onde se pode contemplar confortavelmente e em segurança.

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É esta a zona mais complexa do trilho, com declives muito acentuados e com muitas rochas e pedregulhos que temos de trepar. Felizmente, nos pontos mais problemáticos há cordas para nos içarmos, cabos para nos agarrarmos e até escadas de madeira. Menos mal. Quando pensamos que o 'pior' já passou e que já não há mais obstáculos, eis que se seguem mais dois ou três... É de cortar a respiração. Pelo esforço físico necessário e pela beleza de tudo o que nos rodeia. A sucessão de cascatinhas, de pequenas lagoas, o barulho das águas da ribeira a despenhar-se nas rochas, o ambiente sombrio e misterioso proporcionado pela folhagem larga das árvores frondosas, os fetos variados e gigantes... Maravilhoso! Até nos esquecemos de que pela frente temos ainda muito que trepar.

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Ruínas de vários moinhos são sinais da vida que por ali já existiu. E que vida! Quantos homens e mulheres terão percorrido aquele 'caminho' na sua labuta diária? Quantas sacas de farinha terão levado daqueles moinhos para fazer o pão, base da sua alimentação? Quanto tempo levariam a percorrer aquele caminho que, para nós, é tão difícil? Como seria percorrê-lo no inverno? Se aquela ribeira falasse, que histórias teria para nos contar? Como seria a vida daquelas pessoas? É difícil imaginar, sobretudo se o tentarmos fazer à luz dos padrões atuais, que temos como adquiridos e dos quais tantas vezes nos queixamos... Tudo é relativo nesta vida, essa é que é a verdade.

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Chegados ao topo, ao mundo normal, quase não acreditamos naquilo que deixamos para trás, como que escondido. Um lugar secreto, um autêntico Reino de Nárnia.  
Ainda faltavam as poldras do 'Coixo', designação popular para a ribeira de Varzielas. Umas 'senhoras' poldras, constituídas por enormes e desordenadas pedras, repleta de vegetação. Tábuas e cabos de aço tornam-nas mais transitáveis. Mais uma subidinha, rodeados de matagal até ao pescoço (ai, a bicharada!!!), e chegamos a uma estrada de asfalto. Dali, até à igreja, ponto de chegada, é um pulinho.

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Em jeito de avaliação, este é, inquestionavelmente, um trilho fantástico, apesar dos dois trajetos de grande dificuldade. Mais uma vez verificamos que quanto mais difícil, mais bonito. Felizmente, ainda existem pequenos redutos onde a natureza se encontra em estado puro. Talvez a dificuldade de acesso desincentive o homem de ali deixar a sua marca, tantas vezes nefasta e destruidora. Que assim se mantenha!

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A única nota negativa vai para a falta de limpeza de alguns troços do caminho... quase obstruídos pela vegetação. 
A empreitada de hoje terminou em Oliveira de Frades para o habitual petisco. Mas o ponto alto deste final de dia foi a visita ao Museu Municipal da vila, onde fomos simpaticamente recebidos e guiados numa interessante visita ao passado daquela zona. Saímos de lá com algumas (boas) dicas para visitas futuras. Oliveira de Frades promete e espera por nós!

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Nota sobre o Rio Vouga - Nasce na Serra da Lapa, a cerca de 930 metros de altitude e percorre 148 Km até desaguar em Aveiro. O seu curso desenvolve-se em três regiões distintas, que lhe conferem caraterísticas também distintas: na Serra da Lapa, é rio de planalto, correndo entre terrenos graníticos; em Lafões, é rio de montanha, correndo entre a Arada e o Caramulo; e finalmente, já perto de Aveiro, é um rio de planície. No médio Vouga, os rios principais são o próprio Vouga e, de montante para jusante, o Mel, o Troço, o Sul, o Varoso, o Teixeira e o Alfusqueiro. No inverno, as cheias frequentes engrossam o seu volume, enquanto que no verão o seu caudal se torna insignificante, permitindo a passagem a vau entre as duas margens.