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Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

Caminhos Mil

"É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.", José Saramago

12.10.22

O Caminho é para continuar!


Emília Matoso Sousa

Há qualquer coisa no Caminho que nos toca. Não é por acaso que quase todos querem voltar. Uma vez, e outra, e outra… Ninguém regressa igual, dizem. Não estou segura de que tenha regressado diferente, mas muitas vezes dou por mim a pensar nas ‘lições’ que fui aprendendo pelo Caminho. Marcou-me, sobretudo, a experiência de, durante vários dias, viver numa quase comunidade constituída por desconhecidos movidos por um propósito comum, desconhecidos solidários e disponíveis, desconhecidos que, ali, de igual para igual, partilham as mesmas ‘dores’, enfrentam os mesmos obstáculos e celebram as mesmas ‘proezas’. Superei-me ao conseguir transportar às costas, numa mochila, toda a bagagem de que precisei para aqueles dez dias (os da caminhada e os três que ficámos em Santiago). A mochila é, por excelência, o símbolo do peregrino, ao obrigá-lo a libertar-se do supérfluo para se concentrar no essencial. Curiosamente, ao fim de dois ou três dias, a mochila faz de tal forma parte de nós, que sem ela sentimo-nos despidos. Acima de tudo, desafiei-me, pus-me à prova, e consegui! Não posso dizer que foi difícil (tinhamo-nos preparado para muito pior), mas não foi fácil. Até porque se fosse fácil não teria graça nenhuma!  E não, o Caminho não acabou ali. Apenas começou! E é para continuar!

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12.10.22

Etapa 6 - De Padrón a Santiago de Compostela 25,9 Km | 5h07m | 260 m ganho de elevação


Emília Matoso Sousa

O Caminho não acaba aqui…

Hoje, foi dia de vestir os impermeáveis. De manhã, chovia copiosamente e por isso decidimos esperar um pouco antes de avançar. Ser-se apanhado pela chuva a meio da jornada é uma coisa, iniciá-la com o céu a cair-nos em cima é outra! Pouco depois, já sem chuva, mas com o cinzento chumbo a dar cor ao dia, lá fomos nós por caminhos e travessas, mais ou menos rurais, com uma disposição idêntica à de quem faz um passeio num lindo dia de primavera. 

O primeiro ponto de interesse encontrámo-lo em Santa Maria de Cruces: o Santuário de La Esclavitud que, com as suas altivas torres, é bem visível na paisagem. Dois eventos, ou lendas, estarão na sua origem. O primeiro, em 1582, quando o reitor da paróquia local, miraculosamente, se salvou de morrer esmagado por uma árvore. Agradecido a Nossa Senhora, encomendou uma imagem da Virgem com o Menino, que seria colocada sobre uma fonte ali existente, a qual passou a ser conhecida como Fonte Santa. O segundo aconteceu em 1732, quando um homem, que padecia de doença grave, ali bebeu água e se curou. Por se ter libertado da ‘escravidão’ do seu mal, fez uma doação à Virgem e espalhou a notícia. A partir daí, multiplicaram-se os devotos e as doações, as quais permitiram a construção desta igreja Mariana, cuja construção ficou concluída em 1743, e onde se colocou a imagem a que se deu o nome de Nossa Senhora da Escravidão.

Passámos ainda por outra igreja interessante, Sta Maria das Cruces, a que se seguiu nova incursão por caminhos semeados, predominantemente de milho, uma cultura muito comum por estas bandas. A chuva continuou a aparecer e a desaparecer sem, no entanto, beliscar o nosso ânimo.

Hoje, mais do que nos outros dias, a emoção está ao rubro. Para nós, a celebração da chegada estava associada à celebração de mais um aniversário de casamento, numa planeada associação de memórias que nos iriam trazer os ecos da nossa primeira viagem a dois... a Santiago, pois então! A paisagem vai alternando entre caminhos de terra, estradas secundárias, pequenas localidades, vilas e bosques. Não é a etapa mais bonita e obriga-nos a algumas subidas bem esforçadas, mas já só pensamos no momento em que vamos avistar, ainda que ao longe, as torres da Catedral. Quando entramos no concelho de Teo, com um património histórico muito interessante, estamos no último troço do Caminho. Na Rua dos Francos, há um cruzeiro gótico do séc. XV, provavelmente um dos mais antigos da Galiza. Continuamos a subir e passamos por Rio Tinto, Pedreira, A Grela, Milladoiro… já falta pouco. Os últimos quilómetros, quase sempre em subida, começam a 'acordar-nos' novamente os músculos. 'Força!', vão dizendo os peregrinos que passam. 'Está quase!'.

As indicações para a entrada em Santiago tornam-se, agora, um pouco confusas, podendo fazer-se tomando dois caminhos diferentes. Nós optámos por seguir a indicação para a esquerda, um percurso aparentemente mais curto. Mais uma subidinha, rasgadinha q.b., e entrámos no miolo urbano da cidade. As setas amarelas do Caminho são aqui quase inexistentes, o que reclama alguma atenção e sentido de orientação.

Sabemos que casco velho se entra, no caso de quem fez o Caminho Português, pela Porta Faxeira e é para lá que nos dirigimos.

Chegados ao Parque da Alameda, já conseguimos ter um vislumbre das ruas estreitas e antigas… Estamos à distância de uma passadeira. O semáforo fica verde e uma voz anuncia “Porta Faxeira”. Agora sim, estamos quase lá. Sabemos de cor onde fica a Praza do Obradoiro. Várias vezes, vi chegarem peregrinos àquela praça maravilhosa e mágica. E em todas essas vezes, pensei que um dia haveria de ser eu a chegar também. E hoje, 30 anos depois, ali estava eu!

Parou tudo!!! Diz-se que uma imagem vale mais do que mil palavras… mas haverá alguma imagem capaz de traduzir o turbilhão de emoções que se sente quando se chega e se vê a Catedral, quando se olha em volta e se vê felicidade e alegria nas caras dos peregrinos, quando tudo à nossa volta é celebração e festa? Não, não há!

E era chegada a altura de pousar a mochila e deitar-me no chão em modo ‘Descanso da Guerreira’. E também do ‘Guerreiro’.

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12.10.22

Etapa 5 - De Caldas de Reis a Padrón 22,5 Km | 5h07m | 260 m ganho de elevação


Emília Matoso Sousa

Unos pican y otros non

De Caldas de Reis, sai-se pela ponte sobre o rio Bermaña. Mais uma ponte vinda de outras eras, provavelmente romana, mas reconstruída na época medieval. As águas termais fizeram o seu trabalho e, de manhã, levantámo-nos cheios de energia. Esperava-nos uma das etapas mais belas do Caminho. ‘Preciosa’, como dizem os espanhóis, mágica, de acordo com os mais místicos. Entre o mágico e o precioso… é difícil decidir, digo eu. A Natureza no seu estado mais puro é algo que me transporta, de facto, para outras dimensões.

Na tradição jacobeia, Padrón é uma cidade icónica. Segundo a lenda, foi lá que, entrando pelo rio Sar, terá aportado a barca que transportava os restos mortais do Apóstolo desde Jafa (em Israel), os quais seriam depois levados para um local remoto, hoje Santiago de Compostela, onde se viria a edificar a catedral. A pedra, ou pédron, usada para amarrar a barca, estará na origem do nome da cidade e está colocada no altar na Igreja de Santiago de Padrón, sendo local de culto. Há, em Padrón, outra paragem obrigatória, um pouco menos ‘católica’, é certo, mas já lá vamos…

Para os apreciadores de aspetos mais mundanos, Padrón será sempre a terra dos pimentos com o mesmo nome. Deles se diz que unos pican y otros non, sendo certo que marcam presença em qualquer menu galego que se preze.

Depois de se sair de Caldas de Reis, e de uma breve passagem pela N550, seguimos, entre estradas secundárias e terrenos rurais, até Carracedo, onde podemos apreciar mais uma bonita igreja, a de Santa Marina. De um modo geral, todas as igrejas do percurso estão abertas para que os peregrinos as possam visitar ou recolher carimbos. A recolha de carimbos é um 'ritual' do Caminho quase engraçado. A obrigatoriedade de dois carimbos diários no 'passaporte' ou 'credencial' do peregrino para a obtenção da Compostela, faz com que todos, jovens e menos jovens, os procurem em todo o lado. Um pouco mais à frente, uma placa anuncia a proximidade do Museu do Labrego, nome curioso e engraçado que mais não é do que uma área de descanso para o peregrino.

O ponto mais alto do dia foi a passagem pelo Monte Albor, que nos mergulha dentro do tal bosque ‘encantado’. Um bosque deslumbrante, daqueles que parecem ilustrações de livros de histórias infantis. Vibrações do além (há quem jure a pés juntos que as sente) não senti, mas que las hay, las hay e, por isso, se de repente um gnomo saltasse de trás de uma árvore, eu não acharia estranho…

Em San Miguel de la Valga, paragem seguinte, uma grande igreja sobressai na paisagem. Segue-se Pontecesures, já próximo de Padrón. Pouco interessante como localidade, não fora a sua ponte, dita romana, mas sem quaisquer marcas desse tipo de construção. Tê-lo-á sido em tempos? Há quem garanta que sim. É, no entanto, uma estrutura esteticamente interessante, sendo considerada símbolo de união entre as províncias de Pontevedra e de A Coruña, separadas pelo rio Ulla, do qual é afluente o Sar que, a partir de agora, nos acompanhará. 

Chegamos a Padrón. A entrada na cidade faz-se pelo Paseo do Espolón, uma agradável alameda junto ao Sar, ladeada por enormes plátanos. Nos seus extremos ostenta duas estátuas que homenageiam dois vultos literários galegos, de renome internacional. Rosália de Castro, escritora e poetisa (1837-1885), nascida em Santiago de Compostela e considerada a fundadora da literatura galega moderna; e Camilo José Cela (1916-2002), vencedor do Nobel da Literatura em 1989. No topo da alameda ergue-se a Igreja de Santiago de Padrón, a tal onde se encontra a pedra que, diz-se, prendeu a barca. A completar este ‘postal’, é ainda possível apreciar a Ponte Carmen, sobre o Sar e, lá no alto, a imponente igreja do Convento Carmen.

Padrón reserva-nos uma surpresa bem divertida. É que, no largo da igreja, existe um bar, o Don Pepe 2, onde se pode ‘tapear’, cujo dono recebe calorosamente os peregrinos (e peregrinas) com beijos e abraços. Não há quem lhe resista, nem aos ‘chupitos’ de Dr. Zaz, um licor de pimentos de Padrón que promete, e cumpre, picar sempre. Obrigada, Pepe, por este momento ‘diferente’. Sem dúvida, uma visita imperdível!

A caminhada de hoje não terminava aqui, já que o alojamento estava ainda a dois quilómetros. Por isso, depois de um excelente almoço ajantarado na Pulperia Real, que nos fora recomendada por um amigo, voltámos ao terreno.

Por esta altura, sentimentos controversos tomavam já conta de nós. O Caminho aproximava-se do fim, mais uma etapa e entraríamos na Plaza do Obradoiro. Íamos conseguir, já o sabíamos. A vontade de chegar era imensa, como imensa era a vontade de continuar. Não queríamos que terminasse. Este era, aliás, o sentimento de quase todos os peregrinos com quem tínhamos vindo a falar nestes dias. Mais uma ‘partidinha’ do tal Espírito do Caminho? Talvez. O Caminho nem sempre é fácil, nem sempre é bonito, exige força, exige vontade, e chega a desafiar os limites da nossa resistência. Confronta-nos com alguns dos nossos medos, obriga-nos a fazer escolhas nem sempre confortáveis. Dores, bolhas e cansaço podem surgir. Vontade de desistir? Às vezes. Que necessidade tinha eu de me meter nisto? Esta é, muitas vezes, a pergunta. Mas se a motivação for grande, se o objetivo for superarmo-nos e pormo-nos à prova, então nada nos demove. E esta é outra das lições, porventura a mais importante, que levamos desta empreitada: é connosco que devemos competir, não com os outros.

Assim, apaziguados os estômagos, com um delicioso pulpo, regado com um fresquíssimo Albariño, bebido por malgas, pois então, foi hora de ‘vestir’ a mochila (nesta altura ela já é parte integrante do nosso corpo) e zarpar…

Só mais dois quilómetros. Para quem já tinha feito 20, o que são dois quilómetros? Afinal, o longe e o perto dependem da nossa perceção…

Aproveitámos para visitar mais alguns pontos de interesse, agora em Iria Flávia. O Caminho está repleto deles, demonstrando, a cada momento, a razão pela qual estes são itinerários culturais e espirituais. Desde logo, a Igreja de Santa Maria, uma impressionante e robusta construção de eras longínquas, mas reconstruída no séc. XII. O templo primitivo datava do séc I, tendo sido mandado destruir por Almansor em 999. Foi colegiata até 1851, altura em que foi reduzida a paróquia. A austeridade do seu aspeto exterior esconde um interior magnífico, embora não excessivo, com destaque para a riqueza do altar. Um contraste que a torna deveras incomum e surpreendente. No cemitério que a rodeia é ainda possível ver túmulos medievais, prova da sua antiguidade. É também aqui que está sepultado o ‘nobilizado’ escritor Camilo José Cela, por ser esta a sua terra natal.

Foi também este o local escolhido para acolher a Fundação Camilo José Cela, à qual o escritor doou o seu legado literário e artístico, visando a sua difusão e conservação. A sua coleção de manuscritos, o seu epistolário, a sua biblioteca pessoal e as edições da sua obra, bem como estudos sobre a mesma, fazem parte do espólio aqui depositado. Entre outras coleções de interesse, aqui estão também obras de pintores como Picasso ou Miró. Por ser domingo, estava encerrada, pelo que, com muita pena, não pudemos visitar. 

Uma nota breve sobre Iria Flávia, que hoje mais não é do que um pequeno bairro, apesar de ser um dos locais com mais História na Galiza, e um dos pilares fundamentais da tradição jacobeia. Na época do domínio romano, terá sido uma cidade importante, graças ao seu grande porto fluvial na confluência dos rios Sar e Ulla. Reza a tradição que foi em Iria Flávia que o Apóstolo Santiago Maior terá pregado pela primeira vez durante a sua estadia na Hispânia. É o que se diz…

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12.10.22

Etapa 4 - De Pontevedra a Caldas de Reis 25 Km | 6h50m | 259 m ganho de elevação


Emília Matoso Sousa

Termas e fontes de águas quentes.

Depois de um pequeno-almoço tomado na companhia de um casal de peregrinos já habitué nestas andanças, e que nos deu algumas dicas, fizemo-nos à estrada. A chuva da noite anterior atenuou o calor, mas de manhã não passou de uma ameaça. O pior foi o desconforto causado pela humidade do ar.  

Sendo Caldas de Reis uma simpática vila termal, decidimos juntar o útil ao agradável, fazendo aqui uma pausa de um dia para descansar e aproveitar os benefícios das suas águas, certamente reparadoras. E soube muito bem, pois no final da quarta etapa, já começam a surgir sinais de algum cansaço acumulado. O preço pago por esta ‘folga’ foi termos perdido o ‘nosso’ grupo. Podemos ser muitos e muito diferentes, podemos até caminhar desencontrados, cada um ao seu ritmo, mas o importante é que caminhamos todos no mesmo sentido e acabaremos por nos encontrar. Eis outra importante lição desta experiência.

A saída de Pontevedra faz-se pela Ponte do Burgo, sobre o rio Lérez, uma ponte medieval construída sobre outra de origem romana, sobre a qual passava a Via XIX. Os primeiros quilómetros são passados entre zonas de floresta, caminhos de terra e estradas secundárias. Pequenas localidades e campos de cultivo compõem a paisagem. Em Alba há uma igreja a merecer uma visita, algo que não pudemos fazer, por ser muito cedo e estar ainda fechada. Na Galiza há muitas igrejas ricas e imponentes, mesmo em locais quase perdidos no mapa. Mais à frente, em San Caetano, visitámos a respetiva capela e obtivemos um dos dois carimbos do dia. A primeira pausa foi feita em Barro, na Meson Don Pulpo, ponto de encontro quase obrigatório, e mais uma oportunidade para convívio entre peregrinos que, nesta altura, já são praticamente todos conhecidos uns dos outros.

A ‘estrela’ deste grupo é uma bebé de um ano e meio que, sempre bem disposta, acena a toda a gente distribuindo beijinhos e sorrisos. Uma aventura que irá recordar apenas através de fotos, mas que lhe dará um bom tópico de conversa em anos futuros. 

Continuámos a caminhar por estradas secundárias, algumas muito bonitas. Ao Km 51 (104 da N550), fizemos um pequeno desvio (500 m) para visitar as cascatas do Parque Natural do Rio Barosa. A estrada aqui é movimentada, há que atravessar com muito cuidado. Este desvio passa despercebido a muitos peregrinos, por isso convém estar muito atento. 

Trata-se de um lugar muito refrescante, com uma cascata belíssima de água cristalina e com um conjunto muito pitoresco de moinhos de água. Tudo isto, emoldurado por árvores frondosas que dão sombra a uma tranquila área de descanso. Diz, quem ali refrescou os pés, que estas águas fazem milagres..

Os quilómetros seguintes são percorridos entre terrenos agrícolas e vinhedos. Serão de Albariño? Plantados em latada, além de vistosos, fornecem magníficos túneis de sombra.

A entrada em Caldas de Reis faz-se pela ponte sobre o rio Umia, em cuja marginal há bares e restaurantes onde, mais tarde, os peregrinos se encontrarão e onde irão saborear as especialidades da zona. A adega O Moiño (um antigo moinho, claro) é o mais concorrido, pelo que convém reservar antecipadamente.

Famosa pelas suas águas termais, Caldas de Reis é um verdadeiro oásis para quem já traz tantos quilómetros nos pés e nas pernas. A Fonte Termal de Las Burgas é imperdível e todos vão, qual ritual, ‘mimar’ os pés na sua água benéfica e quente. Mas há quem prefira confortá-los no lavadouro público logo ali em frente. É maior e permite molhar também as pernas. É também um excelente local de convívio. Os balneários termais são outra opção para relaxar e atenuar o desgaste acumulado. E sim, meia hora dentro destas águas dão uma nova vida ao caminhante. Os músculos e a pele agradecem!

Caldas de Reis é uma vila com alguns encantos. Quem segue viagem deve, pelo menos, visitar a catedral e passear um pouco pela margem do rio Umia. Quem fica, como nós, terá todo o dia seguinte para fazer isso e muito mais. 

Solidários com os restantes peregrinos, aproveitámos o dia de descanso para… caminhar. Mas foram apenas 10 Km. Ao passear pela margem do Umia, deparámo-nos com uma placa a indicar um trilho pedestre que se revelou surpreendente e que justifica uma visita a esta pequena vila. Fervenza de Segade, assim se chama o trilho, que segue paralelo ao Umia a partir do Parque Jardin Botánico y la Caballeira (também a justificar uma visita). É como se percorrêssemos um corredor ladeado, do lado direito, pela impressionante galeria ripícola do rio, e do esquerdo, por vinhas e casas com hortas e jardins multicoloridos. O rio, ora corre tranquilo, ora se transforma em cascatas. A dado momento, somos surpreendidos por enormes arbustos de hortênsias, predominantemente brancas, ali plantadas e mantidas por uma habitante da zona. Uma simpática senhora, apaixonada pela natureza e propensa a conversas filosóficas sobre a necessidade de ‘cultivarmos’ o lado belo da vida. Cuidar da Natureza como se ela fosse o nosso próprio jardim e ensinar os mais jovens a respeitá-la também foi a lição que ali recebemos. Mais uma para a lista.

No final, e depois de ‘trepar’ por um caminho pedregoso e húmido, chegámos aos moinhos e à cascata. Um cenário ma-ra-vi-lho-so! O resto do dia foi passado entre passeios e banhos termais.

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12.10.22

Etapa 3 - De Redondela a Pontevedra 24 Km | 5h56m | 425 m ganho de elevação


Emília Matoso Sousa

Entre bosques e calçadas romanas.

Deitar cedo e cedo erguer foi a nossa prática durante estes dias, para evitar o calor e para chegar ao destino a tempo de fazer um pouco de 'turismo'. Às 6h30 já estávamos na estrada e à nossa espera tínhamos a etapa que considerei mais bonita, com bosques, florestas, cascatinhas, ribeiros… Alguns quilómetros de subida, é certo, mas com o cansaço a ser recompensado com a beleza das paisagens. Motivo de entusiasmo era também a cidade que hoje nos acolheria. Pontevedra. Capital das Rias Baixas e do Caminho Português de Santiago. O seu centro histórico magnífico, a sua saborosa gastronomia, a sua ‘movida’ e as suas charmosas praças são motivos para uma visita obrigatória. Graças ao seu modelo de planeamento urbano, muito focado na qualidade de vida e políticas de mobilidade, a cidade tem vindo a somar prémios internacionais. O Prémio Habitat, atribuído pela ONU em 2014, e o primeiro prémio da Comissão Europeia para a Segurança Urbana, recebido em 2020, são apenas dois exemplos. É, ainda, a cidade galega com mais ruas exclusivamente pedonais e espaços verdes por habitante. 

Os primeiros quilómetros após a saída de Redondela não têm particular interesse. Atravessada a N550, entramos em caminhos secundários que nos levam até outro de terra batida, entre árvores e vegetação variada. A primeira grande subida está prestes a começar para se prolongar por quatro quilómetros, durante os quais agradecemos o tempo fresco que, entretanto, substituira o calor. Entre subida e descida, chegamos a um ponto que nos oferece umas vistas soberbas para a Ria de Vigo. Descemos até à N550 para alcançar Arcade, cujo interior atravessamos e onde há cafetarias, sempre bem-vindas para paragens técnicas.

O ponto de interesse seguinte é a histórica Ponte Sampaio, sobre o rio Verdugo, e que dá o nome à localidade. Assinala a entrada no concelho de Pontevedra. É uma ponte longa, com dez arcos semicirculares, com origens alegadamente romanas, mas remodelada na Idade Média, época a que remonta a atual estrutura. Tem ainda direito a um lugar próprio na história da Galiza, já que em junho de 1809, durante a Guerra da Independência, foi palco de um episódio memorável, em que as tropas espanholas, lideradas pelo coronel Pablo Morillo, e as milícias populares galegas derrotaram e correram com as forças de ocupação francesas, comandadas pelo marechal Michel Ney. 

Ponte Sampaio, que atravessamos, é uma localidade muito pitoresca com espigueiros e casas de pedra de construção muito antiga distribuídas por ruelas estreitas e cheias de recantos. Na Galiza, tal como em certas regiões do Norte de Portugal, há ainda muitos espigueiros, estruturas em pedra ou em madeira, supostamente 'à prova' de roedores,  usadas para secar o milho.

Seguimos até Ponte Nova por um bonito caminho de piso irregular e de inclinação muito descendente, ora de lages, ora de terra batida, tornando a marcha muito difícil e fazendo-nos duvidar da máxima de que para baixo todos os Santos ajudam... Depois da ponte, espera-nos nova, longa e desafiante subida, cuja extrema irregularidade do piso põe à prova a resistência dos peregrinos. Terra batida, calçadas romanas, pedregulhos e pequenas pedras soltas… uma breve desatenção e um pé mal colocado podem ser ‘fatais’. Porém, o que dizer da envolvente? Estamos em pleno bosque encantado. Árvores enormes e maravilhosas, fetos gigantes e outras espécies arbustivas típicas de climas húmidos. Em certos momentos, só se ouve o silêncio. E os pássaros. E o som de água cristalina a correr nos riachos que nos ladeiam. Quanto mais avançamos, mais nos sentimos parte desta Natureza, cuja boa energia tende a reconciliar-nos com a Humanidade que, por vezes, julgamos perdida. Mais uma vez, estará o Espírito do Caminho a pregar-nos uma partida?

Assim seguimos até Brea Vella de Canicouva, onde percorremos um trilho de lajedo com alguns lanços a coincidir com a já famosa Via XIX. Na capela de Sta Marta, fazemos uma pausa e reencontramos alguns ‘companheiros’ de estrada. Aproveitamos também para pôr a conversa em dia. 

Avançamos mais um pouco, desta vez pelo asfalto, e, novamente, temos de escolher entre fazer menos quilómetros, e continuar pela estrada, ou aumentar a distância, e continuar pelos bosques. Nem pensámos duas vezes. O longe e o perto são meras apreciações e quem o decide é a nossa mente. E esta é outra lição a reter.

Tentar traduzir por palavras a grandiosidade dos cenários proporcionados pelos bosques galegos é tarefa quase impossível. Se disser que são de cortar a respiração, não estou a cometer nenhum exagero. E foi por esta paisagem de país das maravilhas que seguimos até Pontevedra, onde chegámos pouco depois. 

E foi revigorados pelas forças da Mãe Natureza, que entrámos em Pontevedra prontos para a ‘movida’ galega. E que movida! A cidade é muito bonita e cheia de História, e com um casco antigo muito agradavelmente bem preservado. Ao contrário de outras cidades espanholas, aqui não há uma grande plaza onde tudo acontece, mas um contínuo de praças todas a fervilhar de animação. A Praça da Ferraria, a Méndez Núnez, a da Lenha, ou a da Verdura são excelentes exemplos de sítios onde o convívio entre locais e peregrinos acontece e onde nos podemos deliciar com a típica e deliciosa gastronomia das Rias Baixas, onde o polvo (pulpo) é protagonista, mas também as vieiras, as zamburiñas (vieiras pequenas), os mexilhões, os berbigões (berberechos) os queijos, os enchidos…

Obrigatória é a visita à Igreja da Virgem do Caminho, construída em 1778, um exemplar interessante e curioso de estilo barroco neoclássico, sendo considerada Bem de Interesse Cultural. O que a torna original é a sua fachada de forma arredondada, devido à sua planta em formato de concha de vieira, que é nada mais do que um dos símbolos do Caminho.

No Caminho também se fazem amigos e hoje foi dia de jantar com três simpáticas peregrinas portuguesas (a Ana, a Carina e a Cláudia) com quem nos fomos cruzando ao longo dos dias. Entre pulpo, pimentos de padrón, zamburiñas e Albariño, a conversa foi fluindo animada e lançou as sementes para encontros e conversas futuras. A chuva, que entretanto chegou, fez-nos companhia, mas não nos impediu de aproveitar a belíssima esplanada.

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12.10.22

Etapa 2 - De O Porriño a Redondela 17,6 Km | 4h15m | 266 m ganho de elevação


Emília Matoso Sousa

Redondela, caída del cielo”, Federico Garcia Lorca

Esperava-se muito calor, pelo que a decisão foi de partir às 6h (5 em Portugal), ainda que esta fosse a etapa mais curta. Foi também, em minha opinião, a menos bonita, pela quantidade de quilómetros percorridos sobre asfalto. Ainda assim, houve percursos muito agradáveis.

A N550 espera-nos à saída de O Porriño e serve-nos de piso durante um par de quilómetros. Até Mos, nada a assinalar. Aí, chegamos ao núcleo de A Rúa, onde se encontra o Pazo de Los Marqueses, um típico paço galego do séc XVII, residência dos marqueses de Mos até ser incendiado pelos franceses no início do séc. XIX. Foi reabilitado e, atualmente, pertence à comunidade, sendo utilizado como espaço multiusos. A imponente igreja de Santa Eulália merecia uma visita, mas estava encerrada. O cruzeiro Os Cabaleiros, datado do século XVII, é aqui outro ponto de interesse. Os cruzeiros são muito frequentes na Galiza, desde exemplares sobreviventes de outras eras, até aos construídos ainda na atualidade.

Somos agora confrontados com a primeira subida do dia. Não é longa, é em piso de asfalto, mas é suficientemente íngreme para testar a nossa resistência e para dar bom uso e valor aos bastões. Segue-se uma incursão num cenário de árvores e terra batida e continuamos a subir… Vamo-nos cruzando com alguns ‘conhecidos’. Bon Camino! Esta é a versão moderna dos Ultreia! e Suseia!, troca ancestral de saudações entre peregrinos, com o objetivo de dar ânimo. Vamos lá! Força!, sendo as respostas: Vamos! Coragem! E bem precisamos disso para ultrapassar os obstáculos do Caminho, principalmente as subidas. E também as descidas, mas já lá vamos!

No ponto mais alto da subida, chegamos à Capela de Santiaguiño. É também por aqui que encontramos um marco miliário romano da nossa já conhecida Via XIX. Estes marcos informavam sobre as distâncias em milhas romanas. Cada milha correspondia a 1000 passos (1480 metros), o que explica o termo ‘miliário’. Eram construídos em pedra, de forma geralmente cilíndrica, ostentando, geralmente na base, inscrições sobre o número de milhas da respetiva via, a distância até ao destino, e o nome do imperador em funções, a quem eram dedicados. 

O Caminho é também uma oportunidade para veicular mensagens positivas. É o caso de uma escultura que alerta para o flagelo da violência sobre as mulheres, inaugurada em 2007 sob o lema ‘Caminhando pela Igualdade’, e que tem incorporadas pedras com os nomes das mulheres assassinadas neste mesmo ano. Os seus autores, o escultor Marcos Escudero em colaboração com Auri Diaz Vásquez, passam a mensagem de que, apesar de haver ainda muito caminho a percorrer no sentido da igualdade entre homens e mulheres, “pasiño a pasiño e sobre todo camiñando xunt@s, conseguirémolo. Bo Camiño!”.

E o que é que se segue a uma grande subida? Uma grande descida! Neste caso, uma terrível descida! Os sacrificados foram, agora, os joelhos e qualquer distração podia originar uma escorregadela. Mais uma vez, valeram-nos os bastões. Mas no Caminho está tudo pensado e, no final, esperavam-nos umas ‘aprazíveis’ áreas de descanso para apaziguar as reclamações dos músculos das pernas e recuperar o fôlego. Por ‘aprazíveis’ entendam-se áreas de sombra com uns ‘confortáveis’ bancos de pedra… 

Aproximamo-nos já de Redondela. Passamos pelo Convento de Villaverde, parcialmente em obras, e eis que surge à nossa frente, bem no alto, aquela que é uma imagem de marca da cidade: o viaduto Pedro Florani, ponte ferroviária também conhecida como Ponte de Madrid, construída em 1876, e que esteve em atividade durante mais de um século. Há ainda outra ponte ferroviária a sobrevoar a cidade, o Viaduto de Pontevedra, este ainda a funcionar, o que vale a Redondela o merecido epíteto de ‘vila dos viadutos’. A existência de comboios a sobrevoar os edifícios levou Federico Garcia Lorca a referir-se-lhe como “caída dos céus”. 

Check-in feito e duche tomado, foi tempo de ir dar resposta ao apetite e fazer um passeio de reconhecimento. Malgrado a inclemente descida, continuávamos sem mazelas e aptos para mais uma corrida.

Redondela confina com a ria de Vigo, a qual permite vislumbrar as ilhas de Santo Anton e de Santo Simion. “Sedia-m’eu na Ermida de San Simion, e cercarom-mi as ondas, que grandes son!”. Sim, foi esta a ilha que inspirou o trovador Meendinho, no séc. XIII, a escrever esta Cantiga de Amigo. Quem (não) se lembra de ter estudado esta relíquia da poesia lírica galaico-portuguesa?

O dinamismo e a alegria das cidades espanholas é visível por aqui (antes e depois da siesta, naturalmente). Muitas pessoas nas ruas, sobretudo locais, e esplanadas cheias de gente que, entre tapas, bocadilhos e copas, vai fazendo tempo para o jantar…

A pequena cidade revela-nos alguns pormenores interessantes. A certa altura (esta é só para alguns), deparamo-nos com a casa onde viveu e morreu D.José Regojo. Esse mesmo, o das camisas, que terá sido “promotor de empresas e home de ben”. Isto de acordo com uma placa ali colocada pelos seus trabalhadores em 1993. Já a sua mulher, Rita Otero Fernández, “quen fixo da caridade o seu lema de vida”, foi eleita pelo Concelho de Redondela Personagem do Ano em 2014. Quem pratica o bem, merece ser reconhecido, essa é que é essa! Outra curiosidade, esta fixada num banco de jardim: o pintor Salvador Dali deu o seu nome a uma camisa feita na fábrica Regojo. 

No dia em que deixámos Redondela, começava a Festa da Coca, evento que celebra o Corpus Christi. Durante os dias do evento, as ruas estão cobertas por coloridos e elaborados tapetes feitos de flores. Ponto alto da festa, e a origem do seu sugestivo nome, é o desfile da coca (um animal tipo dragão), acompanhada de gigantes e cabeçudos. Tivemos oportunidade de ver grupos de locais a prepararem as flores e a desenharem os esquemas dos tapetes nas estradas. Desta vez não pudemos ficar para a festa. Quem sabe se não voltaremos?

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12.10.22

Etapa 1 - De Valença do Minho a O Porriño 22 Km | 5h14m | 250 m ganho de elevação


Emília Matoso Sousa

Bo Camino! Rumo a um destino comum.

O dia começou muito cedo, às 6h (7 em Espanha). Previa-se um dia quente e o calor é inimigo dos peregrinos. Pouco mais de 300 metros separam Valença de Tui. A fronteira é marcada pelo rio Minho, que se atravessa por uma interessante ponte metálica, datada de 1886. Dos corredores laterais desta imponente estrutura, as vistas para o rio são lindas e aguçam o apetite para o que se seguirá. De um lado e do outro, aprecia-se a paisagem e registam-se alguns momentos. Afinal, o Caminho também se faz de boas imagens que vamos guardando nas nossas memórias, e também nas dos nossos telemóveis.

Tui. Vale a pena percorrer o centro histórico desta cidade galega e deixarmo-nos perder pelo emaranhado das suas ruas e ruelas. A Catedral de Sta. Maria, o Convento de Las Clarisas e a Igreja de Santo Domingo são apenas três exemplos do muito que há para apreciar. 

A saída de Tui conduz-nos a paisagens rurais, zonas agrícolas, bosques e, aqui e ali, pequenas localidades. O Caminho começa a presentear-nos com alguns apontamentos dignos de nota, como a Ponte Veiga, sobre o rio Louro, ou a estátua do peregrino. O verde, os símbolos que nos guiam, os peregrinos que passam por nós e nos saúdam começam a tomar conta de nós e a transportar-nos para um tempo e espaço diferentes. Nada mais importa a não ser a finalidade da nossa missão. Será isto o espírito do Caminho? Os peregrinos são de todas as idades. Caminham sozinhos ou acompanhados. São portugueses, são espanhóis, são brasileiros, são ingleses… não importa de onde são. Às costas, dentro de uma mochila, levam tudo aquilo de que precisam para viver nos dias que se vão seguir. Os bens materiais ficam para trás, nada se sabe sobre as suas proveniências sociais. Todos ostentam um ar de grande felicidade, todos caminham no mesmo sentido, todos têm o mesmo objetivo, todos se saúdam numa única língua: Bon Camino! E esta foi a primeira lição: precisamos de muito pouco para estar bem.

Ao longo de todo o Caminho há duas estradas que nos acompanham: a Via XIX, estrada romana do tempo de Augusto que ligava Braccara Augusta (Braga) a Asturica Augusta (Astorga), passando por Ponte de Lima, Tui, Pontevedra, Caldas de Reis, Iria Flávia e Lugo; e a N550, que liga Tui à Coruña e que, em vários momentos, temos de atravessar ou ladear. Sim, há trajetos feitos sobre o asfalto e, sim, nesses trajetos há trânsito… A boa notícia é que, quase sempre, nos são disponibilizadas bermas largas com agradáveis vias pedonais. 

É uma destas que percorremos entre Virxe do Camiño e a Ponte de San Telmo, ou das Febres, como é mais conhecida, e que nos recorda um dos muitos episódios que contam a História desta peregrinação. Foi nesse lugar que, diz-se, no século XIII, o peregrino San Telmo teve um súbito acesso de febre que o obrigou a regressar a Tui, onde morreu pouco depois. Junto à ponte, está uma cruz em pedra com a inscrição “Caminante aqui enfermo de muerte San Telmo em abril de 1251. Pidele que hable con Dios a favor tuyo”. Este é agora um local de culto, onde os peregrinos depositam objetos de homenagens, promessas ou outros rituais. O 'diz que disse' é um fenómeno sem tempo e entrelaça-se com a História a todo o momento. Mas o encanto está, precisamente, em não se saber onde terminam os factos e começa a ‘ficção’, proporcionando a todos a necessária liberdade para exercitarem as suas crenças e fés. É também esta a riqueza do Caminho.

Um pouco mais à frente, surge uma oportunidade para uma paragem ‘técnica’: recuperar energias, ir ao WC, tomar um café ou algo mais, e carimbar a credencial. Estas paragens são propícias ao convívio entre os peregrinos que, por esta altura, já se vão conhecendo. Não tarda, seremos um enorme grupo.

Continuamos, agora, por uma zona de floresta, acompanhados pelo rio Louro (que separa os municípios de Tui e O Porriño), e chegamos a A Madalena, onde somos recebidos pelos Cinco Cruzeiros de Santa Comba de Ribadelouro. Pouco depois, em Orbenlle, há que tomar uma decisão: seguir pelo polígono industrial das Gândaras ou tomar o traçado alternativo, mais longo, mas com a promessa de ser mais bonito. A escolha pareceu-nos óbvia. Nada de caminhos feios!

Entramos numa zona muito aprazível, onde temos de passar sobre as Poldras de Betate, que ladeiam a ribeira do rio Louro. Estas poldras fazem parte de um património de grande relevância cultural, social e histórica. São construções de pedra utilizadas para atravessar zonas encharcadas, regatos e rios. Estão fortemente ligadas aos ecossistemas e antigos usos dos recursos naturais e formas de vida no vale do Louro.

Entramos em O Porriño pela Rua Manuel Rodrigues. Não sendo uma vila de rara beleza, é, ainda assim, agradável e repleta de vida, muito provavelmente em resultado do seu posicionamento na rota jacobeia.

O destaque vai, sem dúvida, para o Palácio Municipal (Ayuntamiento), um curioso e desmesuradamente imponente edifício, assinado pelo arquiteto galego António Palácios, ali nascido em 1874.

A primeira etapa foi concluída com sucesso. O entusiasmo era muito, as expectativas eram elevadas, o nível de apreensão era q.b. Tinhamo-nos preparado bem e estávamos confiantes. Portanto, so far, so good!

A etapa foi tranquila, sem grandes desníveis, o piso não ofereceu dificuldades. Não houve bolhas, não houve dores. Houve, sim, algum calor, sobretudo nos quilómetros finais. Com a Galiza a atravessar uma onda de temperaturas elevadas, dificilmente conseguiríamos escapar-lhe. Nada que uma Estrella Galicia bem geladinha não resolvesse. E foi o que fizemos, depois do check-in no alojamento e de um duche reparador.

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12.10.22

Etapa 0 - Valença do Minho


Emília Matoso Sousa

Valença, Valença, Tui à vista.

Simbolicamente, iniciámos o Caminho em terras lusas. Viajámos, de véspera, para Valença, onde pernoitámos, e revisitámos esta cidade fronteiriça dona de um património histórico e arquitetónico de grande interesse. O destaque vai para a sua fortaleza, uma das principais fortificações militares da Europa, cujos cinco quilómetros de muralha guardam um rol de memórias com muitos séculos. Um passeio descontraído pelas suas ruas, onde já são visíveis marcas do Caminho, encerrou em grande o nosso processo de preparação.

O dia terminou com um jantar no sugestivo Fronteira Gastro Bar, mesmo ali à beira da ponte sobre o Minho. Um espaço muito agradável, onde se servem petiscos tradicionais e outros inspirados na gastronomia dos ‘nuestros hermanos’ a preparar-nos já o palato para os dias se seguiriam. O Caminho esperava-nos no dia seguinte bem cedinho. Agora, era hora de ir descansar.

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12.10.22

Sobre o Caminho Português


Emília Matoso Sousa

O Caminho Central, cujo início é em Lisboa, ocupa um lugar relevante na tradição jacobeia. Porém, considerando o reduzido número de estruturas de apoio entre Lisboa e Porto, é a partir desta última que grande parte dos peregrinos ruma à Galiza. É um itinerário muito importante, sobretudo a partir da independência de Portugal no séc. XII, e do seu traçado fazem parte estradas e caminhos antigos, como a Via XIX, estrada romana construída no séc. I d.c., que ligava Braga a Astorga, passando por Ponte de Lima, Tui, Pontevedra, Santiago e Lugo. Como curiosidade, a relevância deste fenómeno em Portugal era tal que a própria rede rodoviária se viria a configurar, de Sul para Norte, de acordo com os lugares que o Caminho ia fixando para a Galiza: Lisboa, Santarém, Coimbra, Porto, Barcelos, Ponte de Lima, Valença do Minho.

Do Porto a Santiago

É este o percurso feito pela maioria dos peregrinos que fazem o Caminho Português. Há ainda quem prefira iniciar a sua peregrinação apenas em Valença do Minho (circa 124 Km), ou em Tui, a última cidade de onde é possível partir sem se perder o direito à Compostela. Já os ciclistas terão de percorrer, no mínimo, 200 Km. 

A Compostela é o documento que certifica a realização do Caminho, é atribuída pelas autoridades eclesiásticas e recolhida no Gabinete de Atendimento ao Peregrino da Catedral de Santiago. É também aqui que se obtém o certificado de distância dos quilómetros percorridos. Para a obtenção da Compostela e do Certificado de Distância, o peregrino deverá ter uma Credencial, a qual tem de ser carimbada pelo menos duas vezes por dia.

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12.10.22

Principais itinerários


Emília Matoso Sousa

São muitos os caminhos que levam a Santiago de Compostela. Numa visão mais ou menos ‘poética’, podemos até considerar que são todos os que percorremos para lá chegar,  mesmo o que começa na porta da nossa casa. Mas sim, há muitos caminhos para a peregrinação, alguns, fruto da adaptação às transformações que, ao longo dos tempos,  foram sendo feitas nos percursos (desenvolvimento oblige!). Há, no entanto, um conjunto de rotas ‘certificadas’ que correspondem às mais tradicionalmente percorridas através dos séculos.

  • Caminho Francês - Com perto de 800 Km, partindo de St. Jean Pied de Port, à beira dos Pirenéus e passando por Aragón, Navarra, La Rioja, Castilla Y León, e Galiza, é o itinerário com maior tradição histórica e o mais reconhecido internacionalmente.
  • Caminho Primitivo - Assim designado por quase corresponder ao primeiro itinerário, com origem no séc. IX. Liga Oviedo a Santiago de Compostela e é considerado um dos mais rigorosos ao nível da dificuldade.
  • Caminho Português - São vários os itinerários que constituem este Caminho.
    • Caminho Interior: Tem início em Viseu e segue até Santiago de Compostela utilizando a Via da Prata. 
    • Caminho Central: Parte de Lisboa, passando por Coimbra e pelo Porto, sendo o caminho mais relevante no país. 
    • Portugal Via Nascente: Parte de Tavira e atravessa o país até Trancoso, onde entronca com outros itinerários.
    • Caminho da Costa: Parte do Porto e segue pela orla marítima até entroncar com o que parte de Valença. 
  • Via da Prata - Assim designado por ser o nome da via romana que unia o Oeste da Península Ibérica de Sul para Norte a partir de Sevilha e passando por algumas das mais bonitas cidades espanholas. É o percurso mais longo.
  • Caminho Inglês - É uma das rotas mais curtas, e parte da Galiza, das cidades de Ferrol ou A Coruña. Recria o itinerário seguido desde o séc. XII pelos peregrinos britânicos.
  • Caminho do Norte - Parte de Irun, no País Basco, e era percorrido por peregrinos de Inglaterra, Flandres, Alemanha e Escandinávia. É um itinerário particularmente bonito, já que passa por algumas das mais bonitas vilas e cidades do norte de Espanha. 
  • Rota do Mar de Arousa e Rio Ulla - Há quem lhe chame o Caminho Espiritual, por recrear a chegada à Galiza por via marítima e fluvial do corpo do Apóstolo.
  • Caminho de Inverno - Tem início em Ponferrada terá surgido como alternativa, durante o inverno, à subida dos cumes nevados de O Cebreiro. 
  • Caminho de Fisterra e Muxia - Com início em Santiago e fim no Cabo Fisterra, este itinerário traduz literalmente os ancestrais ‘Ultreia!’ e ‘Suseia!’ que, traduzidos à letra, significam ‘Vamos para Além!’ ‘E mais para Cima!’. É percorrido por aqueles para quem o Caminho não acaba ali…

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12.10.22

Um itinerário cultural e espiritual


Emília Matoso Sousa

Inicialmente percorridos por motivações marcadamente religiosas, os caminhos de Santiago são, nos dias de hoje, itinerários culturais e espirituais, sendo inegável o contributo destas peregrinações, ao longo de doze séculos, para o desenvolvimento das diversas culturas que compõem a identidade europeia. São doze séculos a promover a comunicação e o intercâmbio de ideias, a difundir conhecimento e a partilhar culturas em prol da consolidação de um espaço que se tornou cada vez mais comum. Doze séculos a desenvolver um papel relevante na construção e partilha de memórias e tradições. Tal importância valeu já o reconhecimento pela UNESCO de três dos itinerários que compõem a rede jacobeia como Património da Humanidade. São eles o Caminho Francês (1993), e os caminhos Primitivo e do Norte (2015). Há, no entanto, outras candidaturas em análise.

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12.10.22

Uma peregrinação milenar


Emília Matoso Sousa

Falar dos Caminhos de Santiago é falar de uma tradição que vem do séc. IX. É falar dos percursos feitos a pé até Santiago de Compostela para venerar as relíquias do Apóstolo Santiago Maior, um dos doze de Jesus Cristo. Crê-se que este apóstolo terá pregado a doutrina cristã na Hispânia (nome dado à Península Ibérica durante a Roma Antiga) e que, não tendo sido bem sucedido, voltou à Judeia, onde acabou por ser martirizado. O seu corpo terá, então, sido transportado para a Galiza para ser sepultado, tendo o seu túmulo sido, alegadamente, descoberto por volta dos anos 820/830. Aí se ergueu a catedral em sua homenagem e aí cresceu Santiago de Compostela, que se tornou destino de uma das mais importantes peregrinações da Europa Medieval. Apesar de, durante alguns séculos, essas movimentações terem perdido alguma força, a partir de 1980, a prática foi sendo gradualmente recuperada e, atualmente, muitos milhares de peregrinos, provenientes de muitos países, percorrem essas rotas.

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12.10.22

O meu Caminho


Emília Matoso Sousa

"A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa." José Saramago, in Viagem a Portugal

Durante a fase de preparação, li e recolhi muita informação sobre estas peregrinações que sempre me fascinaram. Apenas para memória futura, tentei sistematizar e guardar alguns apontamentos que me pareceram úteis. Da mesma forma que, no regresso do Caminho, decidi escrevê-lo, mesmo sabendo que aquilo que verdadeiramente se sente, se ouve, se vê, se cheira e se saboreia dificilmente se pode transcrever. Mas ao escrevê-lo, revisitei-o e vou poder sempre revisitá-lo. Sei, agora, que cada peregrino faz o ‘seu’ Caminho. Afinal, usando as palavras de José Luís Peixoto, “viajar é interpretar. Duas pessoas vão ao mesmo país e, quando regressam, contam histórias diferentes…”. Esta é a minha.

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