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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

29.05.23

PR5 GVA Rota do Vale de Cadela


Emília Matoso Sousa
Data: 10 de abril 2023
O  percurso
13,4 Km  |  Circular |  469 m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Curral do Negro; Tapada de Sta. Cruz; Mata da Câmara 
Localidade
Gouveia | Cidade do distrito da Guarda.
E de novo o silêncio cresce a toda a volta, desde a montanha que fico a olhar até me doerem os olhos. Olho-a sempre, interrogo-a (...) Um diálogo ficou suspenso entre nós ambos desde quando? Desde a infância talvez, ou talvez desde mais longe.” Vergílio Ferreira, Alegria Breve
O percurso de hoje leva-nos à descoberta de algumas belezas naturais que envolvem o território de Gouveia, enquadradas no Parque Natural da Serra da Estrela e no Geopark Estrela (Mundial da UNESCO). O que se pode esperar de uma cidade que se situa a 700 metros de altitude, numa encosta da serra mais alta de Portugal Continental? Horizontes a perder de vista, paisagens deslumbrantes e natureza… No mínimo!

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Propõe-nos o percurso uma viagem pela biodiversidade local com passagem por quatro 'estações'. A partida é do Curral do Negro, a três quilómetros do centro de Gouveia, e a sensivelmente 900 metros de altitude, já a caminhar para o andar intermédio da serra. Trata-se de um espaço florestal bastante agradável, ali mesmo, às portas da cidade, ótimo para passear ou fazer um piquenique no meio de castanheiros, carvalhos, faias, bétulas, pinheiros-bravos e outras espécies arbóreas. Para os apreciadores de campismo, há ali um pequeno parque que tira todo o partido da excelente localização. Esquilos-vermelhos e pica-paus, que fazem parte da fauna local, é que não tivemos a sorte de vislumbrar.

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Um pouco mais acima, já em pleno andar intermédio do Parque Natural da Serra da Estrela, situa-se a Tapada de Santa Cruz, que se estende por cerca de um quilómetro e que apresenta uma vegetação constituída maioritariamente por matos de espécies arbustivas, com destaque para as giestas, também conhecidas por maias.

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Ribeira Ajax: Água é força, é energia, é vida.
Avançamos, em descida, na direção da Mata da Câmara, um troço muito aprazível, com árvores autóctones e animada pelo som da ribeira Ajax, ou ribeira de Gouveia, a que aqui nos juntamos e nos irá acompanhar até ao perímetro urbano da cidade. Ouvimo-la correr, vemos a sua fantástica galeria ripícola, onde predominam os carvalhos e os castanheiros, mas quase não a conseguimos ver, camuflada que está pela densa vegetação. 

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Tivemos novo encontro com ela, desta vez num recanto paradisíaco, onde também são ainda visíveis vestígios de antigos moinhos de rodízio. Atravessamos a ribeira, com mil cuidados e com a ajuda de cabos lá existentes, pois tem de  se caminhar sobre umas pedras muito irregulares e escorregadias, e seguimos viagem.

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Passamos pelo que resta da Casa da Luz, hoje não mais do que uma imagem romântica e ‘apagada’ de um tempo em que produziu energia para a indústria têxtil local, ajudando-a a prosperar até se tornar uma das mais importantes do país. Isto, entre a segunda metade séc. XIX e a primeira do séc. XX. Tudo com a ajuda da ribeira Ajax, obviamente.20230410_121220.jpg20230410_121248.jpg20230410_121317.jpg20230410_121406.jpg

A par do seu aproveitamento hidráulico para produzir energia, as águas da Ajax também dão vida aos campos agrícolas da zona, missão que é cumprida por meio de uma levada antiga que nos ladeia durante um troço do percurso.

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Depois de passarmos pela Mata da Cerca e pelo seu anfiteatro, chegamos ao perímetro urbano, do qual rapidamente nos afastamos de novo, rumando ao Parque Ecológico, junto ao qual se situa o CERVAS (Centro de Ecologia, Recuperação, Vigilância e Animais Selvagens). Um parque criado em 1999 que pretende sensibilizar para a proteção das espécies de fauna e flora da zona. Permite ainda a observação de javalis, gamos, veados, bem como de outros mamíferos, aves e répteis. Estava encerrado para a realização de obras de requalificação, pelo que apenas conseguimos ver uns veados ao longe. 

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Uma paisagem desoladoramente bela.
A partir daqui ia ser subir, subir, subir. A pior parte do percurso. Ou a melhor, dependendo do ponto de vista. A primeira parte, ligeiramente ‘técnica’, por ser íngreme e pedregosa. Entramos numa zona dominada por formações graníticas de formas e dimensões diversas. Granito por todo o lado. E arbustos queimados, em resultado de um incêndio aparentemente recente. É doloroso observar como, ano após ano, incêndio após incêndio, a paisagem da serra se vai alterando. É verdade que mantém a sua imponência e beleza; é verdade que, a seu tempo se regenerará e reinventará numa miríade de novas paisagens; mas também é verdade que neste ‘processo’ se perdem tesouros de valor inestimável, quer ao nível da flora, quer da fauna.

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As vistas vão-se tornando cada vez mais amplas e incríveis. Já quase no topo, um miradouro convida a uma paragem. Uma paragem simplesmente para desfrutar. Olhar em volta, para a imensidão do que a nossa vista alcança, e para o leque de cores que nos rodeiam ou, simplesmente, fechar os olhos e sentir, ouvir, e cheirar a natureza. Um deleite para os sentidos e uma experiência difícil de descrever. 

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Chegamos novamente ao Curral do Negro e, no agradável e acolhedor bar do parque de campismo, tomamos uma bebida refrescante como que a adiar a hora de deixar aquele lugar tão apaziguador.

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19.05.23

PR1 GVA Rota dos Galhardos


Emília Matoso Sousa
Data: 18 de abril 2023
O  percurso
13,22 Km  |  Circular |  500 m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Calçada medieval; Calçada Romana 
Localidade
Folgosinho | Freguesia do concelho de Gouveia, distrito da Guarda.

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Descansemos aqui… e vamos tomar um folgosinho de ar!”
As palavras terão sido proferidas por D. Afonso Henriques… ou D. Sancho I (não se sabe bem), dirigindo-se aos seus homens, quando ali pararam para um breve descanso, enquanto perseguiam uns mouros em fuga. Ali, naquele lugar magnífico com ar puro e águas cristalinas. Ali, em Folgosinho, que assim passou a chamar-se.

20230411_152201.jpg20230411_150355.jpg20230411_150415.jpgTerá acontecido assim? É o que a lenda diz. Quanto ao ar puro, outra coisa não seria de esperar desta linda Aldeia de Montanha tão bem situada na encosta norte da Serra da Estrela, a 930 metros de altitude. Quanto às águas cristalinas… são, certamente, de grande qualidade, tendo em conta a forma como é homenageada através de inúmeras quadras populares distribuídas pelas paredes da localidade. Destaco a vistosa fonte, no largo principal, que, num tom ‘brincalhão’, assegura que “Água e mulher, só boa se quer». Uma frase que ‘machucará’ as atuais sensibilidades, mas que faz parte da história daquela fonte e como tal deve ser entendida. 

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 Mas voltemos às lendas e aos mitos. Viriato. O valente líder lusitano que ‘despachou’ nada menos do que quatro exércitos romanos. Pois é, consta que nasceu em Folgosinho.  
Depois, há essa grande instituição chamada O Albertino. Um restaurante quase lendário, portanto, que atrai multidões a esta pacata aldeia da Beira Alta. Alguém sabe o segredo? Eu sei, mas não conto!

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Em frente, a toda a largura, o ondeado da montanha. O Sol embate contra ela, desnuda-a até à aridez. Vejo-a desdobrar-se desde a aldeia até ao alto, com grandes matas escuras, erguer-se ainda em grandes massas até ao céu queimado.”, Vergílio Ferreira, Para Sempre
Calçadas que vêm de longe…
Tendo Folgosinho como pano de fundo, a Estrela iria hoje mostrar-nos algumas pérolas do seu património geológico e cultural. Íamos calcorrear duas impressionantes calçadas, uma medieval, a da Serra de Baixo, ou dos Cantarinhos, e outra romana, a dos Galhardos, classificada como Imóvel de Interesse Público. Uma em cada vertente do vale da ribeira do Freixo, estas duas vias foram, desde há muitas centenas de anos, a conexão aos Casais de Folgosinho. Em busca do melhor que a natureza lhes podia oferecer para a sua subsistência, estes ‘casais’ ocupavam de forma dispersa áreas adjacentes a cursos de água, essencial para a agricultura e pastagens. Quase todas estas casas foram sendo abandonadas, mas tempos houve em que ali havia vida… e muito movimento. Os sulcos dos rodados de carros de madeira estão vincados naquelas calçadas para nos lembrar que entre o Homem e a Natureza, com maior ou menor equilíbrio, a relação sempre foi intensa.

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Subir a calçada ou subir a calçada?
Grande parte do trilho é feita sobre as calçadas, portanto, sem volta a dar, vamos ter de subir por uma e descer por outra. Optamos por subir a medieval (a da Serra de Baixo), respeitando o sentido recomendado. Saímos do miolo urbano de Folgosinho pelo lado dos tanques públicos e, durante cerca de um quilómetro, percorremos um caminho muito bonito em jeito de corredor , ladeado por arbustos e rochas. Passamos por algumas habitações dispersas. As vistas para o vale são muito bonitas, apesar das cicatrizes, ainda bem visíveis, dos devastadores incêndios de 2017 e, mais recentemente, de 2022. Marcas desoladores que, provavelmente, alterarão a paisagem para sempre. 
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20230411_112104.jpg20230411_113019.jpg20230411_113547.jpg20230411_113541.jpgAtravessamos a ribeira da Freita e chegamos ao início da Calçada da Serra de Baixo. Uma senhora calçada, por sinal! Olho para aquela ‘passadeira’ feita de enormes blocos de granito, em terreno bem inclinado e sem fim à vista, e sei que vou sofrer. Cerca de dois quilómetros, seguidinhos, sempre a subir… sobre pedregulhos irregulares.

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20230411_122507.jpg20230411_122011.jpgMentalmente, vou tecendo apreciações sobre aquela ‘fantástica’ via de comunicação. Sim, fantástica, porque antes da sua construção, percorrer aquelas encostas declivosas deveria ser muito mais penoso. Sim, já houve um tempo em que aquela calçada foi bem-vinda e festejada por aquelas comunidades como uma grande obra e um ‘investimento estruturante e fundamental para a melhoria da qualidade de vida daquelas pessoas…’. Terá havido cerimónia de inauguração com direito a discursos? 

20230411_122135.jpg20230411_121006.jpgO enquadramento não podia ser mais bonito (se nos abstrairmos das marcas recentes do incêndio). O vale, as encostas da serra repletas de formações graníticas, a paisagem a tornar-se mais imensa à medida que subimos. E a subida que nunca mais chega ao fim!! Cada vez mais, a Estrela mostra-nos a matéria de que é feita: rocha, granito, blocos de granito, caos de granito. É impossível, a quem vive neste território, ser imune a esta dureza. Dureza combate-se com dureza, com força de vontade, com resiliência (mais um termo da moda), e foi isso que estes homens e mulheres fizeram ao longo dos séculos. Assim funciona o ciclo. O meio que molda o homem, que molda o meio. Um ciclo que só é perfeito se houver equilíbrio. Passamos por uma casa de abrigo, verdadeira benção para quem, fustigado pela intempérie, merece uns momentos de tréguas. 

20230411_125038.jpg20230411_123647.jpg20230411_125835.jpg20230418_094528.jpgQuase a chegar àquilo que julgamos ser o topo da subida, deparamo-nos com um estradão. Será o da Grande Rota Aldeias Históricas (GR12), com o qual o nosso percurso há de coincidir, entre a Pedra Furada e a Portela de Folgosinho? Não! E aqui há que ter muita atenção, pois corre-se o risco de se perder o trilho. O estradão é para atravessar e seguir em frente… e para cima… 

20230418_100638.jpg20230418_100643.jpgEste troço do caminho é particularmente bonito e apetece parar constantemente para apreciar com tempo e calma. E também para recuperar o ‘folgosinho’. Entendo agora o comentário do rei! Nem quero imaginar o que seria perseguir mouros naquelas condições e, ainda por cima, com armas e armaduras. Vida de rei não era fácil naqueles tempos. Adiante! Os afloramentos graníticos vão-se tornando mais imponentes.

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E eis que descobrimos a Pedra Furada, assim denominada por ter uma perfuração que, segundo a lenda, servia para os mouros prenderem os cavalos. Faz sentido, até porque a pedra está mesmo ali à mão…

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Só uns metros à frente, atingimos o estradão da GR12. Entre bosques de bétulas e carvalhos, e área ardida, vamos avançando até ao ponto mais alto do nosso trilho, sensivelmente 1335 metros de altitude.

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Ali, onde tudo é pedra. Ali, onde o horizonte se abre em ângulos de quase 360º e nos oferece paisagens absolutamente esmagadoras. Ali, onde, num exercício de antropomorfismo, as geoformas graníticas foram apropriadas pelas pessoas e receberam nomes de gente. É o caso da Cabeça do Faraó, uma formação granítica que surge junto ao caminho, que tem a forma de uma cabeça humana que lembra a cabeça de um rei egípcio. Se tivesse sido esculpida por mãos humanas, provavelmente, não teria ficado melhor. Coisas da erosão!

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De bom grado, ali ficaríamos por algum tempo a usufruir daquele ambiente, mas ainda tínhamos muito chão pela frente. E uma extensão considerável desse chão (circa 2,5 Km), antevia-se pouco confortável. E muito fizeram os romanos, pois rasgar uma calçada na encosta de uma serra, não deve ter sido fácil. 
Pois bem, depois de umas voltinhas no panorâmico baloiço do Faraó, era hora de ‘atacar’ a calçada dos Galhardos. A tal que deve ter feito os romanos suarem as estopinhas, mas que, de acordo com a crença popular, terá sido construída numa noite de trovões por pequenos diabos ou galhardos. Daí, o nome. Tudo numa só noite. É obra!

20230418_122014.jpg20230418_123124.jpgÉ da Portela de Folgosinho que parte a calçada que nos vai levar até à sede da freguesia. Trata-se de um pequeno troço milenar, de cerca de três quilómetros, pertencente ao itinerário que, entre os séculos I a.C. e IV d.C., ligava as maiores cidades do ocidente peninsular imperial, Bracara Augusta (Braga) e Emerita Augusta (Mérida). Era, então, uma via fundamental de acesso aos Casais, relevância que manteve por muitos e muitos séculos.  

20230418_124334.jpg20230418_125836.jpg20230418_131038.jpgRealmente, é uma calçada dos Diabos! Desde logo, pelo ‘conforto’ do piso, pavimentado em blocos de pedra de configuração retangular e dispostos de forma irregular. Está implantada numa zona com alguma inclinação, descrevendo algumas curvas e sendo ladeada por formações rochosas. Mas é, de facto, espetacular! E, com toda a certeza, mais uma grande obra devidamente celebrada pelos utentes da época. Fizemo-la em sentido descendente, ótimo para quem gosta de descida, mau para o impacto nos joelhos. Andamento mais propenso a escorregadelas e tropeções. Atenção, portanto!

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Passamos por mais duas casas de abrigo. Construídas por volta de 1940, e de utilização gratuita, elas tinham a finalidade de abrigar pessoas e animais durante tempestades inesperadas. Ou seja, aquelas calçadas eram utilizadas ainda no século XX. Inacreditável!

20230418_123646.jpg20230418_123928.jpg20230418_132414.jpgJá mesmo na entrada de Folgosinho, ainda passamos pelo Parque de Lazer O Poção, onde há uma piscina magnífica de água natural… porém, fresquinha.

20230418_135029.jpg20230418_135053.jpg20230418_135140.jpg20230411_104114.jpgEste trilho superou muito as nossas expetativas e entrou para o top 10 dos nossos preferidos. Na verdade, as localidades são muito mais do que as suas ruas e as suas casas, da mesma forma que a paisagem natural ou rural não se esgota nas árvores e nos campos de cultivo. Folgosinho está rodeada de uma rica paisagem cultural rural de montanha, repleta de marcas de identidade que a tornaram única.

20230418_143755.jpg20230418_144051.jpg20230418_144121.jpgPara o dia ser mais-do-que-perfeito só faltou uma paragem n’O Albertino. Penso que, depois de subir e descer duas calçadas daquele calibre, temos o lastro adequado à ‘degustação’  ali proposta. (In)Felizmente, estava fechado para férias…

17.05.23

PR10 SEI Rota da Caniça (Lapa dos Dinheiros)


Emília Matoso Sousa
Data: 23 de abril 2023
O  percurso
(6,966 Km) (fizemos 11,28 Km)  |  Circular |  402m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado / difícil 
Observações 
A dificuldade deve-se, sobretudo, à subida 'técnica' que conduz ao buraco do Sumo. Os locais preferem fazê-la em sentido contrário. 
Pontos de interesse
Ribeira da Caniça; Praia fluvial Lapa dos Dinheiros; Quedas da Caniça; Cornos do Diabo; Buraco do Sumo; Buraco da Moura 
Localidade
Lapa dos Dinheiros | Freguesia do concelho de Seia, distrito da Guarda.
 

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Lapa dos Dinheiros, assim batizada por D. Dinis quando, numa passagem pela aldeia, foi surpreendido com um farto jantar pago com os ‘dinheiros’ dos anfitriões. Mais uma lenda, presumo...
É desta pequena aldeia de montanha, empoleirada numa das encostas da Serra da Estrela, a 700 metros de altitude, sobre o rio Alva e a ribeira de Caniça, que parte o percurso de hoje. E que percurso! Sem dúvida, um dos mais bonitos dos muitos que já fizemos.
Para quem, como eu, tem fascínio pela montanha, penetrar em alguns dos caminhos do Parque Natural da Serra da Estrela menos percorridos é motivo de grande excitação.
Sabendo que estes não são caminhos para principiantes, que isto de andar a pé tem que se lhe diga, só agora nos arriscámos a avançar para terrenos mais ‘acidentados’. E muito timidamente, para já, que a serra não é para brincadeiras. 
Afastamo-nos da igreja matriz e, pouco depois, entramos num bosque que mais parece um reino encantado. Uma zona verde magnífica, conhecida como Souto da Lapa e onde predominam os castanheiros. Castanheiros centenários que compartilham o espaço com outras espécies arbóreas (carvalho-robles, freixo…) e arbustivas (aveleiras, folhados, gilbaldeiros, azevinho…), entre as quais algumas raridades (azereiro, mostajeiro). Fetos, plantas e flores variadas compõem o cenário, cujo silêncio só não é respeitado pelo chilrear das aves. Um autêntico santuário de diversidade. A parte menos boa, é que todo este trajeto é feito em subida… Não há bela sem senão, lá diz o ditado.

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Atravessado o bosque, chegamos à praia fluvial da Lapa dos Dinheiros, situada na Ponte da Caniça. Uma praia de montanha, quem diria! Enquadrada pela paisagem do Souto da Lapa e também por enormes afloramentos graníticos, a praia ‘alimenta-se’ das águas da ribeira da Caniça, que ali é represada, criando uma área de banhos que mais parece uma piscina natural. Aliás, naturalíssima, se atentarmos à  transparência da sua água. O som da água a despenhar-se em pequenas cascatas selvagens entre as rochas é um convite a permanecer ali…

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Retomamos o nosso trilho e, uns metros à frente, fazemos um desvio que dá acesso às quedas de água da Caniça e ao buraco da Moura. Um desvio de cem metros que  mais parece de mil, por se tratar de um trajeto extremamente declivoso e muito pedregoso, com musgos e zonas húmidas e escorregadias. A vegetação, ali, tem caraterísticas ribeirinhas. É variada e densa, abundante, muito verde… parece uma pequena floresta tropical. A atmosfera é de alguma magia. Que bom saber que ainda existe natureza em estado puro! O buraco da Moura é uma espécie de gruta natural, criada pelo deslizamento e acumulação de enormes penedos de granito, com várias cavidades naturais a formar uma sequência de salas e galerias. Estudos arqueológicos ali desenvolvidos revelam que terá sido usada como habitat no período compreendido entre o Neolítico Final e a época tardo-medieval. A entrada está obstruída, não sendo possível entrar, nem aconselhável, dado tratar-se de um local com risco de acidente. 

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Retomamos a rota, depois de subir tudo o que tínhamos descido, e  enfrentamos nova e íngreme subida, desta vez sobre um piso ‘calcetado’ com os nossos já conhecidos blocos de granito irregulares e desconfortáveis (à la romana). A envolvente é muito bonita e, à medida que subimos, as encostas da serra vão surgindo no nosso campo de visão. A Serra. Maravilhosa, robusta, assombrosa, já a cobrir-se de amarelo, penso que de carqueja (a tal com que se faz o arroz, prato típico - e delicioso- da zona). No meio daquele ‘nada’ ainda somos surpreendidos por uma alminha, sinal de que aquele era um caminho antigo.

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No topo da subida, encontramos o canal que transporta a água para a câmara de carga da central hidroelétrica Ponte Jugais. Uma central situada em pleno Parque Natural e a funcionar há um século (desde 1923), alimentando-se das águas do rio Alva e da ribeira de Caniça, através de dois canais a céu aberto. É um desses canais que vamos ladear. 

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Vivemos numa era em que já pouco ou nada nos surpreende, ao ponto de nem sempre darmos o devido valor à enormidade das ‘pequenas’ grandes obras do passado. Houve alguém (o industrial António Marques da Silva) que um dia, no início do século XX, viu nas águas da serra uma fonte de produção de energia elétrica. Alguém que sonhou, que lutou e que concretizou. E isso foi um feito extraordinário. 
Já agora, como curiosidade, existe na Serra da Estrela um complexo sistema de centrais hidroelétricas em cascata, que inclui barragens, açudes, túneis condutas e canais, que percorrem altitudes entre os 400 e os 1600 metros.
E ali vamos nós a ladear um canal (ou levada) que transporta água que irá produzir… eletricidade. Um canal lindo, perfeitamente integrado no meio (parece que já nasceu assim, para ser canal). São cerca de dois quilómetros de puro deleite para os nossos sentidos. Os sons, as cores, os aromas… Lindo demais!
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No final do canal, uma mini represa capta as águas da ribeira, mas o que ali nos levou foi uma enorme rocha granítica, de aproximadamente seis metros de altura, ‘coroada’ com duas pontas de pedra, cujo formato se assemelha a uns cornos. Os Cornos do Diabo, assim se chama a rocha, e é uma das atrações do trilho.

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Recuamos 80 metros para retomar o nosso itinerário, por um caminho que nem queríamos acreditar que teríamos de subir. A encosta mais íngreme e pedregosa que subimos até hoje, sem dúvida (de curta extensão, mas de desafiante dificuldade).
Ao logo  do percurso, fomo-nos cruzando com algumas pessoas em sentido contrário, agora entendíamos porquê. Vencida aquela subida ‘técnica’, chegámos ao buraco do Sumo. Um sítio, onde blocos gigantes de rocha terão resvalado das encostas superiores e ali se amontoaram sobre o leito da ribeira da Caniça, obrigando-a a correr subterraneamente. 

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Seguimos viagem e atravessamos uma zona de pinhal. Já na descida para a Lapa dos Dinheiros, ainda nos espera um troço espetacular, com a água da ribeira a despenhar-se até à localidade em pequenas cascatas e levadas (para a rega), e com uma zona de vegetação verdejante e luxuriante. Até parece que estamos na selva. É mesmo muito bonito.

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Os senhores estão a cumprir uma promessa?
A pergunta foi-nos dirigida por uma senhora, quando atravessávamos a localidade já em direção ao ponto de chegada. O nosso aspeto de caminheiros não a enganou. Mochilas, bastões, marcas de quem já trás muitos quilómetros nas pernas… Só não acertou no motivo. A nossa única promessa é aproveitar ao máximo as coisas boas que a Natureza tem para nos dar, mostrar e ensinar.

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A aventura só terminou com uma passagem pelo Mercado Municipal de Seia, onde ainda conseguimos almoçar, apesar do avançado da hora. 

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12.05.23

PR3 SPS Rota da Cárcoda


Emília Matoso Sousa

Data: 4 de março 2023
O percurso
14,56 Km | Circular | 444 m desnível acumulado | Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Igreja Matriz Carvalhais; Capela Nossa Sra. do resgate; Castro da Cárcoda; Moinhos de Água do Pisão; Bioparque de Carvalhais; Prego no Sino
Localidade
Carvalhais | Freguesia do concelho de São Pedro do Sul, distrito de Viseu.

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É junto da Igreja Paroquial de Carvalhais que o trilho começa. Uma igreja imponente e envolvida por um interessante conjunto de edifícios. Há, no entanto, uma nota dissonante naquela igreja, que é a estranha desproporção entre a altura da torre e a da própria igreja. Não será uma torre um pouco baixa demais?

20230304_102944.jpgComo é habitual nestes locais, a saída conduz-nos imediatamente a terrenos rurais. Atravessamos os lugares de Reguengo e Faverrel e rumamos à Serra da Arada. É em Roçadas que encontramos o primeiro ponto de interesse. Trata-se de uma localidade com algum charme, onde uma quinta (Quinta de Roçadas) se destaca dos demais edifícios.

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É neste contexto que surge a capela de Nossa Sra. do Resgate, cuja envolvente reúne alguns pormenores peculiares. Desde logo, um cuidado jardim onde, além de flores, há algumas estatuetas e… poesia. Mas o que mais prendeu a minha atenção foi um painel de azulejos que relata, ao pormenor, a sucessão de herdeiros da quinta, desde o primeiro proprietário, até 1952, data da afixação do painel. Ficámos, então, a saber que a quinta pertenceu ao Senhor Padre Caetano António de Paiva Barros, o qual ali edificou uma pequena capela em 1865. A escrita do painel é uma delícia! São estas pequenas preciosidades que tornam estes percursos muito enriquecedores!

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Seguimos por caminho florestal e, à medida que vamos subindo, a paisagem vai-se modificando. As árvores vão sendo substituídas por vegetação mais rasteira e os afloramentos graníticos começam a proliferar, espicaçando a nossa fértil imaginação. No topo da subida, esperam-nos as vistas para a Serra da Arada, já com algumas manchas de amarelo e lilás.

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Um monte de pedras deixa de ser um monte de pedras no momento em que um único homem o contempla, nascendo dentro dele a imagem de uma catedral”, Antoine de Saint-Exupéry

Dirigimo-nos para o Castro da Cárcoda. Visualmente, não considero que um castro seja a oitava maravilha do mundo. Porém, sendo, porventura, a primeira forma estruturada de centro urbano organizado (com casas, arruamentos e equipamentos coletivos), no nosso território, um castro é um testemunho de inegável interesse histórico. Por motivos de defesa, eram fortificados e edificados em lugares muito altos… portanto, toca a trepar o monte!

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Pessoalmente, nunca tinha visto um castro tão bem ‘conservado’. Por isso, valeu a pena o esforço da subida, até porque, no limite, quem não apreciar as ‘pedras’ aprecia as vistas.

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O Castro da Cárcoda é um povoado fortificado com cerca de 10 hectares, tendo sido ali descobertos alicerces de 25 habitações, que remontam à Idade do Ferro (planta redonda) e ao período de ocupação romana (planta quadrangular). Pela dimensão do castro e quantidade do espólio ali encontrado, é de supor que a sua população fosse numerosa. Terá sido habitado entre os séculos VII a.C. e IV d.C.
Segue-se o Bioparque de Carvalhais, onde vamos poder apreciar o complexo de Moinhos do Pisão.

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O Parque Florestal do Pisão nasceu em 1958 no sopé da vertente sul da Serra da Arada. Foi criada uma área de viveiro onde se plantaram árvores representativas da floresta portuguesa, como o carvalho-alvarinho, o pinheiro-bravo, o castanheiro, mas também de outras regiões do mundo. O viveiro desenvolveu-se, transformou-se em floresta, e hoje é um bioparque que, tirando partido de uma envolvente paisagística de beleza ímpar, alberga um conjunto de atividades que privilegiam o contacto com a natureza (parque aquático, piscinas, bioslide, escalada, paintball...). Tem também um conjunto de estruturas que permitem que ali se pernoite (bungalows, Casa da Montanha, campismo).

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Os moinhos de água… do Pisão
Se há elementos que embelezam a paisagem natural ou, pelo menos, não a ‘corrompem’, são os moinhos. Situados nas margens de rios ou ribeiras, grande parte dos moinhos de água, cuja época áurea foi entre os séculos XVIII e XIX, chegaram aos nossos dias em ruínas ou perto disso. O que é pena, pois que eles desempenharam um papel relevantíssimo na economia de subsistência que então se praticava.
Os moinhos de rodízio do Pisão, situados na margem da ribeira de Contença, são 13, estando 6 recuperados e operacionais. Por estarem dispostos em escada ao longo da encosta, estão interligados por um engenhoso sistema de levadas em aqueduto, em que a água tanto corre por levadas de granito, como por outras escavadas em compridos troncos de pinheiro-bravo, suportadas por pilares de pedras.

20230304_135810.jpg20230304_140204.jpg20230304_140214.jpgO aspeto é o de um mecanismo aparentemente rudimentar. Contudo, há ali muita arte e engenho. Além disso, é um exemplo perfeito de como na natureza nada se perde e tudo se pode transformar. É que a água saída do rodízio de um moinho é conduzida para outro e pode ser depois devolvida à ribeira, ou pode ser utilizada para regar os campos de cereais. Os cereais que serão moídos no moinho e com cuja farinha se fará o pão. Um ciclo perfeito. Uma lição de sustentabilidade, algo de que tanto se fala nos tempos atuais ...
As margens da ribeira são o habitat perfeito para diversas espécies de fauna e flora e, ao longo da sua linha de água, vão-se formando pequenas lagoas de água cristalina, onde se podem tomar umas belas banhocas. Foi o que fez um casal de jovens estrangeiros, os únicos com quem nos cruzámos durante a caminhada, não resistindo ao nosso afamado Sol de inverno.

20230304_140525.jpg20230304_140543.jpgDepois desta pausa refrescante, retomámos a marcha rumo a Pisão, uma aldeia com alguma graça e movimento de pessoas locais.

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Antes do regresso ao ponto de partida, há ainda um desvio ao Prego do Sino, um recanto verdadeiramente maravilhoso, onde a ribeira de Contença mostra todo o seu esplendor e disputa o protagonismo com um fantástico carvalhal, disposto em vários patamares. Tudo isto, combinado com o som e a visão das várias miniquedas de água da ribeira, nos faz acreditar que, afinal, vivemos no melhor dos planetas… enfim, seria bom que houvesse muitos locais com este.

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Mais uma caminhada que chegou ao fim com nota muito positiva. Nem todos os percursos têm o mesmo nível de beleza, é verdade, mas de todos trazemos bons e interessantes ensinamentos. Acima de tudo, trazemos sempre uma vontade redobrada de conhecer aquilo que o nosso país ainda tem de exclusivo para nos mostrar.

08.05.23

PR4SPS Trilho da Cabra e do Lobo (Aldeia da Pena)


Emília Matoso Sousa
Data: 2 de março 2023
O  percurso
12 Km (fizemos 15,26)  |  Circular |  822 m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Aldeia da Pena; Parede de Escalada; Covas do Monte; Covas do Rio; Livraria da Pena
Localidade
Aldeia da Pena | Aldeia da freguesia de Covas do Rio, concelho de São Pedro do Sul, distrito de Viseu.
Observações
Trilho com trajetos de alguma dificuldade, que poderão não ser adequados a quem sofra de vertigens.

20230302_114430.jpgÉ em plena Serra de São Macário que se desenvolve a Rota da Cabra e do Lobo, cujo principal atrativo é um trajeto conhecido como o 'caminho do morto que matou o vivo'. É um trilho com uma carga lendária grande que, em conjunto com a sua espetacularidade paisagística, faz com que seja obrigatório no currículo de qualquer pedestrianista. 

Até há pouco mais de um ano, achei que nunca seria capaz de fazer este trilho. Porém, a experiência dá-nos a confiança necessária para saber que com persistência (quase) tudo se consegue. Além disso, por maior que seja o cansaço e por muito que os músculos reclamem, a compensação chegará sempre sob a forma de paisagens e cenários inesquecíveis. 

20230302_122349.jpgO percurso arranca da Aldeia da Pena, uma pequena aldeia com casinhas de xisto e ardósia, situada na Serra de São Macário, escondida nas profundezas de um vale e rodeada por maciças e sombrias encostas. Por ali, a vida é assegurada por treze resistentes habitantes que encontram na extraordinária beleza do local a devida recompensa pelo isolamento e condições agrestes proporcionadas pelas montanhas. A criação de caprinos é uma atividade que se vai mantendo por aquelas bandas, pelo que é normal encontrarmos cabras e cabritos a passearem descontraidamente pelas ruelas da aldeia.

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A aventura começa na estrada.
Chegar à Aldeia da Pena implica percorrer uma estrada, linda e cénica, é verdade, mas com uma configuração que nos deixa com os nervos em franja. De via única, na maior parte do seu traçado, íngreme e com curvas muito apertadas, causa algum desconforto pensar que podemos cruzar-nos com outro veículo a meio da subida/descida e, se houver cascalho no asfalto, a probabilidade de o carro ‘patinar’ é grande. A boa notícia é que há trabalhos em curso para a alargar um pouco. Ora, uma intervenção naquele local, por mínima que seja, bloqueia completamente a circulação, e nós fomos contemplados com um desses momentos: estrada impedida, sem qualquer tipo de sinalização na via de acesso. Resultado: hora e meia à espera a assistir ao vai e vem do camião que transportava o monte de rocha cortada. Enfim… nada agradável.

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Mortos que matam vivos. Cabras que matam lobos.
Se há sítios propensos a lendas e mitos, este conjunto montanhoso é um deles. Quando se fala da Aldeia da Pena é inevitável que se lhe associe a lenda do afamado caminho do morto que matou o vivo. Como assim? É que há muito, muito tempo, não havendo cemitério na Pena, os defuntos eram transportados a pé e a braços para a aldeia de Covas do Rio. Por um caminho ‘terrível’ de 3 km, inclinado, pedregoso e vertiginoso. E foi numa dessas missões que um dos carregadores escorregou, provocando que a urna lhe caísse em cima… transformando-o também em defunto. Assim se batizou o caminho com tão sugestivo nome.
Há, ainda, outra versão que fala de uma cabra que, ali, foi perseguida por um lobo. Aflita, tentou escalar uma parede rochosa e caiu sobre o lobo, matando-o e salvando-se.
Entre uma versão e outra mon coeur balance, ou seja, nenhuma auspicia um caminho fácil de fazer. E é este caminho o ex-libris da rota de hoje.

Cobras que comem pessoas. Santos que foram boémios.
O imaginário popular está recheado de lendas. Histórias mais ou menos fantásticas, mas ou menos fictícias, passadas oralmente de geração em geração, através das quais se explica o que muitas vezes não tem explicação. Misturam realidade e fantasia e definem a capacidade de imaginação de um povo ou comunidade. São, pois, um património importante. O centro de Portugal é riquíssimo em lendas e até há uma que explica o topónimo Pena. É que vivia ali uma enorme cobra, que apenas saía do seu buraco para ir ao rio beber água. Nessas saídas, aproveitava para comer o que encontrasse. Ora, as pessoas, para escaparem ao voraz apetite da rastejante criatura, ofereciam-lhe cabras ou outros animais. Sempre que isso acontecia, diziam: "ai, que pena!". Et voilá, estava encontrado o nome para a aldeia. 
Uma boa lenda tem de conter algum drama, pois então! A de São Macário, cujo nome foi eternizado na serra, é disso exemplo. É que, antes de ser santo, Macário era um jovem de boas famílias dado a alguns excessos e extravagâncias. Certo dia, durante uma caçada, matou acidentalmente o pai, após o que mergulhou num profundo desgosto. Como penitência, renunciou a todos os prazeres terrenos e isolou-se na montanha, dedicando-se à oração e à proteção dos animais. E assim viveu, como um eremita e em santidade, até ao fim dos seus dias.  
A Pena é um diamante em bruto que a serra parece esconder avaramente no seu seio (...). Há no estrangeiro muitas coisas que o reclamo apregoa e que o turista snob admira boquiaberto, que não valem a pena.”, Abade de Ribolhos, 1940
Uma breve volta pelas ruas da aldeia antes de nos fazermos ao caminho, faz-nos sentir que viajámos no tempo. Um restaurante e uma lojinha de produtos locais são os únicos pontos de contacto com o resto do mundo. Era cedo e estavam fechados, mas, diz quem sabe, que ali se come divinamente. 

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Saímos da aldeia e rumamos à serra de São Macário, por uma zona arborizada bastante agradável e que nos conduzirá a terrenos pedregosos e escorregadios, devido ao gelo acumulado durante a noite.

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Pouco depois, chegamos a uma encosta muito pedregosa e sem sinais de caminho, a não ser ‘trepar’ a própria encosta. Seria aquilo a parede de escalada referida no folheto descritivo do trilho? E lá tivemos de escalar por entre pedras e pedregulhos. À medida que subimos, a paisagem vai ficando cada vez mais bonita. À nossa volta, montanhas a perder de vista, num jogo entre relevos de cumes arredondados e mais escarpados, entre o verde de fundo e as manchas lilases das urzes que já começam a aparecer. As palavras serão sempre diminutas perante a enormidade de tal paisagem.

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Surpreendentemente, naquele fim de mundo de pedra, encontrámos um pastor  aguardando pacientemente o regresso das suas cabritinhas, que andavam dispersas por aquelas encostas. Surpreendentemente, aquele pastor deslocava-se com recurso a duas canadianas, as quais, segundo nos disse, usa há mais de dez anos. Surpreendentemente, para ali chegar tem de calcorrear um percurso, desde a aldeia de Covas do Monte, de hora e meia. Mas o que mais nos surpreendeu foi ele ser capaz de trepar a encosta e ultrapassar os obstáculos de pedra… Outras vidas, outros costumes, outras resiliências...

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Avançamos para Covas do Monte, mais uma aldeia típica com casas de xisto, erguida no sopé da montanha e rodeada por impressionantes montes. Não fora a rica palete de verdes do mosaico dos seus campos agrícolas, e passaria despercebida naquele cenário dominado pelas encostas imensas da serra. Parece saída de um caderno de desenhos. Ruas estreitas, casinhas de xisto com telhadinhos de lousa… os únicos seres vivos com que nos cruzamos nas ruas são algumas cabras que, aparentemente, partilham pacificamente os espaços com as pessoas.

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A antiga escola primária, hoje transformada em restaurante (da Associação dos Amigos de Covas do Monte), diz-nos que ali já houve animação. Do restaurante, que apenas funciona por marcação, diz-se que são imperdíveis os autóctones cabritos da Gralheira e a vaca Arouquesa. E deve ser verdade! Ali, vive-se da pastorícia. Cabras, ovelhas, vacas… que encontram alimento nas encostas escarpadas que rodeiam a povoação. A agilidade permite-lhes trepar qualquer escarpa, por inacessível que possa parecer. Uma das peculiaridades desta aldeia é o seu rebanho comunitário de cabras, que já terá tido 2500 animais, e que todas as manhãs, bem cedinho, atravessa as ruas em direção às montanhas. Não tivemos a sorte de assistir a este alvoroçado ritual, mas ainda encontrámos alguns caprinos que decidiram ficar em casa. 

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Espera-nos, agora, uma subida “hercúlea”, daquelas que me fazem maldizer tudo e todos, até ao momento em que me rendo incondicionalmente à beleza da paisagem. Mas que é uma subida inclinadíssima, rasgadíssima, lá isso é!

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Dirigimo-nos a Covas do Rio, outra aldeia típica do Portugal rural menos turístico. A agricultura de subsistência e a criação de gado são as principais atividades. É esta a sede da freguesia, englobando Covas do Monte e Aldeia da Pena. É recortada pela ribeira de Deilão. Água, ali à volta, não falta. seja para a rega, seja para as pastagens. As vistas para o vale do Deilão são muito bonitas, bem assim a geometria dos campos agrícolas trabalhados em socalco. Apesar de começarmos a avistar Covas do Rio, logo após a tal subida hercúlea, a verdade é que tivemos de ziguezaguear muito para lá chegar.

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Por caminhos muito bonitos e com trajetos florestais muito agradáveis, é certo, mas a atirar para muito tarde a chegada ao caminho do morto que matou o vivo, o ponto alto do trilho que, sabíamos, tinha de ser bem saboreado. Com calma e com luz. Estávamos a sentir a falta da hora e meia que ficámos retidos na estrada. Além disso, há que confessar que tínhamos alguma apreensão (vá lá, algum receio) relativamente a tão mal afamado caminho.
A certa altura, como que a dar-nos a boas-vindas, ou não, começámos a ver bonecos tipo espantalhos, alguns de aspeto quase assustador, outros mais grotescos, outros apenas peluches, a ladear o caminho. Tanto quanto consegui saber, são ali deixados pelas pessoas que vão passando. Não sabemos qual o ritual ali representado, tampouco se terão algum significado especial… mas que introduzem ali um elemento meio místico, meio enfeitiçado, lá isso introduzem. Finalmente, estamos a chegar ao caminho! Nervos!!

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À medida que avançamos, vamos ficando mais enclausurados entre duas grandes encostas, como duas paredes de pedra, gigantes, ao fundo das quais há uma escarpa de uma altura imensa. E nós íamos ter de a atravessar, para chegar novamente à Pena. Mas como iríamos nós atravessar aquilo?
O piso passa a ser, a partir de agora, praticamente de pedras. No fundo da enorme garganta onde nos encontramos, corre a ribeira da Pena que, ora se ouve apenas, ora se vê. Ora corre calma, formando pequenas lagoas, ora cai em pequenas cascatas. A vegetação  torna-se densa e rica. 

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Caminhamos sobre xisto, camadas de xisto que vão ficando mais estreitas, pelo que todo o cuidado é pouco. Esta parte do caminho é imprópria para quem sofre de vertigens. De obstáculo em obstáculo, vamos avançamos por cima do xisto, que agora assume a configuração de uma escadaria natural e muito irregular. Terá sido ali que o morto fez aquilo que fez? Continuamos a subir o ‘escadório’, mas do acesso à Pena, nem vestígios.
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Antes disso, ainda temos de nos impressionar com a última atração do dia, a Livraria da Pena que, no final daquela subida insana, surge na nossa frente imponente e majestática, do alto da verticalidade dos seus estratos quartzíticos com cerca de 480 milhões de anos. Parece mesmo uma gigante estante de livros. Uma livraria com uma envolvente idílica: árvores raras, quedas de água e, para conhecedores, fósseis de vidas que quase não cabem na História. Mais uns passos em frente e, como que por um golpe de magia, somos ‘teleportados’ para a Aldeia da Pena. 

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Um caminho duro e complicado para quem não aprecia alturas, mas repleto de surpresas e misticismo. Uma espécie de twilight zone onde se entra e de onde se sai por uma pequena porta na rocha. 

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E voltámos à aldeia, já sem luz do Sol, que ali é de pouca dura, e a pedir a São Macário que nos deixasse subir a estrada sem nos cruzarmos sem nenhum carro. Pedido satisfeito! 
Nota final: Apesar da aventura que é chegar à aldeia por aquela estrada ‘manhosa’, a verdade é que ‘valeu a pena ir à Pena’.

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05.05.23

PR14 Trilho da Aldeia Mágica (Drave) - Parte II


Emília Matoso Sousa

Data: 1 de março 2023
O percurso
4 Km (mais 4 Km de volta) | Linear | 403 m desnível acumulado | Grau dificuldade: fácil
Pontos de interesse | Drave; Serra da Arada
Observações
Não sendo difícil, reclama algum esforço de subida; não deverá ser feito em épocas de calor, pois não há sombras.

Na cidade, as casas fecham a vista à chave, / Escondem o Horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu, / Tornam-nos pequenos, porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar…”, Alberto Caeiro in O Guardador de Rebanhos

20230301_114436.jpgÉ em Regoufe que se inicia a caminhada de cerca de quatro quilómetros até Drave, que se percorrem em cerca de duas horas, dependendo das paragens (mais duas para o regresso). Tem cerca de 20 habitantes, um café (Café Montanha) e um restaurante (O Mineiro), que só funciona por marcação, e onde, dizem, se deglutem deliciosas refeições preparadas com produtos regionais, onde não faltará o cabrito e a vitela (a de Lafões). Estes locais remotos levam-me sempre a questionar onde e como é que aquelas pessoas fazem as suas compras, para lá de tudo o que cultivam nas suas hortas e do gado que criam. Mas a verdade é que está tudo controlado. Há todo um conjunto de vendedores ambulantes que, nas suas carrinhas, fazem chegar às aldeias todo o tipo de produtos. Quem quer, e pode, vai a Arouca ou a São Pedro do Sul.

20230301_164406.jpgQuem quiser ter a experiência do que é viver num local ‘de outra dimensão’ (tipo twilight zone), esta é a aldeia, ou melhor, uma das aldeias, já que há várias por aqui.

As subidas, ai, as subidas...
Saímos de Regoufe atravessando uma pequena ponte, depois de passarmos por um portão que deverá estar sempre fechado, e imediatamente somos ‘presenteados’ com uma subida nada simpática, não apenas pela elevada inclinação, mas também pela péssima qualidade do piso. Pedras e mais pedras de tamanhos e formas irregulares, ainda por cima, soltas. Quando me deparo com uma destas subidas, além de proferir ‘alguns’ impropérios (mentalmente, claro, mais por falta de fôlego do que por pudor), pergunto-me sempre que necessidade tinha eu de ‘me meter naquilo’.

20230301_110544.jpg20230301_111146.jpgÉ que se não fossem as subidas, nunca teria acesso às melhores vistas. Quem o diz é o ZM e está certíssimo. E o que nos esperava no topo desta subida estava para lá de tudo o que se possa escrever. O primeiro impacto é de puro deslumbramento. Parados, ficamos a olhar, apenas, em silêncio. Que montanhas maravilhosas, magnetizantes, mágicas… Arredondadas, onduladas, sobrepostas em várias camadas… Montanhas de xisto, bem visível em alguns pontos mais escarpados, mas maioritariamente ‘alcatifadas’ por uma vegetação rasteira (talvez fruto de incêndios), por enquanto ainda verde.

20230301_114513.jpg20230301_115511.jpg20230301_144025.jpg20230301_144154.jpg20230301_144833.jpgÀ exceção de algumas urzes, que já começaram a florir, como a anunciar a mudança de ciclo, com a chegada da primavera. Não tarda, irá também florir a carqueja e toda a serra ficará 'forrada' de amarelo e lilás, num espetáculo de cor que é o cartão de visita da região. Do topo da subida até Drave, o caminho é quase sempre a descer. E sempre rodeados por esta paisagem. O único ponto dissonante, sinistro até, daquele cenário sublime e mágico é o parque eólico que se vislumbra ao longe no topo da Arada… Não fora esta marca de ‘civilização’, e tudo ali seria natureza em estado puro. Ora, nos tempos atuais, juntar ‘civilização’ e natureza na mesma frase nem sempre é consensual. Desde logo, porque o termo ‘civilização’ tem hoje significados que o distanciam da sua primitiva definição que opunha a condição de civilizado à de selvagem. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e mudam-se os significados… A verdade é que, em nome do desenvolvimento, chegámos a um ponto em que uma sociedade será tanto mais ‘civilizada’ quanto mais bem cuidar das suas riquezas naturais. E é bom que o faça, já que o prazo de validade do nosso planeta poderá esgotar-se antecipadamente.
E é entre reflexões e outras considerações que nos aproximamos do nosso destino. Encaixada num vale, com as suas escuras casas de xisto e lousinha, só com muita atenção conseguimos vislumbrar a Aldeia Mágica à distância. Apenas uma capelinha branca, de alvenaria, se destaca.

20230301_121459.jpg20230301_125258.jpgEm determinada altura, devidamente assinalada, voltamos à esquerda e entramos na reta final. Um caminho muito bonito, é verdade, mas com um piso extremamente irregular e desconfortável, devido à sua composição rochosa e pedregosa. Marcas de rodados de carroças mostram que ali já houve movimento… Como seria possível? É também por aqui que começam a surgir algumas árvores.

20230301_122329.jpg20230301_123956.jpg20230301_124053.jpg20230301_124306.jpgA maior parte do percurso não tem uma única sombra e a exposição solar é grande, pelo que imagino que deve ser penoso fazê-lo no verão. E eis que chegamos a Drave. Perdida no mapa, perdida na serra, perdida no tempo. Zero habitantes, visitantes, apenas nós. Sinais de vida (humana), apenas os que identificam as casas ocupadas pelo Corpo Nacional de Escutas, que ali instalaram a sua "Base Nacional da IV" e levam a cabo atividades diversas, ao mesmo tempo que vão recuperando algum edificado. Na capelinha, de seu nome N. Sra. da Saúde, uma placa informa que foi mandada construir pela família Martins, que terá sido a mais numerosa da aldeia e também a última a abandoná-la, deixando para trás o seu solar, hoje também em estado de aparente abandono. Percorremos as ruelas e vamos imaginando como terá sido a vida daquelas pessoas? Não creio que a considerassem mágica. O som de água a correr dá uma nota relaxante e refrescante ao ambiente, num dia em que o Sol já aquecia bem. Seguimos o som da água, pois tudo indicava que, por perto, haveria cascatas.

20230301_125206.jpg20230301_131357.jpg20230301_131639.jpg20230301_132857.jpg20230301_133313.jpg20230301_133405.jpg20230301_134153.jpgDescemos até à ribeira, a de Palhais, e deparámo-nos com uma pequena zona ribeirinha com recantos maravilhosos. Árvores, sombras, uma pequena cascata e uma lagoa de água azul cristalina que, no verão, deve convidar a belas banhocas. Quando há água... parece que no verão nem sempre há!

20230301_132148.jpg20230301_132658.jpg20230301_134803.jpg20230301_134911.jpgQuem quer que tenha criado aquele espaço, fê-lo num momento de grande inspiração. Todas as peças estão no sítio certo: as montanhas, as casinhas, as cascatas, as lagoas… Compreende-se bem por que motivo uma aldeia em ruínas, de difícil acesso, e sem qualquer tipo de estrutura atrai tantas pessoas. Tudo o que lá se sente é boas energias, paz, tranquilidade, vontade de ficar mais um pouco, vontade de voltar. Será isso a Magia? Acredito que sim. E quem quiser lá acampar pode fazê-lo gratuitamente, apenas se comprometendo a deixar tudo tal como encontrou. Deve ser uma experiência e tanto!

20230301_134833.jpgO regresso a Regoufe faz-se pelo mesmo caminho, agora com o Sol a dar tonalidades diferentes à paisagem e a fazer brilhar as diferentes linhas de água que cortam a serra em direção ao rio que corre no vale. Bonito e inspirador, e, sem dúvida, um dos trilhos mais bonitos que fizemos. A tarde terminou com a degustação de algumas iguarias regionais no Café Montanha, onde fomos muito bem recebidos por uma anfitriã muito simpática.

20230301_154835.jpg20230301_155337.jpgUm pulinho a Fujaco
Portugal, sendo pequenino, tem uma capacidade inesgotável de nos surpreender. Seja pela variedade da sua paisagem natural, seja pelas suas aldeias, algumas tão bem escondidas que só por mero acaso se conseguem encontrar. Alguém nos sugeriu que visitássemos Fujaco, uma pequena localidade de São Pedro do Sul, com menos de 50 habitantes, empoleirada, literalmente, numa encosta da Serra da Arada. No regresso de Drave, lá fomos nós.

20230301_175343.jpg20230301_175644.jpg20230301_175801.jpg20230301_175810.jpgOlhar para a aldeia a partir da estrada, onde deixamos o carro, obriga-nos a dobrar completamente o pescoço. Como é que alguém se lembra de construir uma povoação naquele sítio é a primeira questão que nos assalta! Não dá para descrever a inclinação daquelas pequenas ruelas tão apertadinhas em que não entra carro. "Muito bonito para os de fora. Se estivessem cá todos os dias, não gostavam tanto". Quem o disse foi um simpático habitante com quem nos cruzámos e com quem trocámos dois dedos de conversa. Disse-nos ainda que há algumas casas a serem recuperadas por novos compradores que, desta forma, encontram um refúgio secreto num local verdadeiramente mágico e remoto. Com as suas casinhas de lousa e xisto tem, de facto, algo de encantador, mas, tendo em conta as subidas e descidas, sou tentada a concordar com o nosso informador. Apenas para ir lá visitar!

Para nós, a visita ficou já 'marcada' para a primavera. Queremos tanto ver a serra em flor!!!

01.05.23

PR14 Trilho da Aldeia Mágica (Drave) - Parte I


Emília Matoso Sousa

Data: 1 de março 2023
O percurso
4 Km (mais 4 Km de volta) | Linear | 403 m desnível acumulado | Grau dificuldade: fácil
Pontos de interesse
Drave; Serra da Arada; Portal do Inferno; Complexo Mineiro Poço da Cadela
Localidade
Regoufe | Aldeia tradicional do Arouca Geopark, situada na serra de Arada, na União de freguesias de Covelo de Paivó e Janarde, concelho de Arouca, distrito de Aveiro.

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Somewhere, something incredible is waiting to be known”, Carl Sagan

Sempre que pensávamos em ir a Drave, desencorajava-nos o ‘difícil’ percurso a pé que teríamos de fazer para lá chegar. Agora, que já nos aventuramos por caminhos que antes tínhamos como impossíveis, chegou o dia. Drave é uma pequena aldeia, rodeada de algum mistério, situada a 600 metros de altitude num vale encaixado entre as serras da Freita, da Arada e de São Macário (qualquer uma delas, por sinal, muito bonita). Desabitada desde 2009, sem uma única infraestrutura (comunicações, água canalizada, eletricidade…), e com um edificado quase totalmente em ruínas, a aldeia continua, ainda assim, a atrair e fascinar visitantes. Resta acrescentar que não é acessível de carro e que, para lá se chegar, têm de se caminhar quatro quilómetros (mais 4 para a volta) bastante ‘puxadotes’.

Pelo Reino das Montanhas Mágicas
Há sítios que estão inseridos em zonas de tal forma fascinantes, que justificam um enquadramento prévio. Drave situa-se em pleno Maciço da Gralheira, uma cadeia montanhosa que se ergue nos distritos de Aveiro e Viseu e que é constituída pelas serras da Freita, Arada, São Macário, e Arestal. Ao conjunto deste maciço com o de Montemuro atribuiu-se a designação de Montanhas Mágicas.

20230301_120636.jpg20230301_120056.jpgNo fundo, um ‘selo’ que promove todas as riquezas naturais e patrimoniais deste território montanhoso situado na zona ‘fronteiriça’ entre o centro e o Norte de Portugal Continental, entre os rios Douro e Vouga, e que abrange sete municípios: Arouca, Castelo de Paiva, Castro Daire, Cinfães, S. Pedro do Sul, Sever do Vouga e Vale de Cambra. Acolhe, ainda, quatro Zonas Especiais de Conservação da Rede Natura 2000 e um Geoparque Mundial da UNESCO (o de Arouca). Montanhas, vales, rios, cascatas, lagoas, geossítios, biodiversidade… entre muitas outras coisas que deslumbram os amantes da natureza, esta zona é, de facto, imperdível. E sim, aquelas montanhas têm qualquer coisa de encantatório!

20230301_165217.jpg20230301_165419.jpg20230301_165709.jpgUm Portal dos Diabos
Não é do Diabo, ainda que o nome lhe assente como uma luva, mas é do Inferno e é um dos pontos altos da estrada que nos leva a Regoufe, aldeia de onde se parte para Drave. É logo na estrada que a magia começa! Uma estrada de montanha, estreita, serpenteante e com inclinações acentuadas, sinuosamente desenhada no meio de uma paisagem incrível. De um lado e do outro, as vistas são esmagadoras, numa sucessão de vales e montanhas que se sobrepõem formando efeitos verdadeiramente cénicos.

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Estamos a subir, as curvas vão-se apertando, até nos retirar qualquer resquício de visibilidade, há alguma adrenalina no ar… Até porque sabemos que nos aproximamos do Portal do Inferno e Garra. Que nome! Trata-se de um miradouro a cerca de 1000 metros de altitude (estamos na Arada), curiosamente, situado no exato local que separa os concelhos de S. Pedro do Sul do de Arouca. A estrada torna-se ainda mais estreita, estendendo-se sobre duas vertentes íngremes constituídas por rochas metamórficas, que tornam a paisagem escarpada.

20230301_103152.jpg20230301_103817.jpg20230301_120644.jpg20230301_170325.jpgDe um dos lados do horizonte, a serra de São Macário, do outro, avista-se a Garra, uma montanha artisticamente entrecortada por diversas linhas de água que, no seu trabalho de erosão, como que esculpiram os dedos de uma ave de rapina. Há, também, quem acredite que se trata da mão do Diabo que, segundo a lenda, terá por ali andado a atemorizar uns e outros. Será que ainda por lá anda? O melhor é seguir viagem, antes que o dito as teça…

20230301_103804.jpg20230301_165846.jpgTudo o que sobe tem de descer, como está 'instituído' na Lei da Natureza e, geralmente, respeitando e replicando os respetivos graus de inclinação. E lá descemos para Regoufe, com algumas buzinadelas a avisar carros que, eventualmente, se aproximassem em sentido contrário.

Regoufe, entre o belo e o… mais ou menos belo (dependendo dos gostos)
Regoufe é uma aldeia tradicional com uma população de cerca de 20 pessoas - mais concretamente 22, quando a visitámos - cujo modo de vida depende da pastorícia e da agricultura. Percorrendo as suas ruelas é quase certo que nos cruzemos com cabras e cabritinhas, patos ou galinhas que partilham a aldeia com os seus habitantes numa relação de grande proximidade. Aliás, são muitos os vestígios orgânicos com que vão decorando as ruas numa clara declaração da sua importância. Passam por nós com a maior das normalidades e, só não nos dão as boas-vindas, porque não falam a nossa língua.

20230301_153827.jpg20230301_105704.jpg20230301_110643.jpg20230301_110110.jpg20230301_110334.jpg20230301_152858.jpgPrivilegiadamente situada na Serra da Arada, território das Montanhas Mágicas, a aldeia está rodeada por um cenário idílico… por todos os lados, menos por um. É que, numa das encostas, situam-se as ruínas do complexo mineiro Poço da Cadela, explorado até à década de 1970. Está bom de ver que aquela zona é rica em minério e que a vida por ali já foi muito agitada. Foi ali que, em 1941 se constituiu a Companhia Portuguesa de Minas, que funcionava essencialmente com capitais e sob administração britânicos. A eles se deve um conjunto de melhoramentos na aldeia, designadamente a abertura da estrada, ou a instalação de telefone e eletricidade. Um ‘preço’, provavelmente, demasiado alto quando comparado com os danos irreversíveis que ali provocaram, mas naquela época as consciências ecológicas ainda não estavam devidamente despertadas.

20230301_151254.jpgNo tempo da corrida ao volfrâmio
Durante a II Guerra Mundial, houve, portanto, grande movimentação mineira ali para os lados de Arouca, protagonizada por ingleses e alemães que, longe dos ‘teatros de operações’ (como agora se diz) ou, quiçá, magnetizados por aquelas paisagens idílicas e de bons ares, ali coexistiam tranquila e pacificamente. Tudo por causa do volfrâmio, um minério brilhante e escuro que, fundido, dá origem ao tungsténio, uma liga que, acrescentada ao aço, o torna mais resistente e adequado à produção de armamento e munições. Assim, em Regoufe, sob a ‘bonomia’ de um Portugal neutral, que ali viu uma oportunidade economicamente irresistível, os súbditos de Sua Magestade exploravam o Poço da Cadela, e os seguidores do Führer, as minas de Rio Frades, ali ao lado. E parece que o negócio era mesmo rentável, havendo relatos de fortunas ganhas de um dia para o outro. No Poço da Cadela chegaram a trabalhar cerca de 1000 pessoas, tendo sido extraídas, entre 1935 e 1951, 639 mil toneladas de minério de volfrâmio e estanho. Terminada a necessidade do minério, todos se foram embora, deixando como legado uma montanha com cicatrizes irreversíveis. Confesso que ‘dói’ um bocadinho olhar para aquela enorme mancha de montanha sem vida. Uma mancha que guarda ainda as ruínas do complexo constituído por instalações técnicas e administrativas, residências e galerias. Um local cheio de história, sem dúvida, e também de muitas memórias, ainda que associadas a um dos acontecimentos mais infames de um passado não muito distante. Quem vai a Regoufe não deixa de visitar o espaço. Mas a principal razão para uma deslocação a Regoufe é mesmo a ida a Drave!

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