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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

19.04.23

PR1 SPS Rota de Manhouce


Emília Matoso Sousa
Data: 22 de fevereiro 2023
O  percurso
14,4 Km (fizemos 17,76)  |   Circular |   641 m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Ponte Romana; Poço da Silha; Ribeira da Vessa; Gestosinho, Bondança; Salgueiro; Lageal; Igreja Matriz de Manhouce
Localidade
Manhouce | Freguesia do concelho de São Pedro do Sul, distrito de Viseu.
Observações: Trilho extremamente bem sinalizado e limpo; reclama muito esforço de subida e descida em piso muito desconfortável. 
 
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras. Sentir tudo excessivamente. Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas.”, Álvaro de Campos, in Livro de Versos Fernando Pessoa
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A Rota de Manhouce leva-nos por um percurso de altitude de uma beleza paisagística que, do primeiro ao último quilómetro, nos surpreende a cada passo. Desenvolve-se em pleno maciço da Gralheira, um conjunto montanhoso formado pelas serras da Arada, Freita, Arestal e São Macário, abrangendo os distritos de Viseu e Aveiro. É nesta transição entre os dois distritos que se situa Manhouce. Ainda geograficamente falando, estamos na região de Lafões, território do centro do país situado na região hidrográfica do rio Vouga, que abrange os concelhos de São Pedro do Sul, Oliveira de Frades e Vouzela. São daqui as afamadas vaquinhas da raça arouquesa, ágeis e apreciadoras dos pastos das montanhas, que tanto gostam de trepar. Esperávamos, e queríamos muito, ser surpreendidos por algumas! 
 
Sobre Manhouce
Como curiosidade histórica, do tempo em que os romanos por lá andaram, resta uma ponte, cuja construção primitiva oscila entre os séculos II a.C. e I d.C. Estava integrada na Estrada Imperial, Via Cale, que ligava Emerita Augusta (Mérida) a Bracara Augusta (Braga), passando por Viseu. No século XIX, a estrada era ainda utilizada por almocreves e comerciantes, por ser a principal via de acesso do interior (Viseu) ao litoral (Porto), um percurso de 95 quilómetros. Por isso mesmo, passou a ser conhecida por Estrada dos Almocreves ou do Peixe. Manhouce, sensivelmente a meio caminho, era local obrigatório de pernoita. Graças a esses viajantes, a aldeia foi absorvendo, sobretudo ao nível de costumes e cantigas, traços de outras culturas, designadamente as do litoral.
 
Isabel Silvestre, GNR, e a Pronúncia do Norte
Os trilhos pedestres mostram-nos muitas localidades de que nunca ouvíramos falar. Não é o caso de Manhouce, que ganhou notoriedade graças à Pronúncia do Norte, canção dos GNR de 1992. E porquê? Porque Rui Reininho convidou para a cantar com ele a manhoucence Isabel Silvestre, nome maior da música popular portuguesa, embaixadora dos Cantares de Manhouce e grande dinamizadora para a manutenção e divulgação desta tradição. Atualmente, trabalha para levar esta forma de cantar a Património Cultural Imaterial da Humanidade, sob a chancela da UNESCO. O agradecimento do seu povo está imortalizado numa enorme placa de granito com a sua imagem junto ao posto de turismo.

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Um canto polifónico de mulheres a três vozes
As cantigas de Manhouce são um caso sério no rico panorama de cantares do nosso Portugal. Contam apenas com vozes femininas e, apesar da sua origem numa sociedade agrária tradicional, a polifonia a três vozes (baixo, raso e riba) confere a este canto uma complexidade difícil de explicar. São as mulheres as fiéis guardiãs destas modas que foram notícia, pela primeira vez, em 1938, quando Manhouce concorreu à iniciativa Aldeia mais Portuguesa de Portugal. Foi aí que ganharam o reconhecimento de etnomusicólogos e folcloristas como Artur Santos, Armando Leça, Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti, que lhes deram honras de Cancioneiro Nacional Português. 
 
O trilho
Vale a pena percorrer as ruas desta aldeia que, em 1938, esteve quase a ser a aldeia mais portuguesa de Portugal. Casas de pedra muito antigas, mas maioritariamente bem conservadas. Vestígios de presença de gado e outras marcas de ruralidade denunciam a principal atividade dos seus habitantes. À porta de muitas habitações, pequenas placas de xisto identificam as famílias que as habitam. As placas de pedra são, aliás, muito utilizadas na sinalética da aldeia. No largo principal, a Igreja Matriz, que terá servido de hospital de sangue durante as invasões francesas, merece uma visita. O seu interior é bastante simples, mas tem um sóbrio teto de madeira que faz um contraste interessante com o bonito painel de azulejos do altar-mor.

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O trilho parte da escola primária e, logo aí, somos aconselhados por alguns locais a realizá-lo no sentido anti-horário. Apesar de a maior parte do percurso ser ora em subida, ora em descida, não é indiferente o sentido em que se faz, sendo o anti-horário um pouco mais suave. 
Saímos de Manhouce e entramos imediatamente em terrenos agrícolas, com os seus pitorescos muros antigos cobertos de musgos e líquenes. Sempre a subir, sobre ‘passadeiras’ irregulares de granito, tipo calçada romana, vamos atravessando as várias aldeias que povoam o maciço da Gralheira.
 

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Aldeias de altitude, habitadas por gentes resilientes, vencedoras de tantas batalhas contra as durezas do meio ambiente e detentoras da criatividade necessária para extrair sustento de terras quase impenetráveis. Habilmente encaixadas no sobe e desce das encostas e enquadradas em cenários quase irreais, o mínimo que se pode dizer destas aldeias é que são encantadoras. Apesar da sua simplicidade. Apesar da sua arquitetura maioritariamente vernacular, onde monumentos ou edifícios artisticamente elaborados não têm lugar. São simples, são práticas, são genuínas.
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Ao percorrê-las, sentimo-nos fora do nosso tempo, mas sentimo-nos bem. Lageal, Malfeitoso, Salgueiro, Bondança, ou Gestosinho são as que constam do roteiro de hoje. Não consigo imaginar como será viver em locais tão remotos e pergunto-me sempre o que terá levado aquelas povoações a instalarem-se em sítios tão improváveis, onde hoje já é possível chegar por estrada (pelo menos a alguns), é certo, mas não antigamente. 
 

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Paisagens agrícolas ancestrais
Diz o provérbio, e com fundamento, que a necessidade aguça o engenho. Que o digam os habitantes das aldeias da Gralheira, quando confrontados com terrenos tão inclinados! Como iriam cultivá-los? Surgiu, assim, o cultivo em socalcos, ou em terraços, uma técnica agrícola ancestral, que consistia no parcelamento de rampas niveladas. Um processo difícil que reclamava muito trabalho e mestria, já que tinham de se escavar os solos, deslocar as terras e, por fim, estabelecer os aterros onde se cultivava. Proporcionam, hoje, paisagens únicas, muito bonitas, mas que devem, acima de tudo, fazer-nos pensar em todo o esforço humano que encerram. 

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A água é uma constante no caminho. São vários os cursos de água que vamos atravessando, quase sempre por cima das nossas tão apreciadas poldras. Os caminhos das pedras… É sempre uma animação, pois nunca sabemos se nos calha uma pedra mais escorregadia ou se teremos de os atravessar a vau. Mas com a ajuda dos bastões e algum equilíbrio tudo se consegue atravessar. 

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Pequenas manchas florestais de bétulas, carvalhos e castanheiros vão decorando a paisagem entre aldeias. Apesar de despidas, por ser inverno, proporcionam imagens muito bonitas. Árvores maravilhosas, não apenas esteticamente, mas também pelo papel que desempenham no equilíbrio do ecossistema. Infelizmente, as nossas florestas têm perdido muitas árvores autóctones, estando algumas em extinção. O azevinho é um desses exemplos, pelo que foi com surpresa e agrado que, em Bondança, passámos por uma espécie de pequena reserva dessas árvores tão natalícias. Coisa rara!
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À medida que vamos subindo, vamos assistindo à mudança do cenário que nos envolve. As árvores começam a rarear, dando lugar a vegetação mais rasteira, típica de terras mais altas. A paisagem torna-se mais austera e agreste, proliferam as formações graníticas, ou caos graníticos, expressão que deve ser rigorosamente tomada ao pé letra, já que se refere a áreas com amontoados de rochas quebradas ou de forma arredondada organizados de forma… caótica. É o tipo de imagem que nos remete para alguns filmes de ficção científica de antigamente. É a montanha a revelar todo o seu esplendor!
 

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As ‘ágeis’ vacas arouquesas é que não apareceram, salvo duas que pastavam em propriedade privada, mas nós preferimos vê-las em terreno livre. Mas andavam por ali! Disso havia muitas ‘provas’ espalhadas pelo caminho. Também não nos apareceu nenhum lobo ibérico, apesar de este ser também o seu território.
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Atravessamos a última destas aldeias, Gestosinho, onde restam ainda alguns espigueiros, resquícios de um tempo em que as práticas comunitárias eram comuns. Dois habitantes locais trabalham o seu pedaço de terra e dirigem-nos algumas palavras. Informam-nos de que a partir dali é sempre a descer até Manhouce. Menos mal! Só não nos alertaram para o grau de inclinação da descida que nos esperava… nem para o estado deplorável do piso… 
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Para já, estamos em pleno planalto, o piso é plano e há que usufruir desta breve trégua. Segue-se um breve trajeto em estrada asfaltada, a qual nos conduz a um desvio para um caminho florestal. Sim, voltaram as árvores. Carvalhos, castanheiros, pinheiros…

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Encontramo-nos a uma altitude que nos dá acesso a vistas panorâmicas maravilhosas, em que montanhas e vales se sobrepõem tornando-se quase transparentes consoante a distância a que se encontram. A urze começou já a aparecer e há manchas lilases a colorir as encostas. Urze ou torga, a resistente planta que sobrevive nas rochas das montanhas e que inspirou o escritor Miguel Torga na escolha do seu pseudónimo. Consigo entender a inspiração! Vistas deslumbrantes justificam uma paragem e foi o que fizemos, como que antecipando o que nos esperava.

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Lá muito em baixo, já se vislumbra o casario de Manhouce. Vamos iniciar a descida. Longa, íngreme, piso extremamente perigoso, com sulcos fundos e irregulares, pedras e cascalho solto. Toda a atenção e cuidado em níveis máximos. O impacto nos joelhos a fazer-se sentir é o preço a pagar pelas maravilhas que vamos deixando para trás. Uma placa de lousa encostada à vedação de uma propriedade informa, não sei se por ironia de algum brincalhão ou por algum motivo perdido no tempo, que estamos na Estrada Real. Vá lá saber-se porquê? Ainda se fosse ‘irreal’... Terá existido ali algum caminho romano?

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A dolorosa descida reserva-nos ainda um brinde, a chamada pièce de résistance: um amontoado de blocos de granito, em jeito de obstáculo, que temos de ultrapassar com recurso aos quatro apoios. Vencida mais uma barreira, e estamos de novo em terra firme e segura. Uma estradinha asfaltada, um bálsamo para os nossos massacrados pés!

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Quase de seguida, entramos de novo em caminho florestal, por sinal, muito aprazível e com um belíssimo tapete feito de folhas castanhas das árvores. E chegamos a mais uma paisagem verdadeiramente cinematográfica: a ribeira da Vessa, onde se encontra o Poço da Silha com as suas águas cristalinas de tonalidade quase turquesa. As quedas de água e a fantástica galeria ripícola compõem um quadro difícil de descrever. Se fosse verão, apetecia mergulhar. 

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Estamos quase no final, só falta uma ‘subidinha’. Atravessamos a ribeira por uma pequena ponte de madeira e subimos até à estrada junto à ponte sobre a ribeira de Manhouce. É daqui que se pode observar a ponte romana, bem como azenhas que, em tempos, aproveitaram a força motriz daquelas águas.

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Este é um trilho que ficará nas nossas memórias pela sua extrema beleza e pela riqueza, variedade e espetacularidade das paisagens. Terminámos com a sensação boa de que muito ficou por ver. Manhouce é muito visitada por causa dos seus poços, os quais estão localizados no troço mais alto do rio Teixeira, abundante em quedas de água e poços (piscinas naturais) esculpidos nas rochas pela força das águas. Os mais conhecidos são o Poço Negro, o da Silha e da Barreira, e o da Gola. O rio Teixeira, afluente do Vouga, é considerado um dos mais bem conservados e menos poluídos rios da Europa, e um dos mais belos rios de montanha com vales apertados, escarpas e com as suas lagoas e poços de águas cristalinas e puras. Faz parte, naturalmente, da Rota da Água e da Pedra da iniciativa Montanhas Mágicas. Esta é uma zona a ser explorada com atenção!
14.04.23

PR3 SAT: Rota do Barrocal (Sátão)


Emília Matoso Sousa
Data: 9 maio 2022
O percurso | 14 km (fizemos 15,7)   |   Circular   |   208 m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Santuário do Sr. da Agonia; Laje da Deguedinha; Capela N. Sra. do Barrocal; Geomorfologia granítica 
Localidade
Avelal | Freguesia do município de Sátão, distrito de Viseu.
 
Avelal, de Avelanal, terra de avelãs. É na freguesia de Avelal, mais exatamente no Santuário do Sr. da Agonia, que tem início o percurso que nos vai dar a conhecer mais alguns pontos de interesse do concelho de Sátão. 

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O santuário é um desses pontos. Inserido num enorme penedo, transmite, desde logo, a impressão de algum misticismo. E não é que o local está associado a uma lenda? Consta que certo cavaleiro viveu momentos de pânico quando, ao ser perseguido por assaltantes quando cavalgava por aqueles montes e penedias, se viu na iminência de cair num precipício. Em desespero, apelou ao N. Sr. da Agonia que, imediatamente, o acudiu, revelando-se debaixo de um penedo e fazendo com que o cavalo parasse. Há até quem diga que as marcas das ferraduras ainda lá estão. Eram épocas muito férteis em acontecimentos extraordinários, se contabilizarmos todas as lendas que por ali rezam… Em todo o caso, trata-se de um local de culto bastante peculiar e a tirar partido da geomorfologia local, onde os penedos abundam. A imagem do Sr. da Agonia, no entanto, encontra-se atualmente na Sé de Viseu, ali permanecendo uma imagem mais pequena. 

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Iniciamos a nossa rota e o primeiro trajeto leva-nos por um extenso pinhal onde ainda se faz extração de resina, algo que não é muito frequente nos dias de hoje. E pela floresta avançamos até Douro Calvo, onde não vamos visitar o Museu Municipal de Gulfar por ser segunda-feira e estar encerrado. Atravessamos a localidade e dela saímos passando por um contínuo de campos de cultivo, até chegar à Laje da Deguedinha, uma mega eira que, em conjunto com alguns edifícios, hoje em ruínas, constitui uma forma primitiva de celeiro comunitário. Na eira malhavam-se e secavam-se os cereais, nas casas armazenavam-se. Em terras de granito há muitas eiras ‘naturais’... basta aproveitar as que ‘brotam’ dos solos, como a da Deguedinha. Esporadicamente, presumo que em ocasiões especiais, ainda é utilizada. 

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Uma estrada cénica 
Deixamos para trás o ancestral celeiro e pouco depois entramos numa estrada asfaltada, daquelas que poderiam ter sido projetadas por um paisagista diplomado, aproveitando cada um dos pedaços do horizonte que se apresenta em verdadeiras telas. As árvores e os blocos de granito que a ladeiam fazem o resto. Estamos em território montanhoso e as formações rochosas graníticas são uma constante. À medida que vamos subindo e nos vamos aproximando do sítio arqueológico do Barrocal, as rochas vão tomando conta da paisagem, até se concentrarem todas num imenso oceano de pedra. A natureza tem, de facto, o condão de nos fazer sentir muito pequeninos e é assim que nos sentimos perante a visão destes conjuntos colossais de rochas. Desolador, mas extremamente belo. Como entender esta nossa atração pelos contrastes?

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Barrocal: Um sítio arqueológico
Estamos nas proximidades das aldeias de Carvalhal e Romãs. Tudo à nossa volta é pedra. Granito. Formações rochosas graníticas de tamanho variável, algumas de tamanho gigante, outras com formas muito peculiares, outras, ainda, num aparente equilíbrio precário. Quem as terá pousado ali? 

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E é neste ambiente que, numa elevação de tors graníticos, surge o sítio da Sra. do Barrocal. Tors graníticos ou, de forma muito simples, “grandes afloramentos rochosos que se erguem abruptamente do solo, como resultado da erosão” ou, simplificando ainda mais, “blocos graníticos empilhados”. A par da extraordinária beleza natural do local, bem como da espetacularidade das vistas para o vale da ribeira de Côja, aqui se edificou, noutra era, um povoado fortificado. Por sinal, um sítio de grande relevância arqueológica, tendo já sido alvo de três campanhas de escavações, a última em 2016. Alguns dos achados, sob a forma de objetos, sementes de leguminosas e cereais, espaços habitacionais e de armazenagem, entre outros, encerram informação sobre como era a vida daquelas comunidades rurais enquanto ali viveram, pelo menos até ao século X. 

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Quanto ao povoado que ali existiu, é interessante ver como o homem, desde sempre, em resposta às suas necessidade, soube tirar partido das condições e recursos naturais do meio envolvente. Neste caso, isso é visível, ainda que na presença de apenas alguns vestígios, na forma como os enormes tors graníticos foram usados como pontos de ligação entre os muros feitos de pedra aparelhada. Por outro lado, tudo foi feito para que, não se perdendo o controlo do vale, o povoado passasse o mais possível despercebido a partir das cotas mais baixas. Conceitos muito vernaculares de arquitetura que, nos tempos atuais, tendem a ser recuperados em nome da sustentabilidade ou de uma maior harmonia com o meio natural. É, de facto, curioso e muito elucidativo de como a arquitetura sempre teve por base a relação do homem com o espaço que o rodeia e a forma como o organiza, tendo sempre (e desde sempre) presente a vertente funcionalidade. No centro há um enorme tor, onde agora se encontra um abrigo natural. 

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Os achados no local permitem, também, afirmar que a utilização religiosa do espaço remonta ao século X (971). No entanto, terá sido no início do século XVIII que a ermida da N. Sra do Barrocal foi mandada construir pelo Bispo de Viseu, D. João de Melo, para o culto da Sra. das Candeias e de S. Brás, celebrações que ainda hoje ali se praticam. 
 
Deixamos as pedras para trás, ou assim pensávamos que ia acontecer, e dirigimo-nos para a povoação de Romãs, ali bem pertinho. Porém, a sinalética teimava em orientar-nos para a encosta de um monte onde só avistávamos pedregulhos. Não podia ser por ali! Mas era. Um caminho antigo, usado no tempo em que não havia estradas ou outro tipo de acesso. E foi a trepar, mais do que a caminhar, que fizemos a subida. Mais uma vez, comprovámos que as melhores coisas são as que dão luta… e aquele trajeto foi dos mais bonitos que fizemos até hoje.

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Do outro lado, Romãs apresentou-se-nos como uma pequena aldeia beirã, onde se destaca a sua igreja matriz e as suas casas predominantemente de pedra. O percurso até Avelal, a nossa meta, fez-se por caminhos rurais e florestais. Avelal tem a particularidade de se dividir em duas partes bem distintas: uma parte velha recheada de casas de granito, em grande parte muito bem recuperada; e uma mais moderna, com habitações de construção mais atual, algumas a evidenciar que estamos numa zona de emigração.

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De Avelal, parte a Via Sacra até ao Santuário Senhor da Agonia, o nosso ponto de partida, agora de chegada. E lá a percorremos, passando pelas tradicionais 14 estações ou etapas que ‘ilustram’ as cenas da Paixão de Cristo… sempre a subir o que, na reta final, já custa um pouquinho.
 
Foi, pois, com chave de ouro que encerrámos Sátão. Três trilhos (Rota dos Míscaros, Rota do Barroco, Rota do Barrocal) bastante diferentes entre si, mas todos muito interessantes, com trajetos memoráveis e com muitos testemunhos de que a história daquele território se perde no tempo. Há, claramente, duas forças que são uma constante: o granito e a fé, seja pela paisagem dominada pelas formações rochosas graníticas, seja pela quantidade (e qualidade) do património religioso ali existente. Este terá sido, inquestionavelmente, um território ‘duro’ de vencer, mas não o suficiente para derrotar a resistência daquelas gentes que tão bem moldaram o meio, dele tirando todos os benefícios essenciais à sua sobrevivência. 
10.04.23

PR1 SAT: Rota do Míscaro (Sátão)


Emília Matoso Sousa
Data: 8 maio 2022
O percurso | 18 km (fizemos 20)   |   Circular   |   426 m desnível acumulado   |   Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Santuário de Nº Sr. dos Caminhos; Rio Vouga; Moinho de água; Convento do Sr. Sto Cristo da Fraga; Geoformas graníticas da Serra da Fraga; Capela de S. Matias e miradouro natural; Convento de Sta. Eufémia; Praia Fluvial do Trabulo 
Localidade
Rãs | Aldeia portuguesa pertencente à Freguesia de Romãs, concelho de Sátão, distrito de Viseu
 
Tricholoma equestre, míscaro-amarelo ou, apenas, míscaro. É um cogumelo amarelo, nasce espontaneamente na natureza, geralmente em pinhais, e faz as delícias de muitos apreciadores. E deve gostar dos fantásticos pinhais de Sátão, pois cresce ali ao ponto de conceder à vila o epíteto de Capital do Míscaro. Era por ali que hoje iríamos andar, tendo como pano de fundo paisagens belíssimas, em grande parte, enquadradas pela bacia hidrográfica do Vouga. 

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O ponto de partida é em Rãs e, logo aí, somos surpreendidos por um santuário. O que primeiro ‘salta à vista’ é um conjunto de 15 enormes e enigmáticas colunas de granito, aparentemente, sem qualquer funcionalidade. Aparentemente e efetivamente! Consta que seriam para suportar uma estrutura de apoio a peregrinos, cuja cobertura terá sido roubada. Há, no entanto, quem diga que a obra não chegou a ser concluída por falta de dinheiro. Um pouco de mistério é sempre bem-vindo!!

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Santuário de Nosso Senhor dos Caminhos
Não estávamos à espera de encontrar um santuário com a dimensão deste. Ficámos a saber que é palco de uma das maiores romarias que se realizam na Beira Alta (8º domingo depois da Páscoa), sendo as outras as da Nossa Senhora dos Remédios (Lamego) e da Nossa Senhora da Lapa (Sernancelhe). É, aliás, no culto a esta última que está a sua origem, já que era neste local que paravam para descansar os peregrinos e almocreves que, ladeando o Vouga, se dirigiam ao Santuário da Senhora da Lapa. Ora, naqueles tempos (século XII), as deslocações eram feitas a pé e em condições de segurança bastante vulneráveis, o que levava os ‘viajantes’ a recorrer às suas crenças religiosas em busca de proteção divina. Neste caso, a ajuda era pedida ao Senhor dos Caminhos, a favor de quem criaram um pequeno nicho onde depositavam pequenos contributos. E foi com estes ‘donativos’ que se construiu uma pequena capela. A igreja maior só nasceu por volta de 1909, passando a anterior a ser dedicada a Nossa Senhora dos Verdes, protetora das colheitas e do gado doméstico.

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É, na verdade, um centro religioso muito aparatoso e apetrechado com um conjunto de estruturas destinadas aos peregrinos e devotos, designadamente espaços ajardinados e zonas arborizadas com mesas e bancos para piqueniques. No centro de uma pequena praça, um conjunto de estátuas homenageia os quatro evangelistas: João, Mateus, Lucas e Marcos. A igreja estava fechada. Por incrível que possa parecer, nestes locais, a abertura das igrejas depende da boa vontade de algum ‘paroquiano’ mais disponível. Numa estrutura com a dimensão deste santuário, essa disponibilidade implica assegurar a limpeza e bom funcionamento, por exemplo, de instalações sanitárias… Segundo alguém nos disse, não é algo que se resolva facilmente.

20220508_094600.jpg20220508_093746.jpg20220508_094759.jpgIniciamos, então, o nosso percurso, seguindo por uma estrada asfaltada muito bem desenhada entre árvores, até cruzarmos a ribeira da Brazela, que vem de Aguiar da Beira e desagua no Vouga, e entrarmos em caminho rural. A ribeira, com a sua rica galeria ripícola, forma um corredor verde visualmente agradável, ao mesmo tempo que assegura a sobrevivência e variedade da fauna ali residente. As giestas, já todas em flor, cobrem a paisagem de branco. 

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Convento do Sr. Santo Cristo da Fraga
Prosseguimos por caminhos rurais e os prados verdes fazem antever a presença de rebanhos, uma visão bucólica sempre muito relaxante. É primavera, pelo que é frequente encontrá-los. Entramos numa zona florestal, e chegamos a um velho moinho em bom estado de conservação que, em conjunto com uma pequena ponte de madeira, que atravessamos, faz um apontamento muito pictórico.

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Pouco depois, por uma ponte de pedra, cruzamos o Vouga e iniciamos a subida que nos leva ao Convento do Sr. Santo Cristo da Fraga, lá bem no alto, sensivelmente a meia encosta da Serra da Fraga, num maciço granítico. Este antigo convento franciscano teve origem numa ermida erguida por volta de 1741, no local onde dois moleiros, em busca de pedras para mós, haviam descoberto uma imagem de Cristo crucificado esculpida numa fraga. Como se sabe, a divulgação destas descobertas miraculosas gerava grande afluência de peregrinos, os quais necessitavam de estruturas de apoio, o que deu origem à Casa da Romagem. Em 1749, o templo foi doado aos Religiosos Capuchos de S. Francisco da Província da Conceição, que fundaram um hospício, construindo várias dependências e elevando-o mais tarde (1779) à categoria de convento regular. Atualmente, apenas restam as ruínas do antigo convento, uma conduta de água utilizada na altura, e a Casa de Romagem. Do santuário, destacam-se a frontaria da igreja e os retábulos do interior, de talha dourada barroca, rococó e revivalista.

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Serra da Fraga acima…
Tudo seria tão mais simples se não houvesse subidas! Claro que, depois de ultrapassadas, compensam-nos com as melhores vistas, pelo que, rapidamente, as perdoamos. A subida da Serra da Fraga faz-nos perder o fôlego duplamente. Pelo esforço e pela beleza das paisagens. E se as vistas para o vale do Vouga são deslumbrantes, as imagens coloridas que nos acompanham até ao topo da Fraga não lhes ficam atrás. Definitivamente, é um daqueles trajetos que perduram na memória.

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Segue-se um caminho florestal recheado de afloramentos graníticos constituídos por enormes penedos e geoformas únicas, quais esculturas artisticamente moldadas por mãos sobrenaturais. Como terão ‘nascido’ ali? Supostamente, devido à erosão, ao longo do tempo, dos solos e estratificações que cobriam as rochas. Não restam dúvidas de que a natureza é extraordinária!

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Serra de S. Matias e sua capela altaneira
É já no cume de um monte (Serra de S. Matias), que vamos encontrar a capela com o mesmo nome. Um ponto branco no meio de manchas e manchas de rocha, a uma altitude de 729 metros, assim é a capela de S.Matias. Aproveitamos a paragem para descansar um pouco, ao mesmo tempo que nos deixamos seduzir pelo magnífico cenário. E que cenário! Vistas privilegiadas sobre a freguesia de Ferreira de Alves, com os seus prados e campos agrícolas geometricamente trabalhados, bem como sobre boa parte do concelho de Sátão. Dali se avistam também, em fundo, as serras de Leomil, Montemuro, Caramulo, e Estrela. Um vértice geodésico marca o ponto mais alto, que atinge os 744 metros. 

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O mais antigo convento da Beira

Seguimos caminho, entre rochedos, floresta e campos agrícolas, e chegamos ao antigo e monumental Convento de Sta. Eufémia, convento de religiosas beneditinas de clausura, situado na freguesia de Ferreira de Aves, implantado sobre a ribeira do Convento. Foi fundado no século XII (1111) e foi comunidade de eremitas até 1136, e chegou a abarcar igreja, capela, torre sineira e mirante, hospedaria, residência do capelão, fonte, pelourinho, casas dos moinhos e vastos terrenos nas imediações. Apesar das várias intervenções de que foi alvo ao longo dos séculos, infelizmente, chegou aos nossos dias em muito mau estado de conservação, mantendo a igreja os portais românico-góticos originais, bem como as paredes interiores revestidas de azulejos do tipo tapete do século XVII. Foi extinto em 1891, por morte da última religiosa.

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Escudos e losangos
Uma pedra de armas em forma de losango colocada na capela chama a nossa atenção,  mas a explicação surge depressa. É que, já no século XVII, uma das reformas levadas a cabo no convento e capela de Santa Eufémia foi empreendida por duas mulheres, o que lhes deu o direito de colocar as suas armas na capela. Armas que não podiam estar dentro de um escudo, já que as mulheres não iam à guerra. As armas femininas eram ostentadas dentro de losangos, numa clara distinção entre homens e mulheres. Coisas de outras eras…

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Vai um mergulhinho?
Voltamos ao caminho e, por área florestal, chegamos novamente ao Vouga, que atravessamos sobre poldras. Maravilha! Mais uma pequena caminhada e eis que chegamos à praia fluvial do Trabulo. Um fantástico espaço de lazer, integrado numa zona rica em fauna e flora, que permite tirar todo o partido do rio Vouga, ali transformado num refrescante espelho de água. Só não mergulhámos, porque não íamos equipados para tal, mas tendo em conta a temperatura bem primaveril, seria a forma perfeita de terminar o dia. 

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O rio Vouga, ou Vouguinha como lhe chamam no seu início, tem a particularidade de se apresentar de três formas diferentes: da Serra da Lapa, onde nasce a 930 metros de altitude, até S. Pedro do Sul, é rio de planalto; é de montanha na região de Lafões; e é de planície no seu final. 

Não desfrutámos das águas do Vouga,  mas a Lei das Compensações esteve do nosso lado e proporcionou-nos um momento gourmet, e beirão, num bar situado junto ao Santuário do Nosso Sr. dos Caminhos, com uns peixinhos do rio a marcar a diferença. 

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03.04.23

PR2 SAT: Rota do Barroco (Sátão)


Emília Matoso Sousa

O percurso | 20 km | Circular | 437 m desnível acumulado | Grau dificuldade: moderado
Pontos de interesse
Solar dos Albuquerques; Igreja de Sta. Maria; Santuário de Nª Srª da Esperança; Igreja Matriz de Rio de Moinhos; Igreja de Nª Srª da Oliva;
Localidade
Sátão, vila do distrito de Viseu, passando por Travasso, Travassinho, Abrunhosa, Lajedo, Serviçaria, Rio de Moinhos, Trémoa, Mioma, Tojal, Quinta do Monte.

Conhecer o país através da rede de percursos pedestres tem sido uma descoberta constante de cantos, recantos e encantos de um Portugal, porventura, menos conhecido, mas nem por isso menos rico. Continuando a nossa descoberta dos concelhos do distrito de Viseu, chegámos a Sátão que, ficámos a saber, é a Capital do Míscaro. Um cogumelo silvestre, comestível e muito apreciado. A volta ia ser longa, pelo que uma visita mais demorada à vila teria de ficar para outro dia. Hoje, era dia de visitar alguns dos exemplares mais emblemáticos do património religioso do concelho, representativos do estilo Barroco.

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Confesso que visitar igrejas ou outros edifícios similares me provoca sempre uma pontinha de sentimentos contraditórios. De um lado, a ostentação de riqueza, do outro, a mensagem de simplicidade e a valorização do espiritual sobre o material... enfim, habituei-me a visitá-las pela sua vertente meramente estética, pois muitas delas escondem verdadeiras obras de arte. É impressionante a quantidade de igrejas que há nesta região, tantas vezes nos sítios mais remotos, desde as capelas mais simples, aos mais elaborados santuários. Símbolos da religiosidade e da forte fé que, nestes territórios, desde há muitos séculos se faz sentir.

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Partimos da Igreja de Santa Maria, a matriz, de construção românica e dona de um semblante austero, que lhe é conferido pelo granito de que, no século XII, foi feita. A torre sineira central atenua, porém, o peso da pedra e dá-lhe um toque de alguma originalidade. Do outro lado da rua, há um edifício que prende a nossa atenção. Imponente, mas sóbrio e charmoso, e com um enorme brasão. O Solar dos Albuquerques, mandado construir entre os séculos XVII/XVIII por um Albuquerque, de seu nome Aleixo. O branco da sua fachada cede o protagonismo às decorações das cantarias, as quais permitem que o brasão ocupe o lugar de proa, bem lá no alto ao centro. Um senhor brasão em que não faltam castelos, quinas, flores de lis e uma coroa joanina. Já foi Paços do Concelho, mas hoje é Biblioteca Municipal e espaço de atividades culturais variadas. Pormenor delicioso, e a merecer uma menção honrosa, é a Loja do Cidadão instalada na antiga capela do solar. Haverá alguma mais bonita em Portugal? 

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Deixamos o miolo urbano e dirigimo-nos para sul. Atravessamos o rio Sátão e, em subida, atravessamos um extenso pinhal, onde predominam as coníferas, algumas de porte bem grande. A paisagem natural vai alternando com campos de cultivo numa convivência discreta e pacífica. Os extensos vinhedos, quais mantas verdes, marcam posição a lembrar-nos de que estamos na Região Demarcada dos Vinhos do Dão.

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Uma pérola do Barroco
A primeira paragem é em Abrunhosa, onde esperamos visitar o Santuário de Nª Srª da Esperança, uma pérola do Barroco, classificada como Imóvel de Interesse Público, mandado construir no século XVIII pelo cónego Luís Bandeira Galvão. A dominar a entrada na localidade, o seu posicionamento é ligeiramente altaneiro, sobre uma plataforma que recria um adro murado com acesso por uma escadaria central. Mas ‘parece’ que é no interior que está toda a sua riqueza. ‘Parece’, ‘dizem’, ‘consta’... porque, lamentavelmente, a igreja estava fechada e não pudemos visitar. Fiel guardiã de um património artístico trazido à luz pela mão e inspiração dos mais conceituados mestres, que na época não se olhava a gastos, o destaque vai para os tetos de madeira pintados em trompe l’oeil (Pascoal Parente), para os painéis de azulejos, assinados por Teotónio dos Santos, para o retábulo em talha dourada (José da Fonseca Ribeiro), e para o órgão de tubos (Francisco António Solha). Justifica, certamente, uma visita, portanto teremos de lá voltar numa breve oportunidade.

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Sobre estes painéis de azulejos, importa dizer que se enquadram na fase denominada Ciclo dos Mestres, período áureo da azulejaria figurativa portuguesa, de que o pintor Teotónio dos Santos fez parte. O ciclo nasce como uma reação das oficinas nacionais às grandes importações holandesas e traz para o seu seio pintores ‘verdadeiros’, que passam a assinar as suas obras, e que trabalham o suporte cerâmico como se de telas se tratasse. O rigor do desenho dá, assim, lugar à espontaneidade, criatividade artística, liberdade pictórica e audácia dos seus autores.

E o que devemos esperar do sino de um templo tão especial? Que tenha um toque especial. E tem, pelo menos é o que o povo afirma e o que a lenda reza. A justificação é simples: durante a fundição, o Cónego Luís Bandeira Galvão atirou para a caldeira algumas moedas de ouro, conferindo uma sonoridade diferente e mais rica aos dois exemplares ainda hoje preservados.

Seguimos viagem, novamente por caminho agrícola rumo a Lajedo e Serviçaria, duas localidades que atravessamos devagar, sabendo que encontramos sempre pormenores dignos de interesse, como a belíssima capela encaixada entre casas numa pequena ruela. Seria uma capela particular? A quem terá pertencido?

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Lost in translation…
De vez em quando, acontece cruzarmo-nos com habitantes destas aldeias, os quais fazem questão de nos dirigir algumas palavras. Em Serviçaria, um senhor que estava à varanda saudou-nos e perguntou se “também não estávamos bem”. Após breve hesitação perante tão estranha pergunta, percebemos que o facto de nos deslocarmos com a ajuda de bastões levou o senhor a preocupar-se com o nosso estado de saúde. Estado com o qual ele, aliás, se identificava e se solidarizava, por estar a recuperar de uma queda na horta que o deixara uns tempos no hospital… Explicámos que estávamos bem, que os bastões eram para ajudar nos pisos menos seguros, mas ele preferiu manter a convicção inicial. Só assim se explica que nos tenha desejado “as melhoras” na despedida. Ou isso, ou pensou mesmo que não estávamos bem… mas da cabeça!

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Avançamos até Rio de Moinhos, cuja torre da Igreja Matriz nos acompanha, ao longe, há alguns quilómetros. Nesta, conseguimos entrar. Uma igreja, em cujo interior se destaca a rica tribuna do altar-mor, bem como algumas características barrocas.

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Temos agora pela frente alguns quilómetros através de pinhal intenso, o que irá saber bem, pois o calor já se faz sentir. A meio deste trajeto, começámos a ficar sem água e com sede e só em Mioma iríamos, eventualmente, encontrar uma fonte. Quando chegámos à localidade, apenas conseguimos bater a uma porta e pedir um copo do precioso líquido, pedido que foi imediatamente satisfeito com uma belíssima água acabada de trazer da nascente. A hospitalidade portuguesa nunca falha! Mioma também tem uma igreja, bastante imponente, por sinal, mas não a visitámos.

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Seguimos para a povoação de Tojal, onde iríamos encontrar a igreja do antigo Mosteiro de Nª Srª de Oliva. O convento destinava-se a uma comunidade dominicana feminina quando foi fundado em 1633 por Feliciano de Oliva e Sousa. A igreja, de linhas maneiristas e ar austero, tem, ‘dizem’, uma decoração interior rica, com paredes forradas de painéis de azulejos policromados, entre outros pormenores. Com a extinção das ordens religiosas, o convento foi vendido a particulares e a igreja entregue à população local. Estava fechada, com grande pena nossa, pois o exterior era bastante promissor. Acontece frequentemente nestas localidades as igrejas estarem sob a responsabilidade de algum residente. Neste caso, a chave está com uma senhora que, por acaso, se encontrava no local a cuidar do jardim. Uma senhora com bastante idade e com problemas de mobilidade. É claro que quando, simpaticamente, se disponibilizou para ir a casa buscar a chave… nós tivemos de recusar. Mas relatou-nos histórias muito interessantes dos “bons tempos” em que, ainda criança, vivia numa das casas na propriedade (do antigo convento), uma vez que os pais trabalhavam lá. Acho que esta também merece uma visita… noutra volta, claro.

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A reta final do trajeto, que nos conduziria à ‘civilização’, faz-se através de uma mata de grande tranquilidade e beleza, com muitos carvalhos, castanheiros e sons de passarinhos a chilrear. E estamos novamente em Sátão, onde tínhamos ‘pré-sinalizado’ um local com ar de estar à altura de nos proporcionar um excelente final de tarde. E não nos enganámos!

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